Assim quero chamar o personagem principal que há anos contou-me sua biografia.
Morávamos lá pelas bandas de Tijuco Preto. Papai era comprador de café. Tinha muito café no paiol. E também tinha dinheiro. Os colonos traziam o café e o deixava para papai vender. Não levavam dinheiro e o pai resolveu comprar mais terra. Isto era lá pros anos de 1928. Lembra-se do grande desastre econômico causado pela quebra da Bolsa de Valores em 1929? De repente o café não tinha mais valor! Papai tinha dívidas, mas o café teria dado para pagar tudo e sobrava dinheiro. Como usar o café para pagar dívidas, porém, se o mesmo não tinha mais valor? Daí a desgraça caiu sobre nós e arruinou tudo.
Nós éramos uma porção de irmãos, todos ainda pequenos. Pai e mãe tinham uma vida tranquila. Nada faltava. E de repente esta desgraça. Os credores vieram e queriam dinheiro. Ninguém queria seu café de volta. Começaram a levar nossos animais - vacas e mulas - selas e arreios, nossas ferramentas e por fim tomaram a terra. Para complicar ainda mais esta desgraça, mamãe, prevendo a miséria, não aguentou e fugiu abandonando- nos com nosso pai. Ele, não sabendo o que fazer, confiou-nos a algumas famílias para não morrermos de fome. Quando todos estavam abrigados, ele seguiu a pé para Minas com apenas uma trouxa de roupas.
Eu, menino de 10 anos, fui dado para Augusta e Carlos. Era um casal que, como soube posteriormente, não podia ter filhos. Augusta era muito braba e quando ela entrava naqueles dias difíceis batia por qualquer coisa em mim com tanta fúria como se quisesse me matar.
Eu sofri muito, mas não tinha para onde ir. Ainda bem que seu Carlos me levou para a casa de seu cunhado, o Emílio. Acho que Carlos estava com medo que Augusta ia me matar a porrete qualquer dia daqueles. Na casa do Emílio eu tinha comida melhor e mais tranquilidade. Pelo menos não apanhava. Mas para não apanhar eu tive de me submeter às mais degradadas chantagens que a mulher do Emílio, uma mulher avantajada e com pouca coragem de capricho, me impunha. Ela tinha uma porção de crianças pequenas. Sabe, naquele tempo esse negócio de fralda não existia. Ela dizia: você toma conta das crianças e sempre lava a bunda e a roupa delas e se você não fizer eu falo pro meu marido e ele vai te bater com o chicote. E assim eu fazia correndo todo o dia a qualquer hora este serviço, assim, com as mãos. Eu não queria mais apanhar. As lembranças da casa da Augusta e do Carlos me atormentavam ao ponto de fazer este trabalho fedorento com o maior prazer, por vários anos. Pois criança pequena, na casa do Emílio sempre tinha.
O tempo foi passando. Fui crescendo e Emílio me mandou pro ensino confirmatório lá em Rio Ponte. Depois de um tempo confirmei no Domingo de Ramos. Era bonito, acho que foi com o tal do Pastor Soboll. Logo depois naquela Páscoa o Emílio recebeu uma grande visita de seu irmão França, lá de São Bento do Pancas. Lembro-me tão bem daquele dia. Eu era um jovem adolescente na flor da vida e já podia ouvir a conversa dos grandes. O França olha para mim e diz para seu irmão Emílio: ‘Tu tens aqui um jovem bonito e forte. Este eu podia aproveitar lá na minha fazenda!’ E o Emílio respondeu: ‘Olha França! Ele confirmou há poucos dias, está livre e pronto à tua disposição’.
E assim, após a Páscoa fui junto para São Bento. Lá eu aprendi a trabalhar de tudo. Cuidar do café, do plantio até a colheita. Derrubar mata. Cavoucar estradas. Carnear porco e boi. Fazíamos de tudo. Fui crescendo e aprendendo. Um dia veio o jovem Pastor Heid e pernoitou na casa de seu França, onde lá terminava a estrada de caminhão. Noutro dia ajudei a carregar a mudança do Pastor Heid nas mulas até São Bento. Mais adiante em Laginha já existiam vários comerciantes e com uma forte freguesia. Na época os comerciantes queriam empregadas. Santa Maria de Jetibá era uma terra pobre. Muitas moças daqui iam trabalhar de empregada na casa de comerciantes lá pro norte e foi assim que uma destas empregadas veio a ser minha esposa. Pastor Heid fez o nosso casamento lá na Capela em São Bento.
Trabalhamos como meeiros em vários lugares. Fomos morar também em Vila Pavão, depois voltamos para São Bento, moramos um tempo com dona Amélia e seu Theodoro. Mudamos para Floresta. Um dia destes ganhei um recado de dona Amélia: ‘Venha nos fazer uma visita, temos uma coisa importante para você’. Eu mal podia imaginar que coisa importante seria, mas eu fui. Curioso. Era de tarde e encontrei dona Amélia e seu Theodoro muito alegres. Tinha mais gente por lá. Não me incomodei com isso, pois dona Amélia e seu Theodoro sempre tinham empregados. Pediram para ficar para o jantar. Amélia serviu a janta na mesa e convidou todo mundo. Lá pelas tantas, todo mundo comendo, dona Amélia olha para mim e para o estranho que estava sentado a meu lado e pergunta: ‘Vocês dois se conhecem’? Nos olhamos e, claro, demos sinal negativo. Um não conhecia o outro. Seu Theodoro deu uma risada e pediu: ‘Olhem-se de novo’. Mas éramos realmente estranhos. E daí a surpresa da vida. ‘Olha bem para o seu pai. Este é o seu pai que desde criança não viu mais!’, disse Amélia para mim.
“Pastor! Não dá para contar o que senti no meu coração naquele momento. Meu pai tinha andado de fazenda em fazenda, lá pelas bandas de Minas, trabalhando muito e por fim, velhinho, volta ao Espírito Santo chegando numa casa onde também eu já havia passado. Confesso que nunca teria reconhecido meu pai. Graças a ajuda do casal Amélia e Theodoro, reencontrei meu pai depois de tantas andanças dele e minhas por este mundo”, disse Ele.
Esta é uma das histórias de sofrimento de nosso povo. Todos os personagens citados já não vivem mais. Também Ele faleceu numa boa idade após muitas peregrinações e atribulações. Por acaso visitei o casal num dia destes há muito tempo lá na Terra Fria. Cheguei às 14h para uma pesquisa genealógica. Encontrei-o numa casa humilde e ele, animado, contou-me sua biografia de forma cativante. Quando saí de sua casa já estava escurecendo.