Prezada comunidade,
Como está a sua memória? Você consegue guardar na memória as informações que precisam ser lembradas? A memória – esta capacidade de recordar – é fundamento para qualidade de vida. Sem memória a qualidade de vida de uma pessoa diminui. Isto é certo especialmente na medida em que a pessoa vai envelhecendo, e percebemos nem sempre podemos contar com nossa memória. Por exemplo, você vai ao quarto para buscar algo, mas no instante em que você entra no quarto você se pergunta, ‘o que eu vim buscar aqui?’. Ou, ainda outro exemplo, uma pessoa te encontra na rua e começa a conversar animadamente. Ela pergunta, ‘lembra-se de mim?’ Você, meio sem graça e sem coragem para dizer não, continua a conversa, mas dentro de você, a pergunta está te remoendo, ‘O rosto é familiar, mas quem é esta pessoa?’. Às vezes o nome volta horas depois.
Certamente existem situações bem mais sérias do que estes exemplos. Entre elas, a doença de Alzheimer, na qual a pessoa e a sua família sofrem com a perda de sua memória, trazendo danos para sua identidade e liberdade. Para os familiares de vítimas de Alzheimer num estado mais avançado, é muito triste constatar que a pessoa doente não se lembra quem ela é, quem são estas pessoas ao seu redor, e, em relação à sua própria liberdade, a pessoa doente não sabe mais como executar tarefas simples, como cuidar de si mesma. A memória é algo que nos é preciosa e necessária na vida.
No Evangelho de hoje, Jesus está conversando com alguns de seus conterrâneos Judeus. Ele lhes diz, ‘vocês conhecerão a verdade e a verdade os libertará.’ Interessante observar que no Grego, a língua em que o Novo Testamento foi escrito, a palavra verdade/aletheia pode ser traduzida literalmente como ‘não esquecer.’ Portanto, conhecer a verdade significa lembrar-se. Em outras palavras, parafraseando Jesus: o lembrar-se nos liberta, o lembrar-se nos torna livres, o lembrar-se nos concede liberdade. Hoje, nesta celebração, nós queremos nos lembrar algo importante na história da Igreja – Igreja com I maiúsculo porque a Reforma da Igreja é maior do que a nossa Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil. Um dos instrumentos que Deus usou para a Reforma da Igreja é o homem chamado Martinho Lutero.
No dia 31 de outubro de 1517 Martinho Lutero afixou no templo da igreja de Wittenberg um cartaz com 95 teses. Lutero queria promover um debate na Igreja, porque como professor do AT na universidade de Wittenberg, Lutero desconfiava que a Igreja tivesse esquecido as boas novas de Jesus, o evangelho. Naqueles dias a Igreja ensinava que perdão e salvação de Deus podiam ser obtidos através de boas obras. E representantes enviados de Roma à Alemanha ensinavam que se as pessoas fizessem doações em dinheiro para a construção de uma nova basílica em Roma – uma boa obra - elas acrescentariam graça diante de Deus. Isto, dizia Lutero, é contrário ao evangelho, porque o evangelho ensina que nós somos pessoas amadas por Deus, pessoa acolhidas pela graça em Jesus Cristo, e não pelas nossas boas obras e pela oferta de dinheiro. A salvação de Deus não está à venda, nem se negocia. Deus estende seu amor e graça abertamente e livremente. Infelizmente, esta mensagem encontrou oposição entre as lideranças da Igreja. Lutero e as pessoas que concordavam com este evangelho foram excomungados, expulsos da igreja. Este embate resultou na divisão da Igreja entre católicos e evangélicos. Inspirados por Lutero, mais tarde outros grupos surgiram, fragmentando mais ainda a igreja.
Aliás, importante lembrar que Lutero nunca teve a intenção de dividir a Igreja. Ele até era contra usarem o seu nome para identificar a igreja como igreja luterana. Lutero preferia que a igreja fosse simplesmente chamada de comunidade cristã – uma comunhão de pessoas vivendo a partir de Cristo Jesus. Isto porque a missão de Lutero tinha como objetivo reformar a igreja de seu tempo, anunciar as boas novas de Jesus para que a igreja corrigisse o seu rumo. A intenção de Lutero era trazer à memória as boas novas de Jesus para uma igreja que havia esquecido estas boas novas.
