E perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores
Ricardo Nör
I — Encontro com a Palavra
A quinta prece do Pai Nosso — E perdoa-nos as nossas dividas, assim como nós também perdoamos aos nossos devedores (conforme o texto em uso na IECLB) — foi colocada para um grupo de estudo bíblico formado por senhoras de um bairro (cidade pequena, predominantemente operária). Como motivação, relacionou-se o tema perdão aos muitos cultos com Santa Ceia que estavam sendo realizados (tempo de Paixão). No diálogo que se seguiu, surgiram as seguintes afirmações:
— Se eu não perdoo, Deus não tem obrigação de me perdoar.
— Eu me lembro de pessoas das quais tenho raiva. Se eu não posso perdoar, isto é pecado.
— Se eu não estou em comunhão com Deus, eu não posso perdoar.
— Não adianta a gente se chamar de cristão, e odiar o irmão.
— Só através da oração eu posso ter forças para perdoar.
— Sem a força, sem o amor de Deus, não é possível perdoar.
Característica para a reflexão no seu todo foi a primeira e a última afirmação. Nelas transparece uma questão importante levantada no grupo: o perdão ao próximo é condição para se receber o perdão de Deus ou, o contrário disso, é consequência do perdão recebido? As primeiras colocações foram no sentido de compreender o perdoo como condição: É preciso perdoar ò outro para conseguir o perdão de Deus. Mas, a medida em que a meditação foi se aprofundando, passou-se a entender o perdão como uma possibilidade que surge a partir de Deus: Sem a força, sem o amor de Deus, não é possível perdoar!
Martim Lutero, no Catecismo Menor, inicia com um reconhecimento da nossa situação diante de Deus: que ele não leve em consideração a nossa culpa; que ele nos ouça, apesar de tudo, pois não somos merecedores de pedir a Deus o que quer que seja. O que recebemos dele é presente, é pura graça.
Lutero ocupa a maior parte da sua explicação em considerar o nosso pecado diante de Deus e o castigo e condenação daí decorrentes. Só numa observação final, como consequência da tese principal, ele menciona a prontidão em perdoar e fazer o bem aos que pecam contra nós. O perdão é compreendido, aqui, de uma forma ativa: não só esquecer ou mesmo fazer de conta que não houve nada — mas praticar concreíamente o bem em favor daqueles que nos causaram dano!
A parábola do credor incompassivo (Mt 18.23-35) afirma: Deus tira o seu perdão quando não se está pronto a perdoar o devedor. O fato de que aceitamos realmente o perdão de Deus vai se mostrar na abertura em perdoar o outro. Veja também Mt 5.23s.
A pesquisa complementar apresentou o seguinte resultado:
— Assim como o homem só tem o perdão de Deus quando se volta, quando regressa para Deus, assim também só pode ficar com o perdão quando se volta para o próximo (Goppelt, p. 157).
— Quem pode perdoar, este já está debaixo do perdão de Deus (Schniewind, p. 87).
É importante destacar ainda que toda a oração do Pai Nosso parte do perdão de Deus já oferecido através de Jesus. O seu perdão é que nos possibilita ter comunhão com Deus e com os nossos devedores. Uma vivência baseada no perdão nos é dada por Deus antes de qualquer iniciativa nossa, na cruz de Cristo.
II — Meditação
Eu me lembro de pessoas das quais tenho raiva. Esta é uma das frases que surgiram durante o estudo bíblico mencionado. Ela é manifestação de um sentimento humano bem nosso: A reação natural diante dos nossos devedores é de não-perdão, de fechar-se em si mesmo e agir de acordo com a lei do talião (olho por olho, dente por dente). Mas a experiência da vida nos ensina que raiva gera raiva numa cadeia progressiva de revanchísmos.
Todas as vezes que oramos o Pai Nosso (quantas vezes de forma repetitiva e mecânica?), pedimos também que Deus perdoe as nossas dividas. A Quinta Petição tem a ver com o nosso reconhecimento de culpa. Quem já não alimentou a ilusão de poder levar uma vída sem culpa? Ou, então, se faz de conta que a culpa não é tão grave assim como parece, e se procura esquecê-la. Cedo ou tarde, porém, noa confrontamos com a nossa situação, assim como ela é. A Quinta Nllçio será levada a sério quando acompanhada de um exame honesto da realidade, na qual se encontra: Quais são mesmo as minhas dlvi-dai, tanto em atos concretos, como em omissões deliberadas ou nlo? É expressão de maturidade quando reconhecemos que somos de-vffdores e culpados.
Sem dúvida, uma avaliação pessoal diante de Deus é necessária. Mas a prece está colocada numa dimensão maior: Ela fala das nossas dividas. Um relacionamento com Deus reduzido a um individualismo estreito e limitado vai enxergar a realidade de forma distorcida. Ao orarmos nos vinculamos com todos os que conosco se dirigem a Deus (t com os outros também). Estamos no mesmo barco.e querer privati-lar o Pai Nosso significa descaracterizá-lo.
O perdão que se pede a Deus não é, portanto, um acontecimento Isolado. Ele traz junto consigo implicações claras para o relacionamento com os nossos devedores. Esta ligação entre perdão de Deus e perdão aos homens determina toda a compreensão da prece. Ambos fazem parte de uma mesma corrente: O perdão que Deus concede está, por assim dizer, engatado no perdão que nós damos. Não é possível separar uma coisa da outra. Usando uma outra expressão figurada: O perdão é como a circulação sanguínea: a passagem do perdão de Deus é obstruída quando deixa de haver perdão entre nós.
Poder perdoar é um ato de graça. Da graça de Deus! O que ele faz em nosso favor — e ele já fez tudo na cruz de Cristo! — vai se mostrar na convivência humana. É impossível receber o perdão de Deus — e continuar agindo em relação aos outros como se nada tivesse acontecido. Só quando a palavra libertadora do perdão de Deus passa a fazer parte de nós, é que surgem as condições para aceitar o outro com suas ofensas, culpas, dívidas. Então é possível um novo começo, transformado.
Comunidade cristã é comunhão de pessoas perdoadas. Em que medida isso é realidade entre nós? As Comunidades espelham esta situação? Que seria diferente se, de fato, vivêssemos, todos os dias de novo, do perdão consumado na cruz? Uma das consequências é que ressentimentos, desavenças, atritos de caráter pessoal seriam relativi-zados e, até mesmo, considerados irrelevantes em relação aos muitos e sérios desafios colocados diariamente diante da Comunidade. Gira-se, assim, em torno de si mesmo e se permanece introvertido, voltado para si próprio. Isto é, continua-se em situação de pecado — com sua.s dividas não perdoadas.
Culpa não assumida e não perdoada gera a formação de partidos e grupos antagónicos dentro da Comunidade, o que resulta, entre outros, na dispersão e perda do objetivo comum: o reino de Deus e a sua justiça.
O pregador, como participante do ministério da reconciliação, é colocado também diante da necessidade de possibilitar que aconteça no ambiente comunitário a oportunidade concreta de encontro daqueles que estão separados. Somente a Comunidade cristã reconciliada pode ser testemunho efetivo do amor de Deus no mundo.
III — Indicações para a prédica
Ponto de partida para a elaboração da prédica foi a reflexão realizada por ocasião do estudo bíblico. Na pregação foram usadas literalmente várias das constatações daí resultantes. Por ocasião da preparação surgiu a pergunta: Quando foi a última vez que manifestações de membros entraram numa prédica? Não só como forma de valorização exterior e sim para possibilitar uma participação efetiva da Comunidade na pregação!
Considerando que a Quinta Petição não está enquadrada na série de perícopes, entre outros, houve a possibilidade de planejar a sua abordagem com maior antecedência, sendo a prédica utilizada por ocasião de um culto onde se realizou também a Ceia do Senhor — a Ceia tem a ver com o perdão. Só é possível acontecer comunhão de fato, num ambiente onde se conta com o perdão de Deus e se experimenta concretamente uma convivência fraterna de perdão mútuo.
Anexo, um exemplo que serviu de ilustração para a mensagem:
— Alguns anos atrás, um motorista de caminhão atropelou uma mulher que veio a falecer logo após o acidente. A culpa fora do motorista. Por ocasião do julgamento ele recebeu a condenação de cinco meses de prisão e teve a sua habilitação de motorista cassada em definitivo. Foi uma dura pena para ele, não tanto pelos meses de cadeia, mas por ter a sua carteira apreendida para o resto da vida, pois esta era a sua profissão, o seu ganha-pão. Então aconteceu o inesperado: o marido da vítima levantou-se e falou do último desejo da esposa. O seu pedido era da que a condenação fosse a mais branda e breve possível — pois ela havia perdoado aquele homem! As pessoas presentes ao julgamento puderam perceber como estava sendo difícil e pesado para ele a perda da esposa e ficaram admirados quando ele ainda veio a dizer: E eu pessoalmente concordo com este último pedido de minha mulher.
IV - Subsídios litúrgicos
1. Intróito (introdução): Q Senhor é quem perdoa todas as tuas iniqülda-des, quem sara todas as tuas enfermidades, quem da cova liberta a tua vida e te coroa de graça e misericórdia (SI 103.3S).
2. Confissão de pecado: Senhor, Deus justo e misericordioso! Dá-nos agora a coragem para encarar de frente a nossa situação. Tu sabes muito bem o que temos feito e quem somos. Tu conheces a nossa fraqueza, as nossas dividas, a nossa culpa. Tudo isto pesa sobre nós. Não sabemos como sair desta situação e tememos que um dia ela se torne insuportável. Restabelece, tu mesmo, o que está estragado no nosso relacionamento contigo e com os outros. Cura-nos mesmo que doa em nós. O perdão que vem de ti, perdão que transforma e que liberta, não tem nada a ver com fraqueza ou omissão e sim com a verdade. Restaura-nos para uma nova comunhão — por causa do sofrimento e morte do teu filho Jesus Cristo na cruz! Com humildade e com confiança arriscamos em pedir-te: Tem piedade de nós, Senhor!
3. Absolvição (anúncio da graça): Feliz aquele a quem Deus perdoa os pecados § apaga as culpas. Feliz aquele que Deus não acusa de cometer injustiças, e que não é falso no intimo do seu coração. Enquanto não confessei os meus pecados, eu chorava p dia todo, até cansar. De dia e de noite-me castigaste, ó Deus, e as minhas forças se acabaram como o sereno que seca no calor do verão. Então eu confessei os meus pecados, e não escondi a minha maldade. Resolvi confessar tudo a ti, e tu perdoaste todas as minhas faltas (SI 32.1-5).
4. Oração de coleta: Jesus Cristo, nosso Salvador, nosso irmão! Estamos nos preparando para ouvir a tua Palavra e para participar da tua Ceia. Agradecemos-te por tornares isto possível, e pedimos que intercedas por nós para que o Pai nos envie o Espírito. Que o consolador crie em nós a comunhão fraterna, fundamentada no teu perdão, para que o teu corpo, que é a Comunidade, seja um sinal do teu reino. Amém.
5. Leitura bíblica: Mt 18.21-35
6. Oração final — tópicos para intercessão:
— Por todos os que sofrem debaixo do peso da culpa não perdoada.
— Por aqueles que ainda não podem perdoar seus devedores.
— Pelos casais e famílias que, embora vivendo juntos, estão distantes por causa de ressentimentos e incompreensões.
— Para que cessem as divisões existentes na comunidade.
— Por todas as vezes que perdemos de vista a realidade que nos cerca, com suas necessidades e privações, preocupados com a preservação egoísta de nossa suposta honra e bom nome.
— Pelos povos que se tornam cada vez mais dependentes de poderes dominantes, poderes insensíveis e desumanos.
7. Hinos: 48; 118; 197; 198; 241 (do Hinário da IECLB).
V — Bibliografia
GOPPELT, L. Teologia do Novo Testamento. Vol, 1. São Leopoldo/Petrópolis, 1976.
SCHNIEWIND, J. Das Evangelium nach Matthäus. In: Das Neue Testament Deutsch. Vol. 2. Gõttingen. 1968.
Proclamar Libertação – Suplemento 1
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia