Estudo de Texto para Bênção Matrimonial - João 2.1-11

10/02/1988

ESTUDO DE TEXTO PARA BENÇÃO MATRIMONIAL
João 2.1-11

Otto Hermann Ramminger e
Edna M. Ramminger

I – Texto

No Evangelho de Marcos a aparição pública de Jesus se dá com curas de doentes; em João, com o milagre do vinho na festa de casamento em Caná.

A perícope pertence à tradição que não mostra um estilo característico de João. Havia uma fonte de sinais pré-joanina. Essa narração João retrabalhou e a colocou no seu evangelho. Do ponto de vista da história da forma temos aqui uma história de milagre de caráter novelístico:

Introdução (v. 1-2)

— Preparação do milagre (v. 3-5)

— O milagre (v. 6-8) e o

Final demonstrativo (v. 9-10).

Não tem paralelo na tradição sinótica. Trata-se de um motivo epifânico do Culto a Dionísio, que um judeu-cristão-helenista preparou antes de João para a anunciação de Cristo, pois as leis de purificação do judaísmo tardio estão pressupostas (Schulz, p. 45).

V. 1-2: Jesus, seus discípulos e sua mãe estão convidados para um casamento. O casamento era em Cana, distante 13 quilômetros ao norte de Nazaré. As festas de casamento duravam, em gerai, uma semana, tempo em que os convidados iam e vinham, não sendo obrigados a permanecer todo esse tempo no local da festa.

V. 3: Faltou vinho e isso era embaraçoso. Vinho era bebida comum, usada diariamente para matar a sede. Falta de vinho numa festa de casamento provavelmente era muito desagradável, estragava a festa. Quando o vinho acaba, a mãe de Jesus lhe comunica isso. Schulz (p. 46) acha que ela quer motivá-lo a fazer um milagre, pois ela também vê o filho como em fazedor de milagres. Essa ideia parece meio exagerada, pois toda a narração do milagre é curta, sem detalhes, parecendo narrar algo natural. A mãe de Jesus, nesse contexto, também teria uma postura natural: comunica o fato ao filho e depois prepara os empregados para o que ele vai fazer.

V. 4: A resposta de Jesus é seca. Garante um distanciamento frente ao pedido da mãe. Explica que não chegou a sua hora. Não há consenso que essa hora se refira ao momento de sua morte e glorificação. Melhor seria compreender que com essa resposta Jesus não permite que lhe prescrevam a hora em que deva atuar. João quer deixar claro que Jesus não depende de sugestões humanas mas unicamente de ordens do Pai (Schulz, p. 46).

V. 5: Pela reação da mãe de Jesus nota-se que ela espera que ele vá fazer alguma coisa. Parece que ela tem alguma posição de importância ou desempenha alguma função na casa da festa; pois, confiante, manda que os empregados façam o que Jesus lhes disser. Os empregados, sem saber, se tornam ajudantes de Jesus nesse milagre.

V. 6: As talhas de pedra com água serviam para os ritos de purificação, provavelmente do judaísmo tardio. As pessoas lavavam as mãos antes e depois das refeições. Essas três talhas continham de 480 a 720 litros de água.

V. 7-8: Contém as duas ordens de Jesus. Ele manda que as talhas sejam enchidas totalmente. Depois, que seja levado delas ao chefe da festa que, num casamento desses, era um escravo responsável pela organização da refeição (Schulz, p. 47). A narração não contém detalhes. Não diz como aconteceu o milagre, apenas o pressupõe. Jesus nem toca nas talhas.

V. 9-10: Tratam do reconhecimento público do milagre. Os empregados sabem que o vinho vem das talhas enchidas com água, mas a reação deles não é descrita. O chefe da festa, ao constatar a qualidade do bom vinho que os empregados lhes trazem, responsabiliza o noivo por ter guardado o melhor vinho para o fim da festa. Parece que a regra de servir primeiro o melhor vinho não existia, mas a colaboração dele serve para enfatizar a importância, a extensão, do milagre (Schulz, p. 47).

V. 11: Não é dito o que os convidados pensaram desse acontecimento. Só os discípulos reconheceram o primeiro dos sinais de Jesus. Os discípulos agora crêem que ele tem poder de fazer milagres. Milagre e fé se interligam, nesse caso, com naturalidade. João caracteriza essa ação, bem como todas as demais que nós chamamos de milagres, de sinal. Sinal para ele é um acontecimento pelo qual a pessoa, em fé, pode reconhecer o envio de Jesus. Conforme o v. 11, o milagre do vinho é sinal porque dele pode ser dito: ...manifestou a sua glória e os seus discípulos creram nele. (Goppelt, Hildmann, p. 90).

II — Meditação

1. A atuação pública de Jesus inicia numa festa de casamento

Segundo o evangelista João, Jesus inicia sua ação pública numa festa de casamento. Trata-se de uma grande festa. São vários dias em que gente vai e vem, bebe o come, se diverte. Certamente são necessários bons recursos para uma família dar uma festa dessa envergadura.

Casamento se festeja também nos dias de hoje. São festanças de 800 convidados em clubes sociais. São festanças de 150 convidados em restaurantes finos. São festanças em pavilhões de comunidades, à sombra de árvores, de galpões ou de puxados ao lado das casas. São festas para as quais se convidam apenas familiares e pessoas mais amigas e para as quais se engordou um boizinho ou um porquinho que bem deveria ser vendido para comprar roupas para as crianças. São almoços ou jantares dos quais participam apenas os familiares e alguns amigos mais achegados. Festinha, festa ou festança,, via de regra, se festeja por ocasião de casamentos e se está propenso a gastar mais do que habitualmente. A gasosa, o vinho, a cerveja e outras bebidas fortes são servidas no dia do casamento, com fartura, para todos os convidados.

Há anos atrás, festejavam-se aniversários, não só o primeiro aninho das crianças. E também nessas ocasiões a festa era animada, mesmo que fosse só o café, o bolo e a caipirinha, na tarde do domingo seguinte ao dia do aniversário. É menor o número de pessoas que ainda festejam aniversários. Mas as festas de casamento, todos procuram fazer.

Casamento é momento especial. Foi assim no tempo de Jesus onde motivava festa de sete dias, e prossegue hoje motivando festas proporcionais aos recursos das famílias do noivo ou da noiva. Casamento traz em si algumas centelhas, alguns lampejos. Há otimismo e coragem nesse gesto porque inicia uma relação que implica em mudança radical no mundo dos relacionamentos: virão filhos, netos, outros casais, escola, amigos dos filhos-. Deve haver disposição de dizer não ao egoísmo, do contrário — mesmo que esteja bem claro que um vai se impor ao outro — mais cedo ou mais tarde, pode haver sérios desentendimentos. Há confiança nesse gesto porque se aposta na vida, se dá continuidade à vida, sem ter qualquer certeza sobre o dia de amanhã. Festeja-se, assim, a aposta, a confiança na vida, a continuidade da vida, enfim, a própria vida.

Quando pensamos em Jesus, ele nos vem à mente, em geral, como um asceta, sisudo, alguém que recrimina até o direito ao divertimento, pelo fato de ter uma atitude sempre voltada à defesa e apoio aos fracos, pisados e desprezados deste mundo. Aqui, no entanto, nós o vemos participando da festa de casamento, não como alguém que veio estragar a festa ou criar consciência pesada nas pessoas que se divertiam, mas participando da festa de forma tão ativa a ponto de dar mais vinho para que a festa não fosse prejudicada. Em Mt 11.19, até se caricaturou Jesus como glutão e bebedor de vinho. Mesmo sendo calúnia de pessoas que não simpatizavam com ele, fica expresso que Jesus não era contrário ao bom comer, beber e festejar. Acabando o vinho, acabaria a festa. Jesus não permitiu que isso acontecesse. Ele quer que a festa prossiga.

2. Vinho é uma das dádivas do tempo da salvação

Em Mt 22.2, Jesus compara o Reino dos céus a uma festa de casamento. E não é uma festinha, mas festança mesmo, de casamento do filho do rei, onde certamente se come e se bebe com fartura e onde há muita alegria. Fica, assim, caracterizado o Reino dos céus como tempo de fartura, festa e alegria, onde não falta do melhor vinho. Vinho bom e abundante é uma das características do tempo da salvação, conforme temos descrito em Am 9.13, Jl 3.18, Jr 31.5. Também das bênçãos proféticas de Jacó a Judá fazem parte a videira excelente e o vinho (cf. Gn 49.11).

O primeiro dos sinais de Jesus, segundo relato de João, é casamento. Dessa maneira, fica estabelecido um contato entre Jesus e a expectativa judaica do tempo messiânico de salvação. Estabelece-se, na verdade, um duplo contato. Do mundo grego fazia parte um deus (Dionísio) que, durante a noite, enchia potes vazios de vinho (Voigt, p. 104). João chega, assim, ao encontro do mundo judeu e do mundo grego, nessa colocação do sinal do vinho como epifania de Jesus. Ele está dizendo: irrompeu o tempo de salvação.

3. Moisés prescreve água, Jesus dá o vinho

Muito sugestivo é o fato de o vinho que Jesus doou, ter tomado o lugar da água, usada pelos judeus no rito de purificação. Impureza trancava o caminho a Deus (Voigt, p. 106); daí era necessário o rito de purificação — a lei — para destrancar o caminho, para remediar. A lei, toda lei, enrijece as pessoas. Pessoas tornam-se servas obedientes a coisas decididas por alguém em situação talvez totalmente diferente. Cumprir a lei também satisfaz. Fica-se satisfeito por fazer o exigido e cria-se o espaço próprio onde se age do jeito que convém, sem ligar para o espírito que, um dia, criou a lei que se cumpriu. Ou seja, a lei é apenas uma defesa precária da vida, da própria vida, mas especialmente da vida dos outros. O vinho que Jesus colocou naqueles potes é algo muito maior do que a água —a lei —que eles continham.

Vinho é sinal de um tempo novo, tempo de alegria, de descontração, de não estar medindo tudo o que se dá, pensa ou fala. (Há até o ditado: No vinho, há verdade.) Vinho é sinal de corpo inteiro se colocando na causa, sem medir, com alegria, com arrojo. Os vasilhames sendo exatamente os mesmos, mas com essa mudança de conteúdo, o efeito é totalmente outro. Vinho é sinal do novo, sinal da vida que se defende, valoriza, porque se vê em todas as pessoas a imagem de Deus a ser valorizada e conservada. Água—lei—é sinal de imposição. Vinho — salvação, graça—é sinal de espontaneidade no servir.

Há entre os comentaristas uma tendência de relacionar o sinal do vinho com as palavras Eu sou de Jesus e, em especial, com a multiplicação dos pães. Ou seja, Jesus é o bom vinho que toma o lugar da água, da lei. Ele é vinho abundante, fonte inesgotável o da melhor qualidade. O sinal e fala, portanto, de Jesus mesmo. Ele quer ocupar o lugar antes reservado para as leis e outros deuses! Ele quer dar qualidade à vida. Ele quer fazer da vida toda — de cada dia — uma vida espontânea, abnegada, que não mede cada palavra, ato ou gesto em vista de rigorosas ordens, mas que sempre, em espírito de festiva alegria, se põe a serviço dos outros. Jesus não se nos impõe como um fardo. Ele é o bom vinho que alegra a festa da vida.

4. Glória de Jesus e fé

O chefe da festa provou do vinho, percebeu que era muito bom mas não demonstrou interesse pela proveniência do bom vinho. Nenhuma ligação se estabeleceu entre ele e o doador do vinho. Também os empregados que encheram os vasilhames de água e, por isso sabiam da proveniência do vinho que levaram ao chefe, não tiveram nenhuma reação. Além deles, muitas outras pessoas beberam, nos dias da festa, do bom vinho doado por Jesus, mas de nenhuma se conta que tenha perguntado pela origem do vinho, que tenha estabelecido uma relação com Jesus. Como não perceberam uma coisa tão evidente? Como puderam ver, provar, beber do vinho sem se tocar, sem perceber que algo maior havia acontecido?

É pergunta, ou constatação, que certamente fazemos muitas vezes ao longo de nossas vidas: Aconteceu isto ou aquilo na vida daquela pessoa, daquele casal ou daquela família e não perceberam?! Não perceberam uma interferência especial. Não perceberam que poderiam ter-se dado muito mal sem essa mão providencial! Aliás, nove dos dez leprosos que Jesus curou, que sabiam do onde veio a sua cura, não retornaram para agradecer.

Os que creram foram os discípulos. Estes sim, uns poucos, perceberam o sinal. Eles puderam ver o sinal uma ligação clara com o Criador. Eles puderam ser fortalecidos em sua fé através do sinal em que Jesus manifestou a sua glória. Reconhecer o sinal, qualquer sinal —a glória de Jesus —é um ato de fé.

5. A minha hora ainda não chegou

Parece que nessa palavra de Jesus, em que ele fala da sua hora, podemos ler duas ideias mais fortes. Em primeiro lugar dá a impressão de Jesus estar dizendo para sua mãe: Então há um apuro e você quer que eu quebre esse galho? Com todo respeito, mãe, você não pode me sugerir o que eu devo fazer. Olha, eu não posso me sujeitar à sua vontade! Quantas vezes nós corremos o risco de interferir na vontade de Jesus! Como pregadores e pregadoras seguidamente violentamos a vontade dele. Abrandamos o Evangelho, adequamo-lo aos desejos e à situação peculiar das comunidades para que todo mundo se sinta em paz. Corremos o risco de interpretar as palavras, os gestos mais desafiadores de Jesus a ponto de ficar letra, letra branda, letra que não desafia. Ou seja, corremos o risco de ocupar uma função que, segundo Jesus, pertence unicamente ao Pai: determinar-lhe o que fazer (cf. Jo 5.19).

Em segundo lugar, nesse caso, mais baseado nas outras passagens de João onde Jesus fala da hora, há uma grande hora que Jesus tem em mente. Em Jo 12.27, o contexto da hora é de morrer o grão de trigo para produzir fruto ou de perder a vida para ganhá-la, e a voz do céu que se segue fala da glorificação. Em Jo 17.1, a hora da glorificação abre a perspectiva da vida eterna para os que Deus confiou a Jesus Cristo. Jo 13.1 fala da hora de Jesus passar deste mundo para o Pai e o gesto subseqüente é o de lavar os pés dos discípulos. Assim, se nos torna possível associar a Grande Hora de Jesus à humildade, à cruz e à ressurreição. Certamente quando fala: Ainda não é chegada a minha hora (Jo 2.4) no sinal que marca o início de sua ação pública, Jesus já poderia ter presente o final dessa ação pública — sofrimento, cruz, morte e ressurreição. A partir desse final todos poderão ter vida, vida em abundância como ele diz, porque conteúdo novo — o melhor vinho — tomará conta dos velhos vasilhames.

III — Pistas para a alocução

Da meditação podem ser tirados diversas pistas para a elaboração de uma alocução de bênção matrimonial. A alocução poderia se basear em dois ou três itens dos abordados na meditação. Apenas a título de sugestão, pode-se desenvolver uma alocução nas seqüências abaixo:

Jesus participa da festa:

1. Jesus diz sim à alegria da festa de casamento. Ele participa da festa.
2. Ele dá ótimo vinho para a festa. Quer que a festa continue e seja bem alegre.
3. De convidado ele passa a hospedeiro. Torna-se atuante.
4. Ele diz sim à coragem e ao otimismo de duas pessoas que se aventuram na vida a dois. Ele diz sim à vida.

Jesus quer estar presente no dia-a-dia da festa da vida:

1. Jesus transforma a água da lei em vinho da salvação.
2. Jesus mesmo é o bom vinho.
3. Ele quer estar presente na festa da vida. Daí nos é possibilitado:
—servir com alegria
— fazer também da vida matrimonial um lugar constante da aceitação, perdão, compreensão, apoio mútuo na boa e na má hora.
4. Reconhecer a presença de Jesus é um ato de fé que precisa se renovar diariamente.

IV – Bibliografia

- ALTMANN, W. Meditação sobre Jo 2.1-11. In: Proclamar Libertação, v. IX. São Leopoldo, 1983.
- GOPPELT, L. & HILDMANN, G. Meditação sobre Jo 2.1-11. In: Calwer Predigthilfen.v. 11.1. ed. Stuttgart, 1972.
- SCHNEIDER, J. Das Evangelium nach Johannes. In: Theologischer Handkommentar zum Neuen Testament. 1. ed. Berlin, 1976.
-  SCHULZ, S. Das Evangelium nach Johannes. In: Das Neue Testament Deutsch.M. 4. 12. ed. Gõttingen, 1972.
- VOIGT, G. Meditação sobre Jo 2.1-11. In: Der Schmale Weg. Göttingen, 1978.

Proclamar Libertação – Suplemento 2
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia


Autor(a): Oto Hermann Ramminger e Edna Moga Ramminger
Âmbito: IECLB
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1988 / Volume: Suplemento 2
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 7320
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