Ao proclamar o evangelho muitas pessoas na época de Lutero tiveram uma experiência de libertação, libertação da pressão financeira que a cúpula da igreja exercia sobre as pessoas, libertação de sentimentos de culpa e a confiança de que Deus nos acolhe e nos perdoa em Jesus Cristo. Olhando para o passado, para o evangelho de Jesus, muitas pessoas puderam dar um novo rumo para suas vidas, abraçando o futuro confiantes na salvação de Deus. Como disse Jesus: o lembrar-se nos liberta.
Nós, como descendentes da reforma da Igreja, fazemos bem em recordar a ação de Deus ao usar Lutero como instrumento para anunciar o evangelho de Cristo Jesus. Fazemos bem ao celebrar o Dia da Reforma. Não para exaltar Lutero e a história da igreja daquela época e lugar. Celebramos o culto da Reforma para anunciar que ainda nos dias de hoje Deus continua agindo, reformando sua igreja e promovendo sua salvação no mundo. Como disse Jesus: o lembrar-se nos liberta.
Porque assim como a igreja do tempo de Lutero, nós também corremos o risco de esquecer quem nós somos, esquecer nossa razão de ser como igreja. Para citar um exemplo, muitas pessoas confundem a igreja com um clube esportivo, com uma sociedade cultural ou uma associação de moradores. É verdade que parecem existir algumas semelhanças destes com a igreja. Mas as diferenças são muito maiores. Enquanto o clube é obra humana, com acesso restrito aos sócios, voltado para servir seus próprios interesses, a igreja é obra de Deus, fruto da ação do Espírito Santo. A igreja é uma comunidade de pessoas acolhidas pela graça de Deus revelada no batismo - uma comunidade de pessoas chamadas para servir no mundo com os dons que recebemos de Deus, promovendo a paz, a justiça e solidariedade na sociedade (conforme Constituição da IECLB art. 3).
Isto é ser igreja, isto é ser comunidade. É viver a partir das boas novas de Cristo Jesus. Lembrar-se deste evangelho é ser um instrumento nas mãos de Deus, promovendo a qualidade de vida entre as pessoas, anunciando que Deus continua agindo, reformando sua igreja e realizando a salvação do mundo. Como disse Jesus: o lembrar-se nos liberta. .
Para finalizar nossa reflexão, quero trazer a boa notícia para um plano mais pessoal, ainda mais próximo de nós. Porque para muitas pessoas lembrar-se do passado pode ser uma experiência dolorida. Sim, de fato, há certas lembranças que gostaríamos de esquecer, momentos dolorosos em nossa caminhada. É difícil olhar para trás e recordar nossos erros, nossas omissões, lembrar-se dos conflitos na família ou brigas na comunidade que deixaram marcas. Queremos esquecer este passado. Ou talvez, algumas pessoas permanecem presas ao passado, guardam mágoas, ressentem-se com as memórias doloridas de um mau trato, de uma injustiça que alguém cometeu contra você.
Lembrar-se do evangelho de Cristo Jesus nos liberta do passado e nos dá asas para o futuro. O evangelho, as boas novas, é a reconciliação de Deus, a cura e salvação que Deus promove em nossas vidas. Como nos afirma Jesus, “Se o Filho libertar vocês, vocês serão, de fato, livres” (Jo 8.36). Isto significa que pela obra de Jesus o passado não precisa ser uma prisão que nos atormenta e causa sofrimento. Deus em Cristo acolhe o nosso passado e nos liberta para caminhar em direção ao futuro.
Anos atrás assisti um programa de TV que exemplifica muito bem esta verdade. Uma mulher, vítima de abuso físico e emocional em seu próprio lar não conseguia perdoar o seu pai. Uma pessoa então lhe disse que permanecer no passado dolorido era como segurar cacos quebrados de vidro. Quanto mais esta mulher se apegasse ao seu passado, mais ainda ela estava segurando firme nas mãos os cacos de vidro e se machucando. O melhor caminho era abrir suas mãos e entregar o seu passado, os cacos de vidro, a Deus. Deus, em sua graça e amor, tem o poder para curar as feridas na vida desta mulher. Deus, em sua misericórdia, não irá esquecer a injustiça que cometeram contra ela.
Este é o evangelho que recordamos e que anunciamos com Jesus, “o lembrar-se nos liberta”. Amém.