Paróquia Ferrabraz

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Nem sempre a vida é aquela Brastemp | Lucas 10.38-42

6º Domingo após Pentecostes

16/07/2022

 

Amados irmãos, amadas irmãs,

vivemos dias agitados. Todos nós – cada um à sua maneira – sabe o que significa uma vida em movimento nas correrias que temos diariamente. Há dias em que as 24 horas que temos à disposição parecem não ser suficientes para tudo o que temos a fazer. Sem contar as surpresas que a própria vida nos reserva no meio desta “corrida maluca” que vivemos.

Considerada uma das grandes invenções da humanidade, a máquina de lavar roupas que “faz tudo” queria revolucionar a vida das mulheres e das famílias. Lavar, enxaguar e secar já não precisaria mais ser um longo e duro processo manual; também não seria mais necessário ter uma centrífuga separada da máquina de lavar roupas e ter o trabalho de retirar as roupas de uma para colocar em outra. Bastava ter uma Brastemp que a vida da mulher moderna estaria resolvida:

 

Ah se a Marta tivesse uma Brastemp. Quem sabe todos os problemas dela estariam resolvidos e ela teria muito mais tempo para ouvir os ensinamentos de Jesus.

Mas, nem tudo é o que parece. De fato, as donas de casa poupam bastante tempo com as máquinas de lavar que “fazem tudo”. Entretanto, o tempo liberado pela máquina é ocupado por outras atividades diárias. A grande verdade é que com ou sem Brastemp (ou outras marcas) a vida das mulheres continuou e continua corrida. Embora tenha usado o exemplo das mulheres, a situação não é nada diferente para os homens que também vivem uma correria diária em seus afazeres. Eu também não estou isento desse “problema”.

O avanço tecnológico sempre surge com a promessa de que uma atividade antes difícil será facilitada para que as pessoas tenham sobra de tempo de qualidade para suas famílias, amigos, irmãos e irmãs na fé. O problema é que isso é uma grande mentira. Diante de todos os avanços tecnológicos que tivemos nos últimos 200 anos, podemos perceber claramente que embora a tecnologia facilite, de fato, a vida, ela não consegue fazer com que paremos de correr. Continua não sobrando tempo para a esposa ou o marido, para os filhos, para a comunidade de fé, para os amigos, assim por diante.

Isso afeta diretamente à nossa comunidade de fé. Infelizmente, por causa da correria “esquizofrênica” que enfrentamos diariamente ou semanalmente, muitas vezes não sobra tempo para a igreja. As pessoas correram tanto durante a semana que no final de semana se torna difícil acordar e levantar para estar em comunhão. Muitas pessoas também não desejam assumir compromissos com a igreja porque já estão cheias de compromissos com o mundo.

Vivemos algo que decidi chamar de “o tempo de Marta”. Todos nós vivemos um tempo em que mais do que nunca nos parecemos com Marta, essa personagem de Lucas 10.38-42. Quais são as marcas do “tempo de Marta?”

1 VIDA SEM TEMPO

Uma das maiores marcas do “tempo de Marta” é a frase: “não tenho tempo!”. Não são poucas vezes que escuto essa frase. Há tempo para tudo, menos para o Reino de Deus. “Se sobrar tempo, então essa pequena quantidade de minutos ou horas será dedicada à Igreja de Jesus. Mas, o pastor que não invente muita coisa porque se demorar muito eu “caio fora”. Quantos de nós temos esse pensamento? Há tempo para tantas coisas; quando é para servir a Deus com alegria, aí “não temos tempo”, embora todos recebamos as mesmas vinte e quatro horas todos os dias.

2 VIDA SEM IGREJA

Nos preocupamos demais com os afazeres da vida a ponto de não sobrar tempo para a leitura devocional da Bíblia, para o Estudo Bíblico, para o culto, para o grupo de jovens, para o grupo de casais, para a OASE, para o grupo de homens, para o coral, enfim, para assumir um cargo no presbitério da comunidade e paróquia. Não precisamos e nem temos a possibilidade de participarmos de todas as atividades que estão em nosso calendário. Porém, deveria ser nosso compromisso participar ativamente de pelo menos uma delas, com vontade de estar presente e fazer diferença, sem desculpas esfarrapadas.

3 VIDA CORRIDA

O “tempo de Marta” é a vida em correria. Não sobra tempo para contemplar as belezas da Criação de Deus; não sobra tempo para uma leitura de qualidade; não sobra tempo para ouvir uma música sem estar fazendo outras coisas; nem mesmo para viver o luto sobra tempo. Após alguns dias da morte de alguém, o “deus-mercado” exige que voltemos ao “normal” e sejamos úteis novamente. Aliás, nem para ficar doente sobra tempo às vezes. É preciso se entupir de remédios para continuar correspondendo às expectativas do “tempo de Marta”; Depressão? O “deus-mercado” não aceita a depressão como doença. Será dito que é “preguiça”, “falta de compromisso”, “vagabundagem” ... No “tempo de Marta”, saúde mental se torna algo cada vez mais raro. Pessoas que não conseguem corresponder às expectativas do “deus-mercado” se sentem frustradas, desanimadas, depressivas... A correria pode ter ceifado o sentido da vida de muita gente.

4 VIDA ÚTIL E INÚTIL

No “tempo de Marta”, somos medidos apenas pelo valor da nossa utilidade. Quando somos afligidos por doenças, problemas mentais, familiares ou por algum acidente, somos tornados inúteis diante da sociedade em que vivemos.

A isso se dá o nome de utilitarismo que é a ideia de que uma pessoa só vale e é importante enquanto puder ser útil. Do contrário, será descartada da sociedade como algo que já não serve mais. Quando alguém sofre um acidente ou tem problema de saúde e precisa ser aposentada antes do tempo, diz-se que é uma aposentadoria por “invalidez”. Ou seja: a pessoa valia algo. Agora, por causa do que aconteceu, perdeu todo o seu valor. Que coisa horrorosa!

No utilitarismo, as pessoas deixam de ser pessoas para serem transformadas em coisas. Não há um olhar para a dignidade do ser humano criado à imagem e semelhança de Deus. O que lhe torna digno é o trabalho, não Deus. Em uma sociedade utilitarista, não há lugar para embriões, pessoas com deficiência, idosos ou desempregados. Todos eles serão considerados inúteis, ou seja, descartáveis. Uma sociedade utilitarista iria elogiar Marta por sua utilidade e criticar Maria por perder tempo ouvindo a conversa de Jesus.

5 VIDA COMO PODER DE CONSUMO

No “tempo de Marta”, a vida se resumo a ter “poder de consumo”. Trabalha-se para ganhar dinheiro e se ganha dinheiro para gastá-lo. Tudo é feito apenas em benefício próprio. Na lógica do poder de consumo, não há espaço para o outro: tudo é voltado para mim mesmo e não sirvo a ninguém senão apenas a mim. O tempo de Marta não permite o amor cristão que serve e doa livremente e com alegria.

Zigmunt Bauman, um falecido sociólogo polonês, diz:

Uma vez que o critério da pureza é a aptidão de participar do jogo consumista, os deixados fora como um “problema”, como a “sujeira” que precisa ser removida, são consumidores falhos – pessoas incapazes de responder aos atrativos do mercado consumidor porque lhes faltam os recursos requeridos.1

O “tempo de Marta” exige que as pessoas consumam. Por isso, os produtos já vêm com a obsolescência programada para que estraguem logo e as pessoas continuem comprando em massa, gerando uma enormidade de problemas como a degradação ambiental através do alto número de produtos eletrônicos, baterias, lâmpadas e plástico jogados nos lixos.

No “tempo de Marta”, a felicidade se mede não por se contentar com o que se tem e administrar bem os próprios recursos; ao contrário, nesse tempo a felicidade se mede pelo poder de compra, corroborado pela alegria de postar nas redes sociais para todos verem.

6 VIDA DIGITAL

Estudos recentes indicam que as novas gerações que estão vindo agora têm uma profunda sede por coisas “não digitais”, ou seja, por coisas “reais”, que podem ser tocadas, movimentadas, manipuladas, que tem cheiro, matéria, cor, formato. Uma das constatações disso é a volta do disco de vinil ao mercado. Empresas tem lucrado muito com esse nicho especialmente por causa da nova geração que cansou de ouvir músicas no spotify, no deezer, no youtube. Só no ano passado, a indústria cresceu 140%, juntamente com um retorno expressivo das fitas K7:

 

Talvez a “sede pelo analógico” seja uma sede pelo toque, pelo abraço, pelo carinho, enfim, uma sede por humanidade.

Como “Martas” que trabalham incansavelmente, estamos com saudade de experiências reais com coisas reais. Podemos usar o Disco de Vinil como exemplo. Assim diz David Sax, autor do livro “A Vingança dos Analógicos”: “A música se transformou em dados, mais um conjunto de zeros e uns flutuando em seu disco rígido, invisível e impossível de ser manuseada. Nada é mais sem graça do que dados”2.

Com isso não estou dizendo que agora todos nós (assim como o P. William) devemos começar a comprar Discos de Vinil. O que estou querendo dizer é que precisamos reaprender a investir tempo em coisas analógicas, ou seja, momentos em que o celular, a televisão ou outras tecnologias não sejam necessárias; momentos de conversa, recordação e empatia em família.

Além disso, é preciso parar também para contemplar as belezas do mundo. Isso significa olhar para algo não porque aquilo me serve de alguma maneira, mas simplesmente porque aquilo é o que é: seja uma flor, uma árvore, um passarinho... Ricardo Barbosa, um pastor Batista, diz: “A cultura moderna valoriza mais as obras da carne como expressões de realização e liberdade, do que o fruto do Espírito. Isso revela o grau de alienação em que vivemos”3. Quem vive apenas no celular se tornou quase um “alien”, alguém que não está mais no planeta terra a muito tempo.

Amados irmãos, amadas irmãs,

poderíamos ficar divagando muito ainda sobre o tempo em que vivemos. Porém, uma coisa é clara: hoje, somos muito mais parecidos com Marta que com Maria. A repreensão de Jesus à Marta é uma repreensão que cabe muito bem a todos nós em pleno ano de 2022: “ – Marta! Marta! Você anda inquieta e se preocupa com muitas coisas, mas apenas uma é necessária. Maria escolheu a boa parte, e esta não lhe será retirada”. (Lucas 10.41-42). O anúncio de Jesus pode ser resumido assim: damos muito valor ao que não tem tanto valor e pouco valor ao que tem valor. E acredito que nem sempre somos plenamente culpados por isso. Talvez, sejamos vítimas de um sistema que nos criou para sermos assim, apenas úteis e descartáveis. Porém, somos chamados a fazermos diferença dentro das nossas casas. O chamado de hoje não é para imitarmos a Maria que parou para ouvir os ensinamentos de Jesus. Ao contrário, o convite é que nós sigamos ao próprio Jesus de Maria.

Os posts no facebook e no instagram passam; os stories passam; as mensagens de whatsapp também passam; o que fica é a experiência. Precisamos construir memórias! Nossas crianças já não brincam mais na rua (claro, é perigoso); também não sobem em árvores e “quebram o braço”, não correm no pasto (pra quem é do interior); tudo isso proporcionava memórias que ajudam a vida a ter sentido. Hoje, toda a memória está terceirizada no smartphone. O chamado de Jesus a nós que vivemos no “tempo de Marta” é que vivamos com qualidade de vida através de bons relacionamentos e administrando o nosso tempo com sabedoria, dando, inclusive, espaço para a Palavra de Deus trabalhar em nossas vidas.

Maria escolheu a melhor parte: ela colocou as relações acima do trabalho, a paciência acima da correria, o ouvir acima do falar, o real acima do imaginário, o presente acima do futuro, a comunhão acima da solidão... Por isso, ela foi elogiada. Que todos nós, “Martas do século XXI”, sejamos mais “Marias”.

Término lembrando algumas frases da música “Epitáfio” da banda Os Titãs. Epitáfio é o nome dado àquele dizer que vai em cima de uma sepultura. Com essas palavras, desejo que tenhamos tempo o suficiente para mudarmos o rumo das nossas vidas:

“Devia ter amado mais,
ter chorado mais,
ter visto o sol nascer.
Devia ter arriscado mais
e até errado mais,
ter feito o que eu queria fazer.

Devia ter me importado menos com problemas pequenos,
ter morrido de amor;”

Amém.


6º DOMINGO APÓS PENTECOSTES  | VERDE | TEMPO COMUM | ANO C


17 de Julho de 2022

P. William Felipe Zacarias


1 BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 24. Grifos do autor.

2 SAX, David. A vingança dos analógicos. Rio de Janeiro: Anfiteatro, 2017. p. 33.

3 BARBOSA DE SOUZA, Ricardo. A Contemplação do Belo. in: < http://www.monergismo.com/textos/vida_piedosa/contemplacao_belo.htm >. Acesso em: 15. jul. 2022.


Autor(a): P. William Felipe Zacarias
Âmbito: IECLB / Sinodo: Rio dos Sinos / Paróquia: Sapiranga - Ferrabraz
Área: Confessionalidade / Nível: Confessionalidade - Prédicas e Meditações
Testamento: Novo / Livro: Lucas / Capitulo: 10 / Versículo Inicial: 38 / Versículo Final: 42
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Prédica
ID: 67583
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