Amados irmãos, amadas irmãs,
“a morte não é terrível. Passa-se ao sono e mundo desaparece – se tudo correr bem. Terrível pode ser a dor dos moribundos, terrível também a perda sofrida pelos vivos quando morre uma pessoa amada. Não há cura conhecida. Somos parte uns dos outros”1. Assim nos diz Norbert Elias, um importante e já falecido sociólogo alemão.
A morte é um tema difícil. A grande verdade é que ninguém gosta de falar sobre a morte. Nas famílias o assunto é ignorado sempre que possível. Quando há a sua menção, logo se escuta alguém dizer “vamos mudar de assunto” ou “ah, pare de falar besteira”. Talvez, neguemos falar sobre o assunto porque quando nos deparamos com o tema da morte, tomamos ainda maior consciência de que inevitavelmente um dia também morreremos. O teólogo luterano brasileiro e professor de bioética em curso de Medicina, Euler Renato Westphal, diz: “A morte do outro é prenúncio da minha própria. A visão de que a morte é algo natural é a tentativa de desenvolver mecanismos para se conviver com a morte”2.
Especialmente as crianças são as mais afastadas do tema da morte. Elisabeth Kübler-Ross, uma psiquiatra austríaca que viveu nos Estados Unidos ouvindo moribundos por mais de 10 anos, diz que vivemos em
uma sociedade em que a morte é encarada como tabu, onde os debates sobre ela são considerados mórbidos, e as crianças afastadas sob o pretexto de que seria “demais” para elas. Costumavam ser mandadas para a casa de parentes, levando muitas vezes consigo mentiras não-convincentes de que “mamãe foi fazer uma longa viagem” ou outras histórias incríveis. A criança percebe algo de errado e sua desconfiança nos adultos tende a crescer à medida que outros parentes acrescentam novas variantes ao fato, evitam suas perguntas e suspeitas ou cobrem-na de presentes como um mero substitutivo de uma perda que não pode atingi-la. Mais cedo ou mais tarde, a criança se aperceberá que mudou a situação familiar e, dependendo de sua idade e personalidade, sentirá um pesar irreparável, retendo este incidente como uma experiência pavorosa, misteriosa, muito traumática, com adultos que não merecem sua confiança e com quem não terá mais condição de se entender.3
Kübler-Ross diz também:
É igualmente insensato, como aconteceu, dizer que “Deus levou Joãozinho para o céu por amar as crianças” a uma menina que perdeu seu irmão. Esta menina, ao se tornar mulher, jamais superou sua mágoa contra Deus, mágoa que degenerou em depressão psicótica quando da perda de seu próprio filho, trinta anos mais tarde.4
Norbert Elias acompanha essa linha de pensamento ao falar sobre o momento em que as famílias visitam cemitérios, dizendo:
Crianças que tentem brincar alegremente entre os túmulos serão advertidas pelos guardiães da grama bem-aparada e dos canteiros por sua falta de reverência e respeito aos mortos. Mas quando as pessoas morrem, nada sabem da reverência com que são ou não tratadas. E a solenidade com que funerais e túmulos são cercados, a ideia de que deve haver silêncio em torno deles, de que se deve falar em voz abafada nos cemitérios para evitar perturbar a paz dos mortos — tudo isso são realmente formas de distanciar os vivos dos mortos, meios de manter à distância uma sensação de ameaça.5
Não apenas as crianças são afastadas do assunto “morte”, como também os adultos criam as maiores fantasias para que as crianças não tenham que lidar com esse assunto. Porém, ouvir as crianças e as suas dúvidas sobre a morte faz parte do seu processo de crescimento e amadurecimento, assim como de seu processo no estabelecimento da confiança nas pessoas que a cercarão quando crescer, se tornar adulta e perder seus entes queridos.
Além disso, antigamente a morte era um fenômeno público e familiar. Geralmente, uma pessoa adoecia e recebia seus últimos cuidados em seu próprio lar. Com isso, havia tempo para que questões não resolvidas fossem acertadas e para que a própria pessoa pudesse partir em paz, deixando a sua família em paz. A morte era um processo acompanhado e assimilado por toda a família. Também as sepulturas eram cavadas pelos próprios familiares da pessoa falecida, o que facilitava muito o processo de assimilação da perda.
Hoje, a morte é um fenômeno terceirizado, pois “hoje em dia, morrer é triste demais sob vários aspectos, sobretudo é muito solitário, muito mecânico e desumano”6. Kübler-Ross diz: “Morrer se torna um ato solitário e impessoal porque o paciente não raro é removido de seu ambiente familiar e levado às pressas para uma sala de emergência”7. Geralmente, os leitos dos moribundos são os mais afastados; por eles estarem em uma condição próxima da morte, são os que menos recebem alento e calor humano quando mais precisam. Por vezes, são transferidos para terem suas últimas horas em áreas completamente inadequadas como corredores ou mesmo no setor de emergência onde há muito barulho e luminosidade. Parece que quanto “mais avançamos na ciência, mais parece que tememos e negamos a realidade da morte”8. Infelizmente, o paciente
começa a ser tratado como um objeto. Deixou de ser uma pessoa. Decisões são tomadas sem o seu parecer. Se tentar reagir, logo lhe dão um sedativo e, depois de horas de espera e conjecturas sobre suas forças, é conduzido para a sala cirúrgica ou para a unidade de terapia intensiva, transformando-se num objeto de grande preocupação e grande investimento financeiro.9
A pandemia de Covid-19 demonstrou isso mais do que nunca. Acreditava-se que todas as pandemias estavam vencidas através do avanço da ciência. Seria questão de tempo para que a própria morte fosse completamente erradicada do planeta terra. Yoval Harari, um importante historiador do nosso tempo, diz no seu livro “Homo Deus”: “Alguns especialistas acreditam que os homens vão vencer a morte por volta de 2200; outros anunciam que isso acontecerá em 2100”10; ele diz também: “Mesmo que não conquistemos a imortalidade durante nossa existência, a guerra contra a morte será o projeto do próximo século”11.
Assim, conforme Westphal,
a educação médica contemporânea está focada na doença e na cura, e não no cuidado da pessoa que poderá morrer. A morte foi excluída das preocupações médicas. Assim, a morte e a finitude humana não podem fazer parte de uma Medicina focada na tecnologia.12
Parte dessa desumanização da medicina e das próprias famílias se deve a uma visão onde o ser humano “passou a ser visto à luz do funcionamento mecânico, da hidráulica, e, hoje, dos algoritmos”13. Sendo assim, quando alguém morre, não é uma “pessoa” que morre, mas apenas mais uma “peça” ou “coisa” que deixou de produzir e não dará mais despesas ao sistema. Sendo assim, 100 mil mortes... 200 mil mortes... 600 mil mortes... não fazem diferença alguma, mesmo que fossem tão humanos quanto qualquer um de nós. Porém, tendemos a nos “anestesiarmos” quando nos negamos tocar no assunto por medo e tabu do dia em que encararemos a nossa própria morte.
Em seu último livro publicado – chamado “A Roda da Vida” – Elisabeth Kübler-Ross diz que “A medicina tem seus limites, um fato que não se ensina na faculdade. Outro fato que não é ensinado: um coração compassivo, sentimento que supõe ternura, compreensão e desejo de ajudar, pode curar quase tudo”14. Além disso, a “melhor maneira de um médico ajudar seu paciente era ser ele próprio uma pessoa cheia de bondade, zelo, sensibilidade e amor”15. Por isso, não seria insensatez nem mesmo tolice permitir que pacientes terminais possam voltar aos seus lares e ter seus últimos momentos entre seus familiares a tempo de conversarem sobre a morte e o morrer, havendo condições para isso.
Precisamos aprender com a morte (ou as mortes) ao invés de ignorar o assunto com medo da nossa própria partida. A morte é uma grande e sábia escola da vida. Irônico, não é? É vivendo bem que se morre bem, mesmo que as dores sejam insuportáveis e as próprias doses de morfina quase não ajudem mais a suportar a dor da partida. É preciso viver verdadeiramente até morrer. Para isso, os que partiram ou estão prestes a partir são os melhores professores que, ao invés de serem jogados em qualquer lugar do hospital, deveriam ter a possibilidade de estar onde possam partir com sabedoria e dignidade, sem barulhos ou enfermeiras e médicos perguntando coisas o tempo todo. A pessoa precisa ser deixada a ir em paz para que a família também possa assimilar a perda em paz.
Amados irmãos, amadas irmãs,
temos muito o que aprender com a morte e o morrer, sem medo, tabu ou preocupação. Este tema deveria reaparecer mais nos cultos, nas nossas conversas familiares e ser mais debatido nas faculdades de medicina e nos próprios hospitais. Lembro-me de uma visita que fiz recentemente a um paciente hospitalizado. Ao seu lado, havia uma pessoa bastante idosa. Após aproximadamente 30 minutos, aquele idoso passou bastante mal. A sua esposa imediatamente chamou alguém e em instantes havia cerca de oito pessoas ao redor daquele idoso que possuía um semblante de susto e desespero. Estava com muita falta de ar. Logo chegou uma bomba com um tubo com a qual uma enfermeira bombeava o ar para seus pulmões ao mesmo tempo em que pedia que ele ficasse calmo. Cerca de um ou dois minutos depois, ele tirou o tubo do nariz para tentar falar alguma coisa; porém, foi bruscamente impedido por aqueles que – corajosamente – tentavam salvar a sua vida. Porém, fiquei meditando a respeito: e se, de fato, aquele idoso estivesse pronto para partir? E se quisesse dizer suas últimas e preciosas palavras à sua esposa? O que seria tão importante para dizer ao ponto do próprio ar se tornar algo dispensável? Seja o que fosse, não foi ouvido. Logo depois ele foi levado do quarto. Não sei descrever para onde. Porém, caso tenha morrido, partiu sem dizer o que ansiava e precisava. Questionar a equipe naquele momento seria impossível, com risco de ouvir muita raiva e xingamento por parte dos “deuses de branco que entendem tudo quando o assunto é a vida e a morte”.
Entretanto, vocês não foram chamados aqui apenas para ouvirem teorias e ideias sobre a morte e o morrer. Nós estamos aqui para falarmos da vida e vida em abundância, daquela que dura para sempre. Vivemos, porém, em uma sociedade onde a verdadeira e profunda fé cristã tem cada vez menos valor. Quer-se espiritualidade, mas não a igreja; quer-se conectar com o todo, mas sem a Palavra de Deus; quer-se fé, mas não Deus. Elisabeth Kübler-Ross afirma – como psiquiatra – que isso é uma enorme desvantagem para aqueles que estão para morrer. Para ela,
Enquanto a rejeição religiosa, ou seja, a crença no significado do sofrimento aqui na terra e a recompensa no céu após a morte, tem oferecido esperança e sentido, a rejeição propalada pela sociedade nada disso oferece, aumentando apenas nossa ansiedade, contribuindo para acentuar nosso senso de destruição e agressão.16
Precisamos lembrar e enfatizar a esperança. Os médicos podem até ser ateus, mas os pacientes e seus familiares geralmente são densos de espiritualidade. Nem sempre isso é levado em conta. Elisabeth Kübler-Ross fala sobre seus pacientes: “Todos eles demostraram satisfação ao discutir conosco seus pontos de vista sobre a gravidade de suas doenças e suas esperanças”17. Por isso, ao invés da fé ser chutada dos hospitais, o que precisamos é de uma abordagem interdisciplinar sobre a morte, uma vez que cada área do conhecimento possui apenas um pequeno ponto de vista sobre assunto. Ao invés da arrogância científica, dever-se-ia abrir espaços para discussões sobre todos estes assuntos.
Esperança é o que não nos falta na Palavra de Deus. 1 Coríntios 15 é um capítulo inteiro da Bíblia dedicado a falar sobre ela. O apóstolo Paulo nos diz no v. 19: “Se a nossa esperança em Cristo se limita apenas a esta vida, somo as pessoas mais infelizes deste mundo.” Paulo está falando que sem esperança só há tristeza. A esperança do apóstolo está fundamentada naquele que realmente venceu a morte e é capaz de conceder a vida eterna aos seus filhos e suas filhas. A esperança do apóstolo Paulo está fundamentada no dia da Páscoa onde o poder de Deus venceu a morte sagaz. Por isso, o apóstolo Paulo pode declarar: “Tragada foi a morte pela vitória. Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, a tua vara afiada?” (v. 56). A morte morreu! Ela foi vencida dentro dela mesma. Cristo morreu e ressuscitou, vencendo a morte e o medo da morte. “Graças a Deus, que nos dá a vitória por meio de nosso Senhor Jesus Cristo.” (v. 57). A partir de Cristo, a morte deixa de ser tabu ou algo amedrontador para se tornar uma fonte de sabedoria e de discussões enriquecedoras nos lares, nas igrejas, nas escolas, nos hospitais, nas universidades, assim por diante.
Martinho Lutero escreveu um sermão sobre a preparação para a morte em 1519. Lutero diz: “Embora o céu e o mundo em que vivemos agora sejam considerados grandes e vastos, tudo é muito mais apertado e menor em comparação com o céu que nos aguarda”18. Ele diz também: “Devemos pensar apenas em nos apegar à vontade de Deus, que é que nos agarremos a Cristo e creiamos firmemente que nossa morte, pecado e inferno nele foram vencidos em nosso favor e não podem nos fazer mal nenhum”19; e por último, ele diz: “devemos empenhar-nos em agradecer com grande alegria do coração à sua vontade divina, porque nos trata com graça e misericórdia de maneira tão maravilhosa, abundante e imensurável, contra a morte, o pecado e o inferno”20.
Assim, sejamos consolados por Deus quanto aos amados e queridos que partiram do nosso meio neste tempo difícil que vivemos. Deus nos console através da esperança verdadeiramente cristã na ressurreição dos mortos, pois nossos entes queridos descansam em suas sepulturas até o dia em que serão chamados pelo nome para habitarmos todos juntos na glória celestial. Tenhamos a certeza de que continuam vivos na memória de Deus, o Pai, que se lembrará de cada um e os chamará novamente à vida no dia em que serão criados novos céus e nova terra. A partir da esperança, falemos mais sobre a morte e o morrer para que estejamos cada vez mais preparados a aceitar a partida destes entes queridos ao mesmo tempo em que nos preparamos para a nossa própria despedida deste mundo. Procuremos também, na medida do possível, não afastar a agonia da morte para longe de nós, evitando o assunto ou até mesmo fugindo de visitar pessoas que estão em estado terminal, mas que também ali possamos ter a oportunidade de encontrarmos a verdadeira e mais sincera escola que existe para as nossas vidas.
Concluo citando um trecho de uma carta que uma criança enviou a Elisabeth Kübler-Ross apenas três dias antes de falecer: “Algumas flores desabrocham apenas por alguns dias. Todos as admiram e amam por serem um sinal de primavera e de esperança. Depois, essas flores morrem. Mas já fizeram o que tinham de fazer…”21. Nossos entes queridos são como estas flores. Foram amados e admirados em seu tempo de vida. Agora, precisamos aceitar que seu tempo e propósito neste mundo terminaram ao mesmo tempo em que relembramos a esperança da ressurreição que há somente em Cristo Jesus.
E a paz de Deus, que excede todo o entendimento, guardará os nossos corações e as nossas mentes em Cristo Jesus,
amém.
P. William Felipe Zacarias
Durante a Pandemia de Covid-19, a Paróquia Ferrabraz de Sapiranga/RS ficou 19 meses sem a realização de cultos presenciais (março/2020 até setembro/2021). Por causa disso, as orações memorias pelas famílias dos que faleciam eram realizadas apenas de maneira online, prometendo que futuramente haveria um momento de encontro presencial para tal. Agora, com o avanço da vacinação, a Paróquia está realizando Cultos da Esperança com o objetivo de reunir estas famílias para juntos meditarmos sobre a morte e o morrer. Os cultos estão acontecendo nos dias 13, 20 e 27 de Novembro de 2021.
1 ELIAS, Norbert. A solidão dos Moribundos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 52. Edição do Kindle
2 WESTPHAL, Euler Renato. “A precariedade humana em tempos de pandemia: meditações insólitas sobre a finitude da vida”. in: Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica. v. 06, n. 18, mai/ago. 2021. Salvador: BIOgraph, 2021. p. 744.
3 KÜBLER-ROSS, Elisabeth. Sobre a morte e o morrer. 9. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2016. p. 15. Edição do Kindle.
4 KÜBLER-ROSS, 2016. p. 15.
5 ELIAS, 2001. p. 27.
6 KÜBLER-ROSS, 2016. p. 16.
7 KÜBLER-ROSS, 2016. p. 16-17.
8 KÜBLER-ROSS, 2016. p. 16.
9 KÜBLER-ROSS, 2016. p. 17-18.
10 HARARI, Yoval Noah. Homo Deus: uma breve história do amanhã. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. p. 34.
11 HARARI, 2016. p. 37.
12 WESTPHAL, 2021. p. 744.
13 Cf. WESTPHAL, 2021. p. 746.
14 KÜBLER-ROSS, Elisabeth. A Roda da Vida. Rio de Janeiro: Sextante, 2011. p. 117. Edição do Kindle.
15 KÜBLER-ROSS, 2011. p. 117.
16 KÜBLER-ROSS, 2016. p. 25.
17 KÜBLER-ROSS, 2016. p. 163.
18 LUTERO, Martinho. Um Sermão sobre a Preparação para a Morte – 1519. in: LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas: Os Primórdios – Escritos de 1517 a 1517. 3. ed. v. 1. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia; Canoas: ULBRA, 2016. p. 387.
19 LUTERO, 2016. p. 393.
20 LUTERO, 2016. p. 398.
21 KÜBLER-ROSS, 2011. p. 272.