Cultura de Convivência



ID: 3192

Eu tenho um sonho

20 de Novembro: Dia da Consciência Negra

20/11/2022

 

Neste dia lembramos no Brasil o Dia da Consciência Negra, resgatando a memória de Zumbi dos Palmares. Este dia não é apenas dedicado à lembrança, mas também a repensar esse tema tão importante. Lembro que dois anos atrás, em 2020, novamente vários manifestantes tomaram as ruas dos Estados Unidos em defesa memorial de George Floyd que foi condenado à morte por um policial no ato de captura; uma pessoa negra que não teve direito a julgamento onde poderia ser absolvido ou condenado conforme as leis daquele país.

No dia 25 de Outubro de 2021, no Brasil, o motoboy Elson Oliveira sofreu racismo ao tentar entregar um pedido em um condomínio de luxo de Goiânia. A cliente enviou a seguinte mensagem no aplicativo iFood: “Esse preto não vai entrar no meu condomínio. Mandar outro motoboy que seja branco. Eu não vou permitir esse macaco”. A gerente da hamburgueria deu total apoio ao entregador e ambos foram registrar o caso na polícia. Lembro aqui das últimas palavras do falecido jornalista Ricardo Boechat: “O que temos de colocar em cima da mesa, diante de nós mesmos, como sociedade, é se queremos continuar lidando com essas tragédias, pranteando-as no início e esquecendo-as logo depois1.

Lembro também do dia 19 de Novembro de 2020 quando seguranças do supermercado Carrefour espancaram um negro até à morte em Porto Alegre/RS. O fato aconteceu um dia antes do Dia Nacional da Consciência Negra. João Alberto Silveira Freitas foi condenado à morte. Não teve direito a defesa e a um julgamento digno. Em entrevista à CNN Brasil, o pai da vítima, disse: “Eu vim para achar um preso. Achei um corpo, uma pessoa assassinada covardemente, como os vídeos estão mostrando aí.”

O vídeo da agressão viralizou nas redes sociais. Entretanto, aparentemente foi tido apenas como mais um vídeo que é assistido e automaticamente esquecido logo após. Porém, eu não esqueci! “ – Ah, mas ele tinha passagem pela polícia.” Tudo isso seria levado em conta em um julgamento, se ele tivesse tido o seu direito a um! Mas fato é que esse direito básico de todo ser humano lhe foi negado quando aqueles seguranças lhe condenaram à pena de morte no estacionamento do supermercado. Os que deviam garantir a segurança de todos foram os assassinos! Não há nada que torne aquele ato horrível justificável! Não! Nada!

Em 25 de maio 2022, exatamente ao se completar dois anos do assassinato de George Floyd, todos fomos chocados com o cruel assassinato de Genivaldo de Jesus Santos após uma abordagem de policiais rodoviários federais em Umbaúba/SE. Os policiais rodoviários transformaram o porta-malas da viatura em uma câmara de gás onde Genivaldo foi asfixiado de maneira brutal e desumana. Mais uma prova de que o problema não é apenas histórico, mas estrutural. Demarise de Jesus Santos, irmã de Genivaldo, declarou ao jornal Estado de Minas: “Se fosse um branco, não aconteceria aquilo”2.

Estatísticas

Várias estatísticas afirmam que mais de 70% das pessoas mortas em ações policiais são negras. Mas, quais são as evidências de que João Alberto Silveira Freitas e outros foi assassinado por racismo? Nem toda evidência é tangível, ou tocável, provada documentalmente. Grande parte da realidade não está em coisas tangíveis, mas em símbolos e expressões que não são palpáveis. Real não é apenas aquilo que se pode tocar, provar, repetir. A realidade também está no mundo simbólico que são os preconceitos, os pré-condicionamentos e o inconsciente coletivo – coisas que você não pega, mas que existem! A partir deste ponto de vista, tenho certeza plena de que os casos de João Alberto, Genivaldo e outros foram violência racial – embora muitos audaciosamente digam que não. Penso que a inconsciência coletiva do fato prova ainda mais o quanto o racismo estrutural está inconscientemente presente.3

Contudo, se quisermos evidências palpáveis, elas existem. Uma pesquisa perguntou a imigrantes haitianos que vivem na cidade de Joinville/SC qual a principal dificuldade encontrada no Brasil. A primeira resposta é: “Preconceito Racial”; seguido de

baixos salários; trabalhos inferiores à sua área de formação; desemprego; saudade dos familiares residentes no Haiti; dificuldade de acesso à saúde; dificuldades de continuar os estudos e estranhamentos culturais.4

Sim! Infelizmente, somos um país racista! Hoje é o dia de tocar na ferida. Pode doer bastante, mas é preciso! Como teólogo e pastor, não posso fugir do tema. Não podemos negar a existência do Racismo, dentro e fora da Igreja. Sei que este tema é bastante complicado e que não poderemos tratar dele de maneira simplória e superficial. Por isso, convido você a nos concentrarmos para entender bem a importância deste tema!

Protestantismo e abolição da escravatura

O tema da consciência negra faz parte da história recente do protestantismo mundial. No séc. XVIII, a Inglaterra possuía o monopólio do comércio de escravos negros. Os transportes eram os mais cruéis inimagináveis. A própria população inglesa via a escravidão como algo normal. Então, no ano de 1774, o Pastor Metodista John Wesley publicou um texto intitulado “Pensamentos sobre a Escravidão” onde afirmou que nenhum argumento era capaz de sustentar a escravidão. Ele condenou também a crueldade na captura e transporte dos escravos – onde muitos não aguentavam e acabavam morrendo. Para o Pastor John Wesley, a liberdade é um direito de todo ser humano, tanto de pessoas brancas como de pessoas negras. O Pastor John Wesley terminou seu texto, dizendo: “Os comandantes de navios deviam deixar o tráfico de escravos; os comerciantes deviam obedecer a sua consciência (nem comprando nem vendendo mais escravos); os fazendeiros não deviam derramar mais sangue inocente”5.

As ideias do Pastor John Wesley influenciaram fortemente o deputado William Wilberforce que fez da abolição da escravatura na Inglaterra o seu projeto de vida. John Wesley escreveu sua última carta a Wilberforce em 24 de Fevereiro de 1791, seis dias antes de falecer, encorajando Wilberforce a não desistir do plano de abolição da escravatura. Após longas décadas de luta no parlamento britânico, em 1807 o tráfico de pessoas negras foi abolido na Inglaterra, um mês após a morte de William Wilberforce. Em 1833, a escravidão foi finalmente abolida no país. A Igreja e a Fé cristã tiveram papel fundamental na abolição. John Newton, que havia sido um grande traficante de escravos e que, após conhecer o Evangelho, mudou a sua vida, escreveu o hino Amazing Grace (Graça Maravilhosa) que é um dos hinos cristãos mais conhecidos no mundo. Neste hino, John Newton diz: “Maravilhosa graça, quão doce é o som que salvou um miserável como eu. Eu estive perdido, mas agora fui encontrado; era cego, mas agora eu vejo. Minhas correntes se foram, Eu fui liberto.”

Nos Estados Unidos, pessoas negras escravizadas também criavam hinos a partir das Escrituras para falar do seu sofrimento e dor. São os chamados negro spirituals. Muitas destas canções eram entoadas em fugas para que os fugitivos pudessem saber a rota de escape. Uma dessas canções era a música “Go Down Moses” onde as pessoas negras escravizadas se comparavam ao povo de Israel escravo no Egito. A canção repete frequentemente o versículo de Êxodo 5.1: “Let My People Go!” que significa “deixa meu povo ir.” Assim como Israel, também as pessoas negras escravizadas clamavam por liberdade, para que seu povo pudesse ir.

Mais tarde e bem mais perto de nós, um Pastor Batista reuniu pessoas para lutar pelos direitos civis das pessoas negras e queria causar a mudança sem usar nenhum tipo de violência. Ele possuía o nome de alguém que também foi muito importante para nós luteranos: Martin Luther King Jr foi um pastor que não se conformava que pessoas negras e brancas não pudessem usar os mesmos ônibus, banheiros ou frequentarem as mesmas escolas. O Pastor Martin Luther King Jr. entendeu que o Evangelho não é algo que se vive apenas de modo privado dentro de uma igreja ou das casas, mas que o Evangelho é libertador também na esfera pública. Em seu discurso histórico proferido em Washington em 28 de Agosto de 1963, o Pastor Martin Luther King Jr. pregou o seguinte:

Eu tenho um sonho (I Have a Dream) de que um dia esta nação se erguerá e experimentará o verdadeiro significado de sua crença: “Acreditamos que essas verdades são evidentes, que todos os homens são criados iguais.” E disse também: “Eu tenho um sonho de que os meus quatro filhos pequenos viverão em uma nação onde não serão julgados pela cor de sua pele, mas pelo conteúdo de seu caráter.6

Este corajoso pastor batista foi assassinado em 4 de Abril de 1968 por falar aquilo que deveria ser óbvio, mas não era. Embora tenha morrido, o seu sonho continuou e continua vivo na mente de muitos norte-americanos que até hoje sonham com um mundo sem desigualdade e injustiça racial.

Assim, essas informações já são suficientes para demonstrar que o problema do racismo foi muito tratado nos últimos 400 anos pelo protestantismo e que este assunto deve ser novamente tratado de vez em quando se somos cristãos de verdade e acreditamos na igualdade racial e na igualdade de todas as pessoas – todas mesmo!

Uma hipótese da origem do racismo

Olhamos um pouco para o passado. Embora tenha havido tantas lutas por igualdade e direitos, muita coisa permanece igual. Talvez as leis tenham sido ampliadas e melhoradas, mas o racismo estrutural insiste em estar presente em nossa sociedade. Infelizmente, muitas vezes também entre os próprios cristãos; muitas vezes até mesmo entre os luteranos. E a pergunta é: por quê? Como que após tantos anos de lutas por direitos e de conscientização sobre o tema, o racismo volta a acontecer não apenas em palavras e ofensas, mas também em ações? Onde está, de fato, o problema? Permito-me teorizar um pouco a respeito.

O político e filósofo Francis Bacon (1561-1626) afirmou a seguinte frase: “Conhecimento é poder.” Parece ser uma frase bonita e insignificante. Porém, não é! Acredito que o grande problema do racismo e de todas as desigualdades sociais não começa nas atitudes, mas em algo anterior: a linguagem. A linguagem é muito importante. Através da linguagem nós lemos o mundo e temos acesso ao mundo. A linguagem cria os arquétipos e a maneira como vemos o mundo. Se desde a infância aprendemos que há diferenças entre as raças, vamos crescer e envelhecer crendo nisso e fazendo disso uma verdade absoluta – mesmo que absoluta no subjetivo. Desta forma, a linguagem (o conhecimento) será usada como uma forma de dominação e de poder. O conhecimento do mundo ao invés de levar à humildade e ao reconhecimento socrático do não saber de tudo, levará, ao contrário, conforme ensina Francis Bacon, à arrogância do poder. Isso faz com que a outra pessoa não é mais tratada como uma pessoa ou como um ser humano, mas como uma máquina, como uma coisa – algo que apenas precisa funcionar e cumprir sua função. Isso é escravidão!

O preconceito é construído através das linguagens. A maneira pela qual aprendemos a ler o mundo é o óculos pela qual também julgamos o mundo. Em outras paróquias em que trabalhei, testemunho já ter ouvido frases absurdas como “aquele preto é bom porque até sabe falar alemão.” Espera aí! A dignidade daquela pessoa está em saber falar alemão? Então o falar alemão é o que torna alguém digno? Lembro-me do ano de 2014 quando uma torcedora do Grêmio chamou um goleiro do Santos de “macaco”. Na época o Grêmio foi excluído da Copa do Brasil por causa disso. Lembro-me também que visitei uma pessoa “de fé” (aham!) que disse o seguinte: “por causa desses pretos o Grêmio foi excluído da Copa do Brasil.” Uma pessoa “cristã!” Sim! Uma pessoa luterana disse esse absurdo. Por quê? Porque conhecimento é poder! É onde exerço minha onipotência e trato a outra pessoa como uma máquina, como um objeto que posso xingar e descartar como inútil. Através da linguagem, aquela pessoa exerceu um domínio sobre outros seres humanos.

As linguagens que usamos revelam as novas formas de escravidão. As linguagens revelam os preconceitos (os pré-condicionamentos) que são as ideias que estão pré-estabelecidas em nós sem nos darmos conta. E, dependendo como usamos essas linguagens, exercemos o poder sobre o outro ao invés do reconhecimento da igualdade de todos os seres humanos. O preconceito acaba se tornando algo normal. O filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) descrevia isso usando o termo Volksgeist que podemos traduzir como o espírito do povo. Espírito aqui não tem ligação com fantasma ou algo do tipo, mas simplesmente com aquilo que não é material, não pode ser “pegado” – como a linguagem. O espírito do Povo é – explicando de maneira muito resumida – aquilo que não é eticamente correto, mas é praticado pela maioria mesmo não sendo ético. Espírito do povo porque é algo que está dentro do próprio povo. Exemplo: o correto seria jogar o lixo no lixo, mas, a maioria continua jogando lixo na praia, na rua, etc. O Volksgeist – espírito do povo – leva o povo a fazer o contrário do que deveria fazer. O psicoterapeuta suíço Carl Gustav Jung (1875-1961) vai dar outro nome para isso: inconsciente coletivo: algo que a população faz sem se dar conta do motivo pelo qual está fazendo aquilo. Não é algo óbvio, mas inconsciente e que está dentro de uma sociedade.

Logo, a linguagem não apenas molda a maneira como nós vemos e temo acesso ao mundo, mas também revela o que foi criado dentro de nós em nossa educação doméstica e qual é o espírito do povo e o nosso inconsciente coletivo. O filósofo alemão Hans-Georg Gadamer diz: “Todo ser humano é determinado pela sua história e pelos seus pressupostos, que determinam a linguagem e a compreensão na comunicação humana”7. A palavra é poder! Através das palavras que usamos, manifestamos preconceitos conscientes ou inconscientes que estão em nós. E estas são as novas formas de escravidão onde criamos um mundo de diferenças através das linguagens que usamos. Nesse sentido, a linguagem exerce poder e domínio sobre o outro. As redes sociais amplificam essas diferenças criadas pela linguagem. Hoje a segregação não é física em banheiros, ônibus ou qualquer outro espaço, mas é realizada através da linguagem onde na minha visão de mundo (Weltanschauung) determino o valor do outro ou não. O racismo e a desigualdade racial acontecem primeiro através da linguagem. Trata-se de uma forma de escravidão que pode ferir fisicamente, mas também emocionalmente. O preconceito é um conceito equivocado do outro e é algo que pode ser corrigido ao aprender uma nova linguagem, ou seja, na disposição de aprender uma nova maneira de ler e ter acesso ao mundo e às ideias. O preconceito é eliminado através da linguagem!

A linguagem do Evangelho

Nesse sentido, é interessante olhar para a linguagem, para o espírito do Evangelho de Jesus Cristo. O Evangelho, conforme João, nos revela no seu primeiro versículo que Jesus era o Verbo, ou seja, Jesus era a Palavra. Jesus é o mediador entre Deus e os homens porque ele mesmo media a linguagem do Pai a nós. Ele é a Palavra que se fez carne e habitou entre nós (cf. João 1.14). Ele é a Palavra que se esvaziou a si mesmo e assumiu a forma de servo (cf. Filipenses 2.7). Jesus Cristo é a própria Palavra de amor de Deus à humanidade.

Há quase dois mil anos atrás, Jesus falava do ser humano não como uma máquina, um instrumento, um objeto ou uma coisa. Ao contrário, Jesus falava do ser humano o chamando de próximo, de semelhante. Para Jesus, o ser humano não é uma coisa que precisa apenas funcionar. Ao contrário, o ser humano é o próximo, o outro, o semelhante. A outra pessoa não é um aliem, ou seja, um estranho, mas um próximo, ou seja, alguém tão humano como eu. Em Jesus, a outra pessoa não é alguém estranha e distante, mas meu irmão e minha irmã, tanto faz se é pessoa negra ou branca, homem ou mulher, chinês ou brasileiro, assim por diante. O outro não é apenas um conjunto de moléculas em movimento, mas é uma pessoa, um humano como eu, meu semelhante. Isso quebra preconceitos. Precisamos voltar à linguagem do Evangelho, pois a linguagem do Evangelho é a linguagem do amor, linguagem essa que não é inaugurada por Jesus, mas que já estava no Antigo Testamento: Deuteronômio 6.4: “Portanto, ame o Senhor, seu Deus, de todo o seu coração, de toda a sua alma e com toda a sua força.” E Levítico 19.18: “ame o seu próximo como você ama a si mesmo.” Estas leis não foram criadas por Jesus, mas ele as lembrou ao seu povo e aplicou-as em sua própria vida que foi uma vida de amor ao Pai e ao próximo.

A proposta cristã fala do ser humano como próximo e não como coisa banal que pode ser propriedade de outra pessoa ou coisificado, julgado, reduzido, rejeitado, eliminado. O médico e pesquisador norte-americano Dean Ornisch descreve o amor como um processo de vínculo, afeto, afinidade, que é a capacidade de se estar religado, ou seja, amor é a energia primordial da afinidade e do vínculo. Essa é a força de cuidar, de proteger, de alimentar. O amor não pode ser reduzido a uma molécula, a um gene, a uma partícula da matéria que pudesse ser dissecado pela lógica da geometria. Amor é aquilo que dá consistência à totalidade da realidade8. Através do amor e do direito, não há diferença entre nenhuma pessoa: nem entre sangues e raças, nem entre ricos e pobres, nem entre homens ou mulheres, assim por diante. O ser humano é humano e não pode ser escravizado por mais nada.
Ao entendermos a linguagem do Evangelho, compreendemos que a outra pessoa possui direitos reconhecidos como eu. Este é um esforço para compreender o outro e exige a noção da dignidade humana. E a dignidade humana no Ocidente está fundamentada no cristianismo que é a linguagem que afirma a dignidade dos rejeitados, excluídos e desprezados.9

Onde estava Deus?

Nós cremos no Deus que se fez fraco e morreu em uma cruz. O Deus cristão é o Deus que assume a nossa fraqueza, a nossa opressão e a nossa tragédia. O Deus cristão é o Deus que agoniza com George Floyd em seu sofrimento; o Deus cristão é o Deus pendurado na cruz que sofreu com João Alberto Silveira Freitas em sua tortura e espancamento; o Deus cristão é o Deus que sufocou com Genivaldo de Jesus Santos. O Deus cristão não foge do sofrimento, mas assume o nosso sofrimento e sofre conosco. Na Pessoa do Filho, Jesus Cristo, Deus abriu mão do seu poder para sofrer com os sofredores. Deus se esvazia de seu poder para ser um ser humano como nós e passar pelo que passamos. Jesus assume as consequências do racismo! Ele assume as consequências da opressão! E onde alguém sofre opressão e preconceito, ali Deus está junto sofrendo com aquela pessoa.

Assim, é a loucura da cruz que cura o ser humano em sua fraqueza e desespero. É a loucura da cruz que consola o sofredor em meio às batalhas da vida tão humana. A loucura da cruz inclui os sofredores ao invés de excluí-los eugenicamente. É a fraqueza de Deus (1 Coríntios 1.25) que acolhe e dá direitos iguais aos fracos e raquíticos perante os que se acham fortes e potentes. É o Cristo crucificado que confere dignidade aos malogrados do mundo. Onde Deus estava na morte de George Floyd? Onde Deus estava na morte de João Alberto Silveira Freitas? Onde Deus está na morte de Genivaldo de Jesus Santos e tantos outros? Ali está Deus, no George Floyd, no João Alberto Silveira Freitas, no Genivaldo de Jesus Santos e em tantos outros que morrem vítimas dos problemas estruturais da nossa sociedade! Deus não está onde há luz, brilho, ouro, raios, paraísos, etc. Não! Deus está onde alguém sofre. Na miséria humana, ali Deus está! Ele abre mão do seu poder para estar com quem sofre. Deus assume a forma de escravo, de servo conforme Filipenses 2. Ele se torna como um oprimido e escravizado. Em Jesus, Deus se tornou alguém como nós!

A linguagem do amor

O amor pode mudar tudo. O amor é capaz de mudar as linguagens para que possamos ler e ter acesso ao mundo de um modo diferente. Não há diferenças entre sangues e raças. Quebrou-se a algema do escravo. Pela força do Direito e pela força da Razão cai por terra o preconceito e levanta-se uma nação!

O amor nos leva a liberdade. Preconceito é escravidão não só para quem é afetado, mas também para quem o pratica. Posso dizer como Martin Luther King Jr. que também tenho o sonho de um mundo onde o amor vencerá! Amor que não é sentimento. Amor que é ação! E essa ação começa por nós! Como cristãos, o nosso discurso não pode ser diferente e nem indiferente. Não podemos mais aceitar uma Igreja ou uma sociedade que trata outros seres humanos como não-seres humanos. Não! Basta! E começa por nós! Começa na maneira como educamos os/as filhos/as. Começa na maneira como usamos a linguagem nas nossas casas, comunidades, escolas, profissões. Começa no nosso coração!

Em maio de 2019 tive a oportunidade de ouvir pessoalmente a Graça Machel palestrar em Porto Alegre/RS. Ela é a viúva de Nelson Mandela. Ela é uma mulher negra e disse: “Se você cortar o meu braço, o sangue que vai ser é tão vermelho quanto o seu.” Ao falar esta frase, a plateia se colocou de pé para aplaudi-la. E precisa ser aplaudida mesmo! Somos todos humanos! Vamos demorar quanto tempo para entender isso?

Conclusão:
O sonho da paz

O P. Martin Luther King Jr. acreditava que é possível vencer o racismo com o amor e sem uso da violência. Eu acredito nisso também! Eu também tenho esse sonho! Escrevo esse texto não com ódio ou raiva, mas com amor! O amor vencerá! Esse é o mundo com que eu sonho, o mundo onde o amor vencerá! Desejo profundamente que não seja uma utopia inalcançável, mas um sonho realizado. Embora pareça distante, não deixo de acreditar! Você também! Não deixe de sonhar com um mundo melhor. Se perdermos isso, no que nos tornamos? Não deixemos de sonhar com o amor e a paz para todas as pessoas.

Para finalizar: há alguns meses atrás descobri uma palavra da língua inglesa que escolhi como a minha preferida: peacemakers. Seu significado é: pacificadores ou os fazedores da paz. Que sejamos verdadeiros peacemakers, verdadeiros fazedores da paz. Já recebemos de Deus o dom do amor. Vamos doar este amor a todas as pessoas. O amor é o vínculo que nos torna humanos. Isso é Paz!


P. William Felipe Zacarias


1 Ele estava se referindo à tragédia de Brumadinho/MG. Mas sua frase permanece sendo atual em outras tragédias da sociedade. Será que queremos continuar assim? E deixar que isso aconteça todos os dias? Será que ainda vamos dizer que “não precisamos ter um dia da consciência negra”?

2 Disponível em: <https://www.em.com.br/app/noticia/diversidade/2022/06/01/noticia-diversidade,1370531/caso-genivaldo-se-fosse-um-branco-nao-aconteceria-diz-irma-da-vitima.shtml>. Acesso em: 16. nov. 2022.

3 Não foram poucas as pessoas a alegarem que o crime não teria tido motivação racial.

4 WESTPHAL, Euler Renato; MICHELS, Maikon de Sousa; GUSSO, Luana de Carvalho Silva. Um Lakou no Brasil? A religiosidade como enfrentamento das adversidades em imigrantes haitianos. p. 349.

5 Citado por REILY, Duncan A. A influência do Metodismo na Reforma Social na Inglaterra no Século XVIII. p. 153. Apud: WESTPHAL, Euler. O Oitavo Dia: Na Era da Seleção Artificial. São Bento do Sul: União Cristã, 2004. p. 88.

6 KING JR., Martin Luther, 1964. In: VILLA, Marco Antônio. 50 Discursos que mudaram o Brasil e o Mundo. São Paulo: Planeta, 2018. p. 291.

7 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 4. ed. Petrópolis, Vozes. 2002, p. 488.

8 Cf. ORNISCH, Dean. Amor & Sobrevivência: A base científica para o poder curativo da intimidade. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

9 Gianni Vattimo, Jürgen Habermas, Richard Rorty e outros pensadores (muitos deles ateus) fazem esse destaque.


 


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