Prédica: Isaías 62.6-7, 10-12
Leituras: Romanos 3.19-28 e João 8.31-36
Autor: Gerd Uwe Kliewer
Data Litúrgica: Dia da Reforma
Data da Pregação: 31 de outubro de 1999
Proclamar Libertação - Volume: XXIV
Tema: Dia da Reforma
1. Prólogo
A pregação sobre o texto acima está prevista para o dia 31.10. l 999. Faltarão 61 dias para a virada do milênio. É provável que a expectativa e a ansiedade venham a ter tomado conta de grupos na Igreja e na sociedade. Crescerão o fervor religioso e a confusão doutrinária. Não faltarão profetas e arautos do fim do mundo e do castigo de Deus. Líderes carismáticos aproveitarão a chance de aumentar o seu controle sobre pessoas, muitas vezes em proveito próprio. A Igreja conseguirá dar respostas adequadas a essa situação?
O texto de Is 62 já foi quatro vezes objeto de análise e interpretação na série Proclamar Libertação; três vezes na delimitação dos vv. 1-12, e em 1997 na composição atual, vv. 6-7 e 10-12. Um novo estudo exegético e homilético, portanto, exige um enfoque especial. Encontrei este na virada do milênio. Isto é, quero trabalhar o texto sob a pergunta: o que ele tem a dizer a uma comunidade que se encontra insegura diante do contexto confuso da religiosidade do fim do milênio? Para responder a esta pergunta, será necessário olhar para a comunidade na qual as palavras inicialmente foram proclamadas. E, tratando-se de uma proposta para o Dia da Reforma, oferece-se a referência à situação da Igreja no tempo dos reformadores.
2. O texto
(6) Sobre as suas muralhas, ó Jerusalém, eu coloquei guardas para vigiá-la e, dia e noite, eles jamais se calarão. Vocês, que estão sempre lembrando as promessas de Javé, não descansem,
(7) e também não concedam descanso a Javé, até que ele restabeleça Jerusalém e faça dela o orgulho da terra.
(10) Passem, passem pelas portas, abram caminho para o povo. Aplainem, aplainem a estrada, tirem fora as pedras. Ergam uma bandeira para os povos.
(11) Javé envia esta mensagem até os confins terra: Digam para a capital de Sião: Veja! Seu salvador está chegando; com ele vem a sua recompensa, sua recompensa vem na frente dele.
(12) Serão chamados de Povo Santo, Redimidos de Javé. E você lerá por nome a Procurada, a Cidade Não Abandonada. (Bíblia Sagrada : edição pastoral.)
3. Tentando entender o texto
Os autores que trabalharam o texto para as edições anteriores de Proclamar Libertação já apontaram para as questões exegéticas básicas: trata-se de um texto central de Tritoisaías, inserido, conforme Westermann (Das Alte Testament Deutsch, vol. 19, p. 297), na estrutura dos salmos de lamentação. Mas o seu conteúdo não é tanto lamentação, e sim anúncio da salvação. Era usado nos cultos da comunidade pós-exílica. Olhemos versículo por versículo para entendê-lo:
V. 6a: Quem fala neste versículo é o próprio profeta. Relata que colocou guardas sobre as muralhas de Jerusalém. A Bíblia na linguagem de hoje introduz o Deus Eterno como sujeito que colocou vigias. Mas este sujeito não está no texto original; introduzi-lo pressupõe que Deus é esquecido e precisa encarregar alguém de lembrá-lo das suas promessas. Outras versões não acompanham esta suposição. Seguimos, portanto, a interpretação de Westermann (op. cit., p. 300).
Vv. 6b-7: Quando o profeta diz vocês, apela aos guardas que colocou. Quem são eles? Seriam soldados encarregados de defender a cidade? Então o profeta — Tritoisaías — teria sido uma autoridade militar. Seriam os sacerdotes do templo? Este ainda não tinha sido reconstruído. Mais uma vez seguimos Westermann, que conclui que os guardas, os que sempre estão lembrando as promessas de Deus'' e não ' 'concedem descanso a Javé'' são os próprios destinatários da mensagem profética, a comunidade que ouve a mensagem.
V. 10: A perícope considera os vv. 8-9 uma inserção posterior. Deixamo-los fora, portanto, e consideramos o v. 10 como continuidade da exortação do v. 7. Então a gente convocada a passar pelas portas e abrir o caminho é a mesma comunidade que ouve a mensagem do profeta. Mas quais são as portas? São as portas da cidade de Jerusalém, na qual essa comunidade vive. Ela é convocada a sair desta porta para limpar o caminho para o povo, os judeus exilados que ainda estão na Babilônia e não têm coragem de voltar. E a bandeira é fixada na cidade de Jerusalém, para que esse povo possa se orientar nela quando vier.
V. 11: Por fim o profeta proclama expressamente palavras ditas por Deus, quase que repetindo Is 40.10. E o anúncio da salvação pela vinda do salvador à comunidade de Jerusalém e ao povo que está para chegar do exílio.
V. 12: Retoma e resume os primeiros cinco versículos do cap. 62 de Isaías. Deus confirma à comunidade de Jerusalém que está com ela e não a abandonará.
4. A comunidade de Tritoisaías
O nome Tritoisaías — o terceiro Isaías — na verdade apenas designa a terceira parte do livro de Isaías, os caps. 56 a 66. Os pesquisadores concluíram que esses capítulos têm a sua origem num profeta que proclamou a sua mensagem no período de 537 a 515 a.C. na Palestina. Seu nome é desconhecido. Pode ler sido também uma escola de profetas. Estava ligado à comunidade que estava ressurgindo em Jerusalém em torno do templo, cuja reconstrução tinha sido iniciada, mas estava paralisada por falta de ânimo e recursos. A sua tarefa e envio estão definidos em 61.1-4:
O Espírito do Senhor Javé está sobre mim, porque Javé me ungiu. Ele me enviou para dar a boa notícia aos pobres, para curar os corações feridos, para proclamar a libertação dos escravos e pôr em liberdade os prisioneiros, para promulgar o ano da graça de Javé, o dia da vingança do nosso Deus, e para consolar todos os aflitos de Sião, para transformar a sua cinza em coroa, seu luto em perfume de lesta, seu abatimento em roupa de gala.
Estas palavras — retomadas por Jesus no início do seu ministério (Lc 4.18s.) — mostram que Tritoisaías é enviado por Deus a uma comunidade de gente pobre e atribulada para orientá-la e consolá-la. Que comunidade é essa? É formada pelas primeiras levas de exilados que voltaram da Babilônia. Pouco sabemos sobre a volta dos judeus do exílio após o decreto do rei Ciro da Pérsia em 538 a.C. que permitiu a reconstrução do templo e o retorno à Palestina. Mas parece que foi gente não muito rica que voltou primeiro, enquanto que aqueles que tinham se adaptado e estabelecido economicamente no exílio ficaram na Babilônia sob o regime dos persas, pelo qual eram bem vistos. A essa comuni¬dade pertencem também os moradores de Jerusalém que não foram exilados após a destruição da cidade, ficando na Palestina. Estes tinham sucumbido ao sincretismo, adorando outros deuses ao lado de Javé e permitindo práticas religiosas estranhas no meio da comunidade. Isso motiva as palavras contra a idolatria (Is 57.3ss.; 65 e 67). E a condenação da injustiça social no cap. 58 evidencia que havia muita exploração, egoísmo e desrespeito ao próximo. Os membros da comunidade judaica não estavam praticando a solidariedade que Javé ensinara ao seu povo nos seus mandamentos. E uma comunidade à qual Javé manda dizer pelo profeta: A cada dia eu estendia a mão para um povo desobediente; eles andavam por um mau caminho, seguindo seus próprios caprichos; era um povo que me provocava sempre, bem na minha cara. (Is 65.2s.).
Mas não é compreensível que essa gente estivesse tão desanimada, tão descrente de Deus? Os que permaneceram na Palestina após a destruição de Jerusalém concluíram que Javé era menos poderoso do que os deuses da Babilônia. Javé não conseguiu proteger o seu templo, a sua cidade e o seu rei. Talvez nem tenham ficado tão tristes com a destruição da cidade, do templo e do palácio do rei, pois os impostos cobrados por estes não eram poucos, e os que ficaram eram a gente da terra, do interior que sustentava o rei, seus funcionários e o seu exército com a sua produção. E os babilônios levaram para o exílio principalmente a nobreza, as lideranças e os altos sacerdotes. O povo que ficou tentou acomodar-se à situação e não demorou para perceber que os deuses dos babilônios eram outros, mas a opressão era a mesma. Não se entusiasmaram com os novos cultos, e pouco fizeram para manter o culto a Javé. Provavelmente mantiveram uma adoração de conveniência, apelando a esta divindade ou aquela, conforme a necessidade e oportunidade.
E os que estavam no exílio? Quando saiu o decreto que permitiu a volta à sua terra e a reconstrução do templo, deram glórias ao seu Deus Javé, que mais uma vez libertara o seu povo. Mas quando puseram-se a planejar a volta, viram que não era tão fácil. Pois tinham-se estabelecido na Babilônia, constituíram famílias, seus filhos nasceram lá, adquiriram propriedades, iniciaram empreendimentos, tornaram-se funcionários. Agora deviam deixar tudo para trás? Assim, bem poucos puseram-se a caminho para voltar à sua terra e reconstruir a cidade e o templo. Havia também interesses políticos contrários a essa volta. Os governadores das áreas vizinhas a Jerusalém não queriam uma cidade que disputasse com eles o seu domínio. A volta a Jerusalém, à sempre sonhada e almejada cidade de Sião, não foi uma marcha gloriosa como sempre sonharam os exilados. Foi uma caminhada de muitas dúvidas e retrocessos que exigia muita coragem e perseverança das pessoas. E o reinicio exigia persistência e coragem, que nem todos tinham. Desta maneira, a comunidade dos que retornaram, na época de Tritoisaías, estava desanimada. A reconstrução do templo estava paralisada. A cidade não estava suficientemente protegida. E o Deus Javé, mais uma vez, parecia tê-los deixado na mão.
A gente reunida em torno da construção do novo templo e da nova cidade não era muito homogênea, havia tensões entre grupos diversos. Tinham problemas para entender os planos de Deus. Ele não tinha perdoado os pecados e maldades que o povo cometeu no tempo do reinado? Eles não tinham sofrido o suficiente na guerra e no exílio para pagar por esses pecados? Não tinha sido Deus mesmo que anunciara, através da boca dos seus profetas, que agora estava tudo bem, tudo perdoado, que Ele tinha feito as pazes com o seu povo e que agora poderiam voltar tranquilos para a sua terra? Lembravam bem as palavras do profeta:
Não tenha medo, pois você não ficou envergonhada (...) Porque o seu marido é o seu criador: o nome dele é Javé dos exércitos. Quem redime você é o Santo de Israel; ele é chamado o Deus de toda a terra. Javé chamou você como a esposa abandonada e abatida, como a esposa da juventude, a repudiada; assim diz o seu Deus: Por um instante abandonei você, mas com imensa compaixão torno a reuni-la. Num ímpeto de ira, por um momento eu escondi de você o meu rosto; agora, com amor eterno, volto a me compadecer de você, diz Javé, seu redentor. (Is 54.4-8.)
Mas essa promessa anunciada pelo profeta não se cumpria. Javé parecia ter esquecido do seu povo. Ele não compensava a obediência ao chamado de voltar a terra prometida na medida do esperado. Os membros da comunidade de Jerusalém estavam frustrados, duvidavam do poder e do amor de Javé. Olhavam pura outros deuses, para outras religiões. Estavam tentados a procurar em outra comunidade religiosa a segurança, o conforto que Javé parecia estar-lhes negando.
Ao mesmo tempo, porém, há outro desenvolvimento na comunidade: ela se abre para pessoas de outras origens culturais e étnicas. No período do exílio muitos estrangeiros fixaram-se em Jerusalém e arredores. A cidade estava sem lideranças políticas próprias, com os seus muros e defesas arrasados, aberta para ocupações de quem procurava um lugar para fixar-se. Ficava no caminho da Babilônia para o Egito, pelo qual passavam tropas, delegações e comércio. Muitos desses estrangeiros aproximaram-se do culto a Javé, integrando-se à comunidade. O exclusivismo da comunidade israelita, como está definido p. ex. em Dt 23.2-9, foi amenizado. Estrangeiros são aceitos na comunidade, entre eles também eunucos, isto é, castrados. A estes Javé comunica através do profeta: Eu lhes darei na minha casa, dentro de minhas muralhas, um lugar e um nome que valem mais do que filhos e filhas; darei a eles um nome eterno que nunca desaparecerá. (Is 56.5.) E aos estrangeiros que entram na comunidade é dito: Eu os levarei para a minha montanha santa, vou fazê-los felizes na minha casa de oração, seus holocaustos e sacrifícios serão aceitos com agrado no meu altar, porque a minha casa será chamada casa de oração para todos os povos. (Is 56.7.)
Essa abertura, porém, traz consigo o perigo de ideias e práticas religiosas estranhas entrarem no culto a Javé. Antigas idolatrias como o culto à fertilidade, como a prostituição ligada ao culto, sacrifício de crianças e adoração de morros e pedras reaparecem (Is 57.3-13). Há doutrina errada na comunidade. Há os que se dizem seguidores de Javé, mas na verdade envolvem-se com práticas religiosas que nada têm a ver com o único e verdadeiro Deus. Contra essa tendência ao sincretismo religioso levanta-se a voz profética que insiste que não é a criação, mas o Criador que deve ser venerado e respeitado:
Assim diz Javé: O céu é o meu trono e a terra é o apoio para meus pés. Que tipo de casa vocês poderiam construir para mim? Que lugar poderia servir para o meu descanso? Tudo o que existe fui eu que fiz, tudo que existe é meu — oráculo de Javé. Eu olho para o aflito e o de espírito abatido, e para aquele que estremece diante das minhas palavras. (Is 66. l s.)
Vemos que a partir desse reconhecimento de que o Deus Javé está acima de tudo e de todos é questionada a ansiedade de construir logo o templo como a sede, a moradia de Deus. Deus não se deixa prender no templo construído por pessoas humanas. Tritoisaías termina as suas mensagens proclamando que não são as pessoas, a comunidade, a sociedade ou o governo que realizam a reconstrução de Jerusalém anunciada por Deus, mas é Ele mesmo que o faz:
Porque assim diz Javé: Estou fazendo correr para Jerusalém a prosperidade como rio, e as riquezas das nações como córregos que transbordam (...) Eu virei para reunir todos os povos e línguas. Eles virão para admirar minha glória. (Is 66.12, 18)
A comunidade que ouve essa mensagem de Tritoisaías está dividida internamente; sente frustração por achar que Deus não cumpriu o que prometera; e diante da conjuntura em que vive não consegue projetar claramente o seu futuro Muitos membros procuram satisfazer as suas necessidades espirituais e carnais junto a outras fontes religiosas. Estão no perigo de seguir líderes falsos. É uma comunidade que, sem ter plena consciência disso, encontra-se numa encruzilhada: a passagem de uma sociedade política, com governo próprio e culto estatal, para uma comunidade, uma comunhão religiosa. Através de Tritoisaías Deus quer alertar essa comunidade que a história que ele faz tem um rumo. Dá-lhe uma visão, uma promessa e uma esperança.
5. No tempo da Reforma
A época da Reforma, o séc. 16, foi um período de fortes convulsões sociais e religiosas. Uma nova era estava se configurando. Mas esse processo conseguimos reconhecer apenas na retrospectiva. Para os governantes e para a Igreja daquela época as transformações apresentavam-se como desafio à ordem social, como rebeldia e desrespeito à ordem divina. Certos estratos sociais, como os camponeses e os artesãos das cidades, mobilizaram-se para libertar-se da opres-são secular pela nobreza. No seio desse movimento surgiu Thomas Müntzer, líder político-religioso que pregava que a guerra dos camponeses contra a nobreza e as cidades era guerra santa ordenada por Deus. Os camponeses seriam o braço de Deus para castigar os governantes ímpios. Após a derrota dos camponeses pipocaram movimentos religiosos com tendências apocalípticas. Pregavam o fim deste mundo e a volta em breve de Jesus Cristo para implantar o seu reino. Os fiéis deveriam preparar-lhe o caminho com a força da espada. Na cidade de Münster os mais exaltados conseguiram tomar o governo por algum tempo. Em outros lugares o entusiasmo religioso levou a desordens na vida familiar e sexual e à deterioração dos bons costumes.
Lutero via esses movimentos sectários dentro e fora da Igreja como mais perigosos que os ataques do próprio papa. Numa das conversas de mesa ele disse:
Os cristãos têm três inimigos: os tiranos, as seitas e os falsos irmãos (...) Os primeiros são maus, os outros piores e os últimos péssimos. Os tiranos decerto são maus, mas causam relativamente pouco dano, pois só tomam o corpo e os bens. Os sectários confundem a alma com doutrina falsa, o que é pior (...) Os falsos irmãos, porém, são os piores. São verdadeiros Judas que comem o pão de Jesus Cristo, isto é, ouvem a sua pregação, mas mesmo assim, por pura maldade, o pisam com os pés. O seu pecado certamente não tem perdão. (Martin Luther, Tischreden, Stuttgart, 1960, p. 123s.)
Contra esses inimigos Lutero conhecia somente uma arma: a reta e pura pregação da palavra de Deus. Com convicção ele afirma: “O Verbo eterno vencerá as hostes da maldade!” ( 4ª. Estrofe do hino “Deus é castelo forte e bom’, Hinos do Povo de Deus, no. 97).
Os poucos fatos que citei certamente não são suficientes para traçar paralelos e fazer comparações entre a Alemanha do tempo da Reforma e a época de Tritoisaías. Mas pode-se observar que há semelhança na situação de incerteza perante o futuro e de confusão religiosa.
6. Diante do novo milénio
A “Capela Luterana dos Milagres estabeleceu-se a três quadras da sede da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB). Membros que viram o anúncio no jornal queriam saber o que essa religião tinha a ver com a “sua”Igreja. Na verdade nada, como constatou o Dr. Ingo Wulfhorst, especialista em movimentos religiosos. Era somente uma fachada de que um pseudo pastor revestiu o seu empreendimento religioso. Por algum tempo conseguiu explorar as pessoas crédulas, prometendo-lhes trazer o marido infiel de volta, sucesso nos negócios e saúde, tudo em troca do fiel pagamento das parcelas mensais de um carne da felicidade. Quando minguaram os bobos que acreditavam nele, foi procurar outras paragens ainda não exploradas.
Exemplos como este há centenas. Surgem igrejas novas da noite para o dia, na cidade grande e nas cidades do interior. As ofertas religiosas se multiplicam. Horóscopo, quiromancia, profecias, cultos esotéricos, espiritismo, cultos afro-brasileiros, movimentos pentecostais... todos pretendem dar a única e verdadeira resposta à ansiedade e angústia das pessoas. As igrejas tradicionais não satisfazem mais. As pessoas buscam emoções mais fortes, experiências mais envolventes, sensações novas.
Valores tidos como permanentes desmoronam. Os jovens têm dificuldade de encontrar o sentido da vida. Os velhos não se acham mais neste mundo de rápidas mudanças. O consumo exagerado parece que só aumenta a fome. A ânsia de ganhar dinheiro rápido parece derrubar as últimas barreiras de decência e honestidade. Enquanto trabalho neste estudo, a televisão traz notícias de quadrilhas que falsificam medicamentos. Pessoas morreram porque o frasco de remédio, vital para a sobrevivência dos pacientes, só continha água. Nas escolas crianças de 13 anos são levadas à dependência de drogas. Dos Estados Unidos e relatado o sétimo caso de alunos que atacam e matam colegas e professores de fuzil na mão. Parece mesmo o começo das dores (Mt 24.7).
O medo do fim, a incerteza e insegurança que aumentam, a falta de perspectiva para muitos, o desemprego criam um clima propício à exaltação religiosa. A virada do milênio, apesar de ser um marco inteiramente convencional e restrito à parte menor da humanidade que pertence ao âmbito da cultura cristã ocidental, reveste-se de um significado apocalíptico. Será que o mundo vai passar do ano 2000? A dúvida pode ser levantada. Continuamos capazes de destruir a nossa terra — afinal, a humanidade continua tendo o potencial de armas nucleares para fazer isso e continua construindo mais. A Índia e o Paquistão desenvolvem o seu potencial nuclear e não deixam dúvidas que irão usá-lo. E quem ainda tem coragem de apostar em que a humanidade seja capaz de resolver os seus problemas e conflitos de maneira racional? Parece mais prudente contar com a irracionalidade.
Repito a pergunta feita no início: a Igreja tem a resposta para essa situação? ou ela deixará as pessoas, como outras vezes, à mercê dos falsos messias (Mt 24.23ss.)?
6. Rumo à prédica
Para dentro dessa situação o profeta proclama a sua mensagem. É uma mensagem de consolo, de fortalecimento. Quer dar ânimo na tribulação, na insegurança. É uma mensagem simples: Deus não abandonou a sua cidade, a sua terra! Deus não abandonou o seu povo! Ele vem e cumpre as suas promessas.
Os guardas mencionados no v. 6 podem ser identificados como os líderes da comunidade, os pregadores, os pastores. Eles são os vigias da comunidade. É essa identificação que estabelece a ponte para o Dia da Reforma. Ao apelo insistente a esses guardas para não se calar, para repetir, lembrar as promessas de Javé corresponde a ênfase luterana em proclamar a graça de Deus em palavra e sacramento quer seja oportuno, quer não (2 Tm 4.2). Essa pregação não pode cessar, pois a Igreja, a congregação dos santos, existe somente onde o evangelho é pregado de maneira pura e os sacramentos são administrados corretamente (Confissão de Augsburgo, art. 7).
Mas como vamos entender o v. 7? Que as pessoas — pecadores e pecadoras — precisam ser lembradas constantemente da palavra de Deus ninguém questiona. Mas Deus? Deus precisa ser lembrado das suas promessas? Parece absurdo. Mas reflete muito bem o estado de espírito da comunidade de Tritoisaías, que se sentia abandonada por Deus. E com certeza a comunidade à qual pregamos está povoada de gente que tem o mesmo sentimento, gente que pergunta: onde está Deus? Onde está o seu auxílio? Por que estou abandonado? Se Ele é todo-poderoso, por que deixa acontecer tanta desgraça? Deus precisa ser lembrado das suas promessas constantemente, se não por outro motivo, então para que nós mesmos fiquemos conscientes delas. Porque Deus realiza as suas promessas não como milagre, mas usa a nossa boca, as nossas mãos, os nossos pés, a nossa cabeça.
Por isso a comunidade não pode ficar atrás de portas fechadas, atrás dos muros. Os primeiros cristãos tentaram isso (Jo 20.19), mas logo foram tocados para fora do seu esconderijo. O v. 10 conclama a comunidade a sair da cidade e preparar o caminho para ir ao encontro das pessoas que estão perdidas, excluídas, desanimadas, doentes... Devem levantar uma bandeira, um sinal, uma cruz que sirva de orientação aos povos. Sim, a comunidade mesma deve tornar-se este ponto de referência. O fim do milênio não é motivo de esconder-se, de retirar-si, mas de sair para fora ao encontro dos que precisam ouvir a mensagem do amor e da salvação de Deus.
O que para a comunidade de Tritoisaías ainda estava obscuro, era uma esperança, uma expectativa, para nós tornou-se realidade concreta. Vimos e ouvimos o Salvador Jesus. Ele viveu e foi crucificado entre nós. E ressuscitou, vencendo a morte. Trouxe-nos a sua recompensa — a salvação do pecador por pura graça — e nos fez herdeiros dela no Batismo. E agora nós somos a recompensa, o butim dele, seu povo santo redimido por seu sangue. Nunca mais seremos abandonados.
O que é o novo milênio? Mais uma chance, mais um tempo para proclamar as promessas e o amor de Deus. Amém.
Proclamar Libertação 24
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia