O texto que acabamos de ouvir começa falando de um conflito de convivência. Assim como acontece hoje em dia em nossas famílias, em nossas comunidades, os problemas de convivência causam muito estress. Quando Pedro pergunta a Jesus: «Quantas vezes meu irmão pecará contra mim, que eu lhe perdoe? Até sete vezes?» — parece que Pedro não fez essa pergunta a Jesus apenas por perguntar, apenas para puxar uma conversa. Podemos muito bem imaginar que aquele discípulo tinha uma divergência com algum dos outros discípulos. Podemos imaginar que a convivência entre os discípulos também tinha momentos de estress.
«Agora foi a terceira vez que este camarada me interrompeu, agora foi a quarta, a quinta, a sexta, a sétima vez!» — Podemos imaginar que Pedro chegou ao ponto de perder a paciência e partir para o confronto.
Talvez Pedro fosse um bom conhecedor da Bíblia. Ele certamente conhecia a lei do olho-por-olho, dente-por-dente. Talvez ele também conhecia aquela passagem de Gênesis 4,23-24 onde Lameque, descendente de Caim, diz que para ter o respeito das pessoas é preciso causar temor nas pessoas: «Matei um homem, diz Lameque, porque ele me feriu, e matei um rapaz porque ele me machucou. Se pela Lei de Caim cada morte se paga com sete mortes, pois a minha lei é: cada morte de paga com setenta e sete pessoas da família do assassino.»
Portanto, o caminho do Caim e do Lameque é: Violência se combate com mais violência. Violência se combate gerando medo e terror. Não é só dente por dente, olho por olho. Serão sete dentes por um dente. Sete pessoas por uma pessoa. Uma cidade incendiada por uma casa destruída. Para Caim e Lameque a violência não se combate com leis ou com a justiça, mas sim com o medo, com o terror. Tem muita gente que pensa assim ainda hoje.
Mas, na conversa com Pedro, Jesus fala de um caminho totalmente oposto. Jesus não é a favor desse caminho da violência e da crueldade. Por isso, os seguidores e as seguidoras de Jesus não tem o apoio de Jesus quando dizem: bandido bom é bandido morto. Para Jesus, bandido é um filho de Deus que está perdido. E cabe a igreja (aos seguidores e seguidoras de Jesus) procurar por ele e tratar de recuperá-lo. É claro que ele precisa pagar pelos seus erros. Mas, não é a igreja que deve julgá-lo. Para isso existe o estado e as leis. É o Estado que deve aplicar a justiça para que ele pague pelos crimes que cometeu. Quem julga e aplica a lei não é a igreja, mas é o estado. Se o estado é ineficiente, se o Estado não funciona, então a solução não é espalhar o terror, mas modificar o estado e não justificar a violência com mais violência.
Por isso, Jesus alerta: A igreja não pode repetir os mesmos erros da sociedade em geral. Os seguidores(as) de Jesus, os discípulos(as) – os membros de uma comunidade - não devem ficar contando os erros dos outros. Se alguma coisa nos incomoda na comunidade, podemos falar com alguém sobre isso, assim como Pedro foi falar com Jesus. Na maioria das vezes as coisas se resolvem com o diálogo.
A função dos seguidores(as) de Jesus não é aumentar os problemas na comunidade ou tratar de resolver os problemas com violência. A função dos seguidores e seguidoras de Jesus é transformar a pessoa que está errada, apontando o caminho de Deus para as pessoas que estão perdidas.
Mas, e se a pessoa errada não se corrigir? Talvez Pedro também tenha tido vontade de fazer essa pergunta a Jesus. E se a pessoa errada não se corrigir com diálogo, com perdão, com uma nova chance? O que fazer então?
Aí Jesus conta a seguinte história:
O reino de Deus é semelhante a um patrão que resolveu ajustar contas com os seus empregados que fizeram retiradas adiantadas de dinheiro.
Aí vem um dos empregados. Ele não deve pouco, não. Deve é muito. Dez mil talentos de prata. No tempo de Jesus, um talento de prata era o valor de dez cabras. Então, 10mil talentos dava para comprar um enorme rebanho de até 100 mil cabras. Com uma dívida tão grande, fica evidente tratar-se de um caso de corrupção.
O homem é trazido diante do patrão. E quando a situação dele se esclarece, quando fica realmente constatado que ele deve esta soma astronômica e que ele não tem dinheiro para saldar nem parte da dívida, o patrão dá ordem: esse caso precisa ser denunciado e vamos cobrar essa dívida na justiça. No tempo de Jesus, as dívidas eram pagas com trabalhos forçados de toda a família. Era prisão e escravidão.
Diante desse fato, aquele empregado faz uma coisa que o patrão não esperava. Cai de joelhos aos pés do patrão e aos prantos pede-lhe paciência. Ele quer negociar sua dívida. Promete pagar tudo. O patrão sabe que o empregado jamais vai conseguir juntar tanto dinheiro para pagar a dívida. Mas, comovido pela atitude do empregado, o patrão faz também uma coisa que não estava não se esperava. Ele perdoa a dívida do seu empregado. A dívida não foi negociada, nem adiada, foi perdoada! O patrão perdoou tudo! A história poderia terminar aqui, com esse final feliz. O empregado volta para sua família e recomeça a sua vida.
Mas, a história de Jesus ainda não terminou. O empregado ao invés de ir para casa, contar a novidade para sua família, ele encontra um compadre, um colega, que lhe deve cem denários. Um denário era o salário de um dia de trabalho. Dava para comprar 8 pães. Cem denários era como 3 meses de trabalho.
E o que ele faz com o seu compadre? Agarra seu colega pelo pescoço, sufoca-o e lhe diz: «Paga-me o que me deves!» Você me deve 3 salários mínimos! Paga-me o que me deves! O quê? Você não pode? Você quer negociar: Quer pagar aos poucos? Ora, esta conversa todo mundo já conhece. Nessa não caio, não. Vou te cobrar na justiça. Eu tenho a nota promissória, assinada por você e por testemunhas. Quem não paga suas contas, merece ir para a cadeia.
Quem ficou sabendo dessa atitude do empregado com o seu colega, ficou revoltado. Por que esse homem que tinha sido perdoado, não perdoou?
Será que ele pensa que perdoar é coisa de trouxa. E ele não é um trouxa como o seu patrão. Foi só fazer uma cena de desesperado e o patrão amoleceu o coração. Talvez ele tivesse se achado muito esperto, ao ponto de passar a perna no patrão e sair na vantagem. Se o patrão era um trouxa, ele não é. Com ele não tem conversa.
Essa história nos chama a atenção para várias coisas em nossa vida. Por exemplo: quem ama também pode se equivocar. O amor não é garantia que tudo que a gente fizer por amor vai dar certo. Algumas vezes a gente pode se equivocar. A generosidade do patrão não transformou aquele empregado numa pessoa melhor.
Mas Jesus não nos quer dizer que perdoar os outros é errado. Jesus continua dizendo que devemos perdoar setenta vezes sete. Mesmo que algumas pessoas tratem a gente de trouxa. No final da história, aquele empregado acabou descobrindo que ele não foi tão esperto assim. O mundo dá voltas. E Deus não se deixa enganar.
Jesus quer ajudar seus discípulos e a nós também que também a nossa sociedade é uma sociedade de indivíduos corrompidos. Ainda hoje tem pessoas que superam crises pessoais e até enfermidades, mas que não transformam suas atitudes depois da cura. A verdadeira cura, o amor e o perdão de Deus, deve trazer consigo uma transformação na sociedade e na vida pessoal de cada um/a de nós. A fé em Jesus não vai transformar o mundo. A fé em Jesus vai transformar pessoas que irão transformar o mundo. Por isso, ao falar do perdão, Jesus nos alerta que ao superar problemas, crises, enfermidades somos chamados a mudar atitudes egