Paróquia Ferrabraz

Sínodo Rio dos Sinos


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Curados pela cruz | João 3.14-21 / Números 21.4-9

Ciclo da Páscoa - ANO B

05/03/2024

 

Amados irmãos, amadas irmãs,

Você e eu estamos doentes. E é uma doença mortal!

Na verdade, não apenas eu e você, mas o mundo inteiro está doente. O mundo está quebrado: guerras, violência, doenças, crise climática, pobreza, desigualdades... E em cada individualidade, encontramos a doença do egoísmo, da ganância, do individualismo, do imediatismo, da velocidade, a angústia, o desespero, a depressão, a ansiedade... Enfim, a lista é imensa.

O que são estas coisas? São os sintomas de que algo não vai bem, de que algo está errado, de que algo saiu do controle. Mas são os sintomas – não a doença em si! O sintoma indica que algo não está bem. A dor, por exemplo, emite um aviso de que algo está errado; a febre é um aviso de que em algum lugar do nosso corpo há alguma infecção; náuseas e vômitos são sintomas que indicam que talvez tenhamos comido algo que não nos fez bem. Assim também são os problemas da humanidade. São sintomas de que algo está errado, diferente do que foi feito para ser – separado de seu propósito original.

Mas o sintoma não é a doença. O sintoma avisa que há a presença da doença. Contudo, tratar o sintoma nem sempre significa tratar a doença – que pode continuar a se agravar cada vez mais. Muitas vezes em nossa vida nós tratamos os sintomas que nos avisam que algo está errado, mas nem sempre temos a disposição de buscar a cura para a verdadeira doença que está causando os sintomas. Queremos acabar com a dor, mas não temos coragem ou até mesmo não conseguimos enfrentar a doença que causa a dor!

Não, embora possa até parecer, eu não estou falando de medicina aqui, mas de teologia bíblica e cristã. Portanto, qual é então essa doença que causa todos esses sintomas negativos na humanidade? Gosto dessa resposta do falecido pastor norte-americano Timothy Keller:

Desde o Éden, vivemos em um mundo repleto de sofrimento, doenças, pobreza, racismo, desastres naturais, guerras, envelhecimento e morte – e tudo é resultado da ira e da maldição de Deus sobre o mundo. O mundo está desajustado e precisamos ser resgatados. Mas esses relacionamentos “horizontais” não são a raiz do nosso problema, embora, quase sempre, sejam os que mais facilmente enxergamos; a raiz é o nosso relacionamento “vertical” com Deus. Em última análise, todos os problemas humanos são sintomas, e nossa separação de Deus é a causa.[1]

 

Os problemas do mundo nada mais são que os sintomas de um veneno mortal que contaminou o ser humano em Gênesis 3 quando Adão e Eva preferiram ouvir a palavra da serpente à Palavra de Deus. O ser humano foi envenenado pela fome de poder e pela fome de querer subir para ser como Deus ou maior que Deus – tanto que logo em seguida surgiu a Torre de Babel.

Hoje essa doença está ainda mais presente, embora se encontre invisível. Terry Eagleton, um filósofo e sociólogo inglês, diz assim no seu livro “Esperança sem otimismo”, explicando o conceito de desespero na filosofia de Soren Kierkegaard:

Viver no imediatismo e na ilusão é ser privado de esperança, e ignorar o fato é um sintoma dessa doença. Na verdade, o desespero nesse sentido é, para Kierkegaard, um fenômeno de massa, tão conhecido como a chuva ou o sol. Existem muitas pessoas que se consideram satisfeitas, mas que realmente estão em maus lençóis, um pouco como quem acredita que está bem de saúde, mas na verdade está com uma doença terminal. Na opinião de Kierkegaard, é como se a maioria das pessoas do planeta estivesse atormentada por uma doença invisível que elas ignoram completamente, sobretudo porque ela usa o pseudônimo de felicidade.[2]

 

A doença da qual estamos falando tem nome: se chama pecado. Hoje, esta doença está bastante invisibilizada. Aliás, nem se pode mais falar em pecado. E hoje a doença do pecado é ainda menos conhecida porque se esconde debaixo do nome felicidade. O pecado se fantasia de felicidade. O problema é que a doença não deixou de ser menos mortal do que fora antes. A sua consequência inevitável continua sendo a mesma: a morte!

Alienado de Deus, o ser humano se separou também do seu próximo e da Criação. Lutero dizia que o ser humano é alguém incurvatus in se, ou seja, encurvado em si mesmo, que enxerga apenas o próprio umbigo e seus próprios interesses. Isso continua acontecendo. Mas hoje isso ganhou o nome de felicidade. Ou seja: felicidade é pensar primeiro em si, colocar-se como prioridade, agir sempre em benefício próprio, apostar no próprio potencial de melhoramento espiritual, confiar no progresso humano...

Estamos doentes! Fomos envenenados pelo pecado! E o veneno é mortal! A morte significa a completa separação de Deus para sempre! Mas, graças a Deus, não fomos abandonados. Deus mesmo providenciou o antídoto que anula e acaba com o veneno. Um antídoto tão poderoso que fez a cabeça da serpente ser pisada! E esse antídoto é o próprio sangue do Cordeiro derramado na cruz pela nossa salvação – sangue que lava e purifica de todo pecado e mal e concede uma nova vida com novas obras!

Mas, é preciso olhar para Cristo. É preciso desencurvar-se e contemplar o Cordeiro crucificado na Cruz! Eis em Jesus, o Cordeiro, a verdadeira paz, a verdadeira felicidade e a verdadeira razão de viver! A cura providenciada pela cruz de Jesus é capaz de desencurvar o ser humano para que ele deixe de olhar apenas para si e passe a contemplar o milagre divino na crucificação de Deus.

É exatamente disso que Jesus está falando no texto do evangelho conforme João 3.14-21. Aliás, todas as leituras bíblicas deste 4º Domingo na Quaresma (Números 21.4-9; Salmo 107.1-3,17-22; Efésios 2.10) apontam de maneiras diferentes para a contemplação de Deus que traz salvação ao seu povo e para as consequências dessa salvação.

Vejamos bem o que Jesus disse sobre a doença e a cura do pecado: E assim como Moisés levantou a serpente no deserto, assim é necessário que o Filho do Homem seja levantado, para que todo o que nele crê tenha a vida eterna”. (João 3.14-15). Aqui há uma referência direta a Moisés. Ao caminhar pelo deserto, o povo de Deus se tornou impaciente e começou a se queixar. Por causa disso, Deus enviou para meio deles cobras venenosas que os mordiam. Ao reconhecerem a causa dessa desgraça, o povo pediu que Moisés orasse a Deus pedindo o perdão e que as cobras fossem retiradas. Agora vamos ao texto bíblico: “O Senhor disse a Moisés: - Faça uma serpente e coloque-a sobre uma haste. Quem for mordido e olhar para ela viverá. Moisés fez uma serpente de bronze e a pôs sobre uma haste. Quando alguém era mordido por alguma cobra, se olhava para a serpente de bronze, ficava curado.” (Números 21.8-9).

Ou seja: havia cura apenas ao olhar para a serpente de bronze. Agora, Jesus diz que ele mesmo será levantado, não para a cura de picadas de cobra, mas para a cura da doença mortal da humanidade: o pecado. Ele será levantado no tronco da cruz! Quem contemplar o sofrimento de Deus no Filho e crer, vencerá a morte e terá a vida eterna. Por isso o apóstolo Paulo afirmou, conforme Romanos 6.23, que “o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus, nosso Senhor”. Onde está a cura para a doença do pecado? No Cristo pregado na cruz levantada no monte Gólgota.

E então, Jesus nos diz um dos versículos mais conhecidos da Bíblia e que Lutero definia como “a Bíblia em miniatura”: “Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna”. (João 3.16). Que promessa maravilhosa! A cura do pecado não é apenas resultado da vontade de Deus; a cura da humanidade trazida por Jesus é o resultado do amor incondicional de Deus. Embora doentes e condenados, Deus não nos abandonou à nossa própria sorte! Ao contrário, Deus decidiu providenciar a nossa salvação através de Jesus.

Contudo, não basta acreditar em Deus e em Jesus. Acreditar em Deus e em Jesus é muito simples. Tão simples que Tiago, irmão de Jesus, diz em sua carta: “Você crê que Deus é um só? Faz muito bem! Até os demônios creem e tremem.” (Tiago 2.19). Acreditar, isso até os demônios sabem fazer. Por isso, Jesus não fala de um mero acreditar, mas fala em crer. Crer implica compromisso! Crer implica em transformação! Crer implica em mudança de vida! Crer implica em prática de obras a partir da graça recebida! O critério não é acreditar; o critério é crer: “Quem nele crê não é condenado; mas o que não crê já está condenado, porque não crê no nome do unigênito Filho de Deus”. (João 3.18). Apenas saber o que Jesus fez não é suficiente. Apenas ter conhecimento bíblico e teológico não é suficiente. Apenas fazer boas obras não é suficiente para a cura da doença mortal da humanidade. Crer, isso faz a diferença! Assumir um compromisso! Viver com Jesus. Abandonar a velha vida e assumir uma nova existência em amor a Deus e ao próximo.

Crer implica em renunciar a si mesmo, tomar a cruz de Jesus e segui-lo. Crer implica em trocar a ganância pela solidariedade; trocar o imediatismo pela paciência; trocar o desespero fantasiado de felicidade pela esperança; trocar a guerra pela paz; trocar o mal pelo bem; trocar a falsidade pela fidelidade; trocar a grosseria pela mansidão; trocar a impulsividade pelo domínio próprio. E o apóstolo Paulo diz acertadamente que “contra essas coisas não há lei”. (Gálatas 5.24). Essa é a nova vida em Jesus Cristo. Esse é o significado prático de crer. Enquanto acreditar é um exercício meramente intelectual e racional, crer é um exercício que necessita intrinsecamente da prática!

Por isso, a consequência de crer em Jesus que foi levantado na cruz é a prática de obras enquanto contínuo exercício de desencurvar-se de si mesmo e ir em direção ao próximo em seus sofrimentos – e que sofre com os sintomas da doença do pecado. Quantas vítimas inocentes a doença do pecado faz no mundo? Olha a dengue, por exemplo! Quantas vítimas são feitas pelo descuidado de seres humanos uns com os outros? E os desastres naturais? Quantas vítimas são feitas por causa da exploração predatória da Criação de Deus? E as guerras? Quantas vítimas são feitas por homens que se recusam a recuar e buscar soluções que não necessitem de armas?

Os sintomas da doença mortal do pecado estão presentes no mundo todo. Jesus fala disso a partir da metáfora da luz: “Pois todo aquele que pratica o mal detesta a luz e não se aproxima da luz, para que as suas obras não sejam reprovadas. Quem pratica a verdade se aproxima da luz, para que as suas obras sejam manifestas, porque são feitas em Deus”. (João 3.20-21). É interessante perceber que geralmente o que é feito às escondidas ou pelas costas não pode ser algo bom e nem condizer com a verdade. A verdade é transparente e clara! Não precisa de rodeios, voltas e reuniões às escondidas! O que é planejado às escondidas certamente não vem de Deus!

 

Amados irmãos, amadas irmãs,

Pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas”. (Efésios 2.10). Se fomos curados de uma doença mortal, agora, através de obras, é nossa tarefa levar cura ao mundo. O mundo está doente – e não enxerga que está doente! O veneno do pecado está estruturalmente impregnado no mundo, causando violência, destruição e mortes! Ao contemplar o Cristo crucificado, recebemos o antídoto que concede gratuitamente a cura definitiva para a nossa doença mortal. Nossa tarefa é compartilhar esse antídoto com outras pessoas. Como podemos fazer isso? Sendo, na força do Espírito Santo, a presença de Cristo neste mundo.

Podemos ser “pequenos Cristos” com as pessoas que estão à nossa volta e, a partir da nossa vida, manifestar a cura que Deus já providenciou para toda a humanidade. Para ilustrar melhor o que isso significa, quero finalizar a pregação com a leitura de um texto que está no Caderno de Estudos do Lema do Ano da IECLB para 2024. Diz assim:

Cristo não tem mãos:

tem só as nossas mãos

Para cuidar da criação,

incluindo o ser humano,

sobretudo aquele que está mais vulnerável e sem

seus direitos respeitados.

 

Cristo não tem pés:

Tem só os nossos pés,

Para ir às pessoas ali onde estão,

A fim de dispor-se a amá-las e auxiliá-las.

 

Cristo não tem lábios:

Tem só os nossos lábios

Para falar do grande amor de Deus pela humanidade

E de seu plano de que cada ser que respira

tenha vida feliz e digna.

 

Nós somos a verdadeira Bíblia

Que as pessoas ainda leem!

Somos a última mensagem de Deus,

Escrita em obras e palavras.[3]

 

A doença era mortal, mas Deus providenciou a cura! Curados, restaurados, reconciliados e transformados, busquemos juntos a cura do mundo. “Sozinho, isolado, ninguém é capaz” (LCI 605). Mas, “de mãos dadas vamos conseguir ajudar a quem por nós chamar; com os dons unidos vamos definir a força que pode dar a quem pedir”. Eis a cura disponível a todos e todas que quiserem se achegar ao trono da graça. Amém.

 

 


[1] KELLER, Timothy. Igreja centrada: desenvolvendo em sua cidade um ministério equilibrado e centrado no evangelho. São Paulo: Vida Nova, 2014. p. 36.

[2] EAGLETON, Terry. Esperança sem otimismo. São Paulo: UNESP, 2023. p. 108.

[3] FLINT, Ani Johnson. “Cristo não tem mãos” (Adaptado). apud: BUTZKE, Paulo Afonso (Coord.). Estudos sobre o lema bíblico 2024. Porto Alegre: Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, 2023. p. 37.


Autor(a): P. William Felipe Zacarias
Âmbito: IECLB / Sinodo: Rio dos Sinos / Paróquia: Sapiranga - Ferrabraz
Testamento: Novo / Livro: João / Capitulo: 3 / Versículo Inicial: 14 / Versículo Final: 21
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Prédica
ID: 72431

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