Trabalhar para viver ou viver para trabalhar?
[Meditação Mt 6.19 a 21]
Existem trechos na bíblia que os índios entendem com mais facilidade que nós. Eu trabalho com grupos do povo Kulina, no sul do estado do Amazonas. Estes indígenas seguem sua própria religião, mas há decadas têm contato com católicos e evangélicos das beiras dos rios e das pequenas cidades da região.
Há pouco tempo, num seminário, numa das aldeias, li com eles a seguinte pequena fala de Jesus que se encontra no sexto capítulo do evangelho de Mateus:
“Não ajuntem para vocês tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem corroem e onde ladrões escavam e roubam; mas ajuntem para vocês tesouros no céu, onde nem a traça nem a ferrugem corroem, e onde os ladrões não escavam, nem roubam.
Porque, onde está o tesouro de vocês, aí estará também o seu coração.”
Que tudo nesta terra é de durabilidade limitada é uma experiência diária para quem vive na selva. Que vale a pena dedicar-se ao que é eterno, os Kulina concordam imediatamente. E que o nosso coração fica sempre perto daquilo que para nós tem mais valor, já está até na língua deles: para dizer que amam alguém, dizem que o seu coração “está grudado” no outro. Ao ouvir o último versículo deste pequeno texto em seu idioma, eles comentaram logo: “É verdade, quando alguém de nós começa a pensar igual ao branco, querendo cada vez mais e só para si mesmo, o coração dele ‘fica grudado’ em suas coisas. Mas com a nossa comunidade, ele se preocupa cada vez menos.” Eles gostaram muito destas frases bíblicas, pois elas valorizam uma parte do seu tradicional modo de ser Kulina: para eles, viver bem significa viver em paz e harmonia com os familiares e os demais membros da comunidade. Para isso, preferem viver em solidariedade, repartindo quase tudo que têm.
Logo em seguida, fizeram a inevitável pergunta: “E os brancos, será que eles não conhecem esta fala de Jesus? Há tantos ricos no meio dos evangélicos e dos católicos. E mesmo entre os brancos que não são ricos há tantos que vivem querendo sempre mais; mais madeira, mais plantação, mais gado, mais dinheiro... O coração deles parece ‘grudado’ no dinheiro!”
E com o coração grudado no dinheiro, não estamos mais livres para a família. “Mas eu ganho dinheiro para facilitar a vida da minha família!”, muitos de nós respondem. Sim, mas mais do que do nosso dinheiro, a família precisa do nosso tempo e dedicação.
Com o coração grudado no dinheiro, também não estamos mais disponíveis para a comunidade. “Mas sempre estou em dia com o meu dízimo!” – Certo, com a nossa contribuição financeira, ajudamos para garantir o básico, a “terra” para a nossa comunidade existir. Mas é a nossa companhia que contribui para a vida comunitária florar nesta terra.
Muitas vezes os indígenas são chamados de “preguiçosos”, pois produzem pouco para vender fora das suas terras. Mas na compreensão da maioria deles, tira-se da floresta e da roça o que é preciso para alimentar as famílias e ainda para fornecer do que precisam para viver, como casas ou canoas. Sempre produzem para viver, mas não para enriquecerem.
Na fala a cima citada, Jesus também não mede o valor das pessoas por sua produtividade econômica. Pelo contrário, ele incentiva para que nós nos libertemos do vício destruidor de sempre querer aumentar mais os nossos bens. E é um vício mesmo, pois nunca chega num ponto final, nunca estamos bem satisfeitos. Estamos tão ocupados com o nosso interesse de aumentar os nossos bens que as relações humanas, a religião ou a reflexão sempre ficam para trás.
Certa vez, um empresário visitou uma aldeia. Ao ver um homem indígena brincando com seus filhos às três horas da tarde, não conseguiu mais se segurar e questionou:
-“Como você pode brincar com os seus filhos numa hora destas? Porque não vai pescar ou trabalhar na roça?”
-“Já pesquei tanto peixe hoje que deu para a gente almoçar e ainda vai dar para jantar”, respondeu o índio.
-“Mas você deveria pescar mais ou plantar alguma coisa na roça”, insistiu o empresário.
-“Para quê?” perguntou o indígena.
-“Para você poder vender uma parte da sua produção e ganhar dinheiro”, explicou o empresário.
-“E para quê?”, perguntou o índio novamente.
O empresário quis ajudar este coitado ingênuo e continuou explicando:
- “Juntando o dinheiro, você vai poder comprar melhores ferramentas e até maquinas para facilitar a lavoura, ou adquirir também um barco para pescar. Deste jeito, você terá condições para produzir e vender cada vez mais. Daí, depois de alguns anos, você poderá contratar empregados que vão trabalhar em seu lugar”.
-“E para que isso?”, o homem da selva ainda quis saber. “Para quê?”
O visitante, já um pouco aborrecido com tanta falta de inteligência, deu a última explicação:
-“Para você poder fazer do que mais gosta, como, por exemplo, ver os seus amigos ou brincar com os seus filhos.”
-“Então não preciso mesmo do seu conselho”, disse o índio, “pois é exatamente o que já estou fazendo, brincar com meus filhos em vez de trabalhar demais.”
Jörg Böthling
Por P. Frank Tiss, Eirunepé/AM.