Prédica: Mateus 5.1-12
Leituras: Isaías 62.1-12 e Gálatas 5.1-11
Autoria: Geraldo Graf
Data Litúrgica: Dia da Reforma
Data da Pregação: 31/10/2017
Proclamar Libertação - Volume: XLI
(Re)descobrindo o evangelho
1.Introdução
Neste dia 31 de outubro de 2017, celebram-se, de maneira especial, os 500 anos da Reforma. Além da “euforia” pelas comemorações, é necessário estar atento à mensagem do Senhor Jesus Cristo, manifestada claramente em Mateus 5.1-12. Nela está contida uma proposta de comunidade cristã e seu testemunho no mundo. 500 anos após a Reforma, cabe-nos perguntar se nós atendemos ao propósito de Jesus e à redescoberta do evangelho por Martim Lutero. Só celebraremos a Reforma coerentemente se vivenciarmos o evangelho de Jesus Cristo em sua integridade.
As oito (mais uma) bem-aventuranças (makarismos) fazem a introdução ao Sermão da Montanha. Elas não somente apresentam a essência do ensino de Jesus Cristo, mas também compõem o texto mais bonito e mais provocativo do Novo Testamento. Ele é provocativo no sentido de ser desafiador. Ainda hoje, esses ensinamentos “incomodam” e nem sempre são observados (por exemplo, quem está disposto a oferecer espontaneamente a outra face? – Mt 5.39). O texto pode ser dividido em duas partes de quatro versículos cada (3 a 6 mais 7 a 10) e a conclusão (11 a 12). As duas partes são uma analogia às duas tábuas da Lei do Decálogo (Êx 20). Mateus apresenta Jesus como o novo Moisés: no evangelho, Jesus faz cinco grandes discursos (Mt 5-7; 10; 13.1-52; 18; 24-25), assim como a Moisés eram atribuídos os cinco livros da Lei (Pentateuco). Como Moisés, Jesus também subiu ao monte e proclamou uma nova Lei. O monte significa: lugar da revelação divina. As partes narrativas entre os cinco discursos descrevem a prática de Jesus, mostrando como ele colocava a Lei em observância. Através das bem-aventuranças Jesus anuncia e apresenta o caminho que leva à verdadeira felicidade e à verdadeira santidade.
O termo “bem-aventurado” (makarios) é expressão para uma reconciliação interior, uma integridade que se aproxima do shalom hebraico. Bem-aventurança não é mera felicidade. Ela significa uma vida sob a bênção de Deus na certeza da vinda do Reino. É uma vida plena em confrontação com as experiências da vida diária, experimentadas pela comunidade em sua situação de sofrimento, perseguição, fome e miséria. O reino de Deus é uma realidade futura que tem seus reflexos (consequências práticas) já agora: Bem-aventurados são, já agora, os que pertencem ao reino de Deus! Os cristãos creem que a plena bem-aventurança acontecerá no reino de Deus, mas que ela também já vale para esta vida, tal qual é anunciada no início do Sermão da Montanha. Observe-se que os verbos fazem a ligação entre o presente (sofrido) e o futuro (abençoado).
As bem-aventuranças querem refletir as qualidades de uma vida cristã diária (não uma mera exceção) e deveriam ser perceptíveis na vida de cada pessoa (2Co 5.17). O projeto do Reino, apresentado por Jesus nas bem-aventuranças, quer reconstruir a vida em sua totalidade: em seu relacionamento com os bens materiais, com as pessoas entre si e com Deus. Mahatma Gandhi tinha razão quando disse que, “se dos ensinamentos do Cristo ficassem apenas os extratos do Sermão do Monte, teríamos condições de pautar a nossa conduta para nos relacionar bem em sociedade. Se toda a literatura ocidental se perdesse e restasse apenas o Sermão da Montanha, nada se teria perdido”.
2. Vivenciando o evangelho
“Vendo Jesus as multidões...” Assim inicia o relato do Sermão da Montanha (Mt 5 a 7). Ele prioriza o sermão das bem-aventuranças (Mt 5.3-12). Jesus vê, olha, enxerga, observa, percebe, sente. A visão é um dos principais sentidos, que desperta os demais. Através dela percebemos o que uma pessoa está sentindo e sofrendo. A visão é a janela do coração. Com nossos olhos nós enxergamos a beleza da criação, mas também todas as ameaças, os abusos e a destruição. Enxergamos as pessoas e percebemos seus sonhos e suas esperanças, mas também suas angústias, seus medos e seus sofrimentos.
No Sermão da Montanha, Jesus inicia com um olhar: ele enxerga as pessoas com os olhos e sobretudo com o coração. Por isso ele percebe, sabe o que se passa com elas (“Vendo as multidões, Jesus se compadeceu delas, porque estavam aflitas e exaustas como ovelhas que não têm pastor” – Mt 9.36). Jesus vê as ansiedades, os sofrimentos, as feridas, que marcam profundamente a vida das pessoas. No entanto, a primeira palavra de Jesus não é de lamento sobre a situação, mas ele inicia com bem-aventuranças. Nove vezes no total, abordando situações específicas que observou.
Jesus também enxerga nossas situações, sobretudo de dificuldade e so- frimento. Mas não só isso. A palavra bíblica é uma mensagem para a comunidade cristã tanto da época do evangelista Mateus como de nossa em 2017 no jubileu da Reforma. Também nós somos convidados a olhar para as situações e para as pessoas com o olhar misericordioso de Jesus (“Ele vos deixou exemplo para seguirdes seus passos” – 1Pe 2.21). Somos convidados a igualmente olhar com seus olhos de esperança. Jesus consegue enxergar o sofrimento, a opressão, a perseguição que vitimizam tantas pessoas, mas também consegue enxergar além, olha e faz olhar para o horizonte, porque ele enxerga com os olhos misericordiosos e amorosos de Deus. Através das bem-aventuranças Jesus liga o presente (a situação em que as pessoas se encontram) com aquilo que virá. Jesus é aquele que liga céu e terra. Muito mais do que fazer uma análise (diagnóstico) e julgamento da situação, Jesus dirige nosso olhar para frente, para o futuro de Deus. Ele enche nosso olhar com esperança pela irrupção do reino de Deus.
Trata-se de uma nova realidade, permeada pelo amor e pela misericórdia divinas, pelo consolo e pela justiça de Deus. É esse olhar de Jesus que nós descobrimos nas bem-aventuranças; é um olhar solidário, que enxerga o que está além da situação presente: o futuro de Deus. As bem-aventuranças trazem esse futuro de Deus para dentro das situações presentes das pessoas e, assim, despertam nelas novas esperanças. Esse novo tempo de Deus concretiza-se entre nós. Por amor Deus vem a nós por meio de Jesus Cristo, rompendo estruturas escravizantes, e convida cansados e sobrecarregados para assentar-se à mesa da comunhão (Mt 11.28). Ele traz luz aonde só havia trevas e solidão, traz vida aonde só dominava a cultura da morte.
Vocês são bem-aventurados! Estas palavras finais valem para nós, a comunidade cristã. Não somente como consolo e esperança, mas também como desafio e estímulo para o discipulado, para o testemunho e a ação solidária (missão e diaconia). Onde nós só enxergamos sofrimento em consequência da injustiça e da opressão Jesus enxerga o futuro de Deus. As sementes do amor de Deus já estão germinando, irrompendo e crescendo. Se nós aprendermos com Jesus a olhar com o coração, então nossa visão se estenderá além dos sofrimentos presentes e, junto com a nossa solidariedade, brotarão palavras e ações de esperança, tanto para nós como para as outras pessoas. As bem-aventuranças ampliam nossos horizontes.
3. Testemunhando o evangelho: bem-aventuranças e Reforma
A visão é um dos nossos principais sentidos. Nós reconhecemos os outros através da visão e percebemos seus aspectos exteriores. Com o coração nós enxergamos os seus sentimentos. Percebemos o mundo ao nosso redor com os olhos e com o coração. Com os olhos nós enxergamos a beleza da criação de Deus, mas também o que a ameaça e destrói. Enxergamos o rosto, o sofrimento e a angústia das pessoas, especialmente as que não têm esperança. Com os olhos não enxergamos o futuro. Só o imaginamos, esperamos ou tememos. Fazemos planos, projetamos o que se materializa em nossa mente e em nosso coração. Porém temos a consciência de que a realização de nossos sonhos depende de muitos fatores, que se apresentarão no futuro. Nada disso está sob nosso controle.
No Sermão da Montanha, Jesus inicia com um olhar. Ele enxerga as pessoas com o coração e, assim, percebe o que se passa com elas. Ele vê as ansiedades, o sofrimento, as feridas que marcaram profundamente a vida delas. Só que Jesus não inicia falando desse sofrimento. Sua primeira palavra é: “Bem-aventurados”. Nove vezes ele a repete. É uma palavra rara em nossos dias. Alguns traduzem bem-aventurança por felicidade. Porém essa tradução não expressa o que Jesus quer dizer. Bem-aventurança é um misto de alegria e de esperança (liga o presente com o futuro) pelo fato de que nos sabemos cuidados por Deus. Deus vê a nossa situação.
Com isso Jesus nos ensina a olhar para as situações e para as pessoas com um novo olhar. Jesus enxerga exatamente o que está acontecendo: a pobreza, o sofrimento, a perseguição, a opressão. Jesus consegue enxergar tudo isso porque ele enxerga com os olhos amorosos de Deus. Deus enxerga a nossa situação – enxerga com o coração. Jesus olha e vê a partir da ótica de Deus. Com suas palavras Jesus liga o que é agora com aquilo que virá. Pois o Pai Celeste já iniciou o seu Reino entre nós com a vinda de Jesus. Ele já iniciou novo céu e nova terra, que transformarão nossa vida e nosso mundo. Muito mais do que uma expressão de amor solidário por nossa situação atual, por seu amor, Deus permite que olhemos para frente, cheios de esperança pela irrupção de seu Reino entre nós.
Trata-se de uma nova realidade, permeada pelo amor e pela misericórdia de Deus. Esse olhar de Jesus aponta para esse futuro que se faz presente. Por isso Jesus tem autoridade para nos abordar em nosso sofrimento e em nossa pobreza, porque ele tem o futuro de Deus diante de seus olhos. Esse novo tempo de Deus inicia em nós através de Jesus Cristo. Por amor a nós, Deus tornou-se gente, pleno de amor. E esse amor é ilimitado. Ele rompe estruturas, ele convida excluídos e cansados à mesa da comunhão.
Isso também vale para nós. Pode ser que estejamos tristes e desesperados, perseguidos e injuriados. Deus vê. E nada disso permanecerá. Deus tem planos futuros para nós. As sementes do amor de Deus já estão germinando. Se passarmos a enxergar com o coração e confiarmos nessa boa-nova, então também nossos olhos enxergarão e perceberão os sinais do amor de Deus aqui e agora.
Foi assim que Deus também abriu os olhos de Martim Lutero há 500 anos e, consequentemente, o seu coração, dando, assim, início à Reforma, confiando unicamente no gracioso amor de Deus. Lutero redescobriu a proposta de Jesus, que entra em confronto com a obsessão do mundo: ganância, hedonismo e poder. Para o mundo, bem-aventurança e felicidade são resultado de esforços e conquistas pessoais, de riqueza, bem-estar, status e poder, ou seja, tudo o que o ser humano pensa poder conquistar por seu mérito e sua capacidade.
Para Jesus, bem-aventurada é a pessoa que enfrenta a vida, movida pelo Espírito Santo, na certeza de que Deus está presente por meio de Jesus Cristo, que alegria não depende das circunstâncias externas (Fp 4.3). Bem-aventurada é a pessoa que não vive por conta própria, mas vive em total confiança e dependência do Senhor. Este é um aspecto contido na redescoberta do evangelho feita por Martim Lutero: o decisivo de nossa vida não está sob nosso controle – não somos nós que a conduzimos ou moldamos, mas está nas mãos misericordiosas e amorosas de Deus e de sua palavra soberana. Lutero expressou a soberania divina sobre nossa vida na explicação ao Segundo Artigo no Catecismo Menor: “Creio que Jesus Cristo, verdadeiro Deus, gerado do Pai desde a eternidade, e também verdadeiro ser humano, nascido da virgem Maria, é meu Senhor!”. Nisso consiste a nossa bem-aventurança. Em sua paixão, morte, ressurreição e ascensão, Jesus Cristo fez tudo o que era preciso para nossa libertação e redenção. Por isso não precisamos mais nos deixar escravizar por este mundo, mas podemos permanecer diante de Deus. Somos filhos de Deus pelo Batismo. Somos bem-aventurados! Somos justificados pela graça e por fé, independente das obras (sola gratia).
Porém a verdadeira fé não permanece sem obras. As obras de amor ao próximo não são qualidades ou méritos. Elas são expressão da profunda gratidão pela libertação e pelo pastoreio de nosso Senhor. A vivência da fé sob as bem-aventuranças acontece sob confiança, seja por caminhos suaves, seja por caminhos sofridos. Trata-se de uma fé e de uma confiança das quais brotam boas obras, assim como bons frutos nascem de boas árvores.
Nós celebramos isso com gratidão e alegria. Deus abre os olhos e o coração das pessoas para enxergar, para perceber e, cheios de esperança, voltados para o futuro, testemunhar, agir, colocar o amor de Deus em prática. Lutero redescobriu esse “olhar com o coração” a partir da palavra de Deus e o propôs para a igreja de sua época. Ele apontou novamente para a única palavra de Deus: Jesus Cristo, expressão maior de seu amor e de sua misericórdia. Foram essa esperança e confiança nas promessas do futuro de Deus que deram a Lutero a perseverança e a força para resistir às oposições à Reforma. Portanto a Reforma não é tão somente um acontecimento histórico do passado, que relembramos com saudosismo, mas é um acontecimento presente, contínuo. Reforma é hoje!
A palavra do Senhor Jesus Cristo é dirigida a nós: Vocês são bem-aventurados! São palavras que querem abrir nossos olhos e também nossos corações. Querem que percebamos que somos bem cuidados, carregados pelo amor de Deus em meio a tudo o que nos ameaça, amedronta e faz sofrer. O Senhor vê-nos e está conosco. O futuro lhe pertence. Ele já iniciou o seu Reino entre nós por meio de Jesus Cristo. Por isso podemos enfrentar qualquer situação na vida, amparados por sua palavra e agir movidos por profunda esperança.
A partir do evangelho nós podemos enxergar além daquilo que foi ruim, negativo, que não deu certo, que causou mal e sofrimento. Em tudo podemos enxergar o amor de Deus, que nos carrega. Seu Reino já irrompeu entre nós através de Jesus Cristo. O amor de Deus contrapõe-se à violência e vai transformando situações passo a passo. Começa em nossos corações e vai preenchendo toda a nossa vida. Assim vamos percebendo que medo e angústia não são as últimas coisas, mas serão transformadas pelo amor de Deus.
Por isso precisamos aprender a enxergar com o coração. Precisamos enxergar o amor de Deus presente entre nós por meio de Jesus Cristo e perceber que temos um futuro maravilhoso diante de nós. Essa mudança de olhar, de perspectiva, arranca-nos da imobilidade, das amarras e da prostração. No meio do sofrimento enxergamos o consolo; em meio ao medo, a coragem; em meio à perseguição, sentimo-nos amparados por Deus. É isso que nos faz levantar as cabeças e coloca em movimento – olhando para o futuro de Deus conosco. Faz-nos agir na transformação de situações.
Passamos a enxergar o mundo com outros olhos: com os olhos do coração. E passamos a olhar para frente – para o futuro, pois nele está Deus com seu amor, sua misericórdia. Esse futuro já se faz presente nas bem-aventuranças proferidas por Jesus Cristo. Jesus convida-nos e nos desafia. Ele nos ensina o que pessoas bem-aventuradas produzem:
• Elas são humildes e, espiritualmente pobres, perguntam pela vontade de Deus.
• Elas sofrem pelo mundo e não se conformam com o mal nele praticado.
• Elas são gentis, e seu objetivo é transformar situações.
• Elas desejam relacionamentos pautados pela justiça que reflete a justiça de Deus.
• Elas são misericordiosas, pois correspondem à misericórdia e ao amor de Deus.
• Elas ouvem e obedecem à vontade de Deus para concretizá-la em seus relacionamentos.
• Elas promovem a paz tal qual o Salvador promoveu paz entre Deus e a humanidade.
• Elas suportam a hostilidade do mundo ao praticar os mandamentos divinos.
Ali onde se procura viver segundo a vontade de Deus, ali o reino de Deus já se revela:
• Muros são derrubados.
• Armas são transformadas em ferramentas.
• A justiça social torna-se uma prática geral.
• Os excluídos são trazidos para a comunhão.
• Os exilados são acolhidos.
• Os doentes recebem tratamento e cuidado.
• Inimigos reconciliam-se como irmãos.
• Direitos humanos são respeitados.
E Jesus Cristo conclui: Aos bem-aventurados pertence o reino dos céus!
Sugestão de vídeo: www.hansgruener.de/docs_d/lieder/selig_seid_ihr.htm
Tradução:
1. Bem-aventurados são vocês se viverem em simplicidade. Bem-aventurados são vocês se souberem carregar fardos.
2. Bem-aventurados são vocês se aprenderem a amar. Bem-aventurados são vocês se ousarem praticar o bem.
3. Bem-aventurados são vocês se forem sensíveis ao sofrimento. Bem-aventurados são vocês se permanecerem honestos.
4. Bem-aventurados são vocês se promoverem a paz. Bem-aventurados são vocês se perceberem a injustiça.
(Letra: Friedrich Karl Barth e Peter Horst; Melodia: Peter Janssens)
Bibliografia
GASS, Ildo Bohn. As bem-aventuranças como caminho de santidade (www.cebi. org.br).
MESTERS, Carlos; LOPES, Mercedes e OROFINO, Francisco. Travessia: Quero misericórdia e não sacrifício. A Palavra da Vida 135/136 (www.ihu.unisinos.br).
SCHUCHARDT, Peter. Prédica: Mateus 5.1-12. In: Göttinger Predigten im Internet (www.predigten.uni-goettingen.de).
Voltar para índice do Proclamar Libertação 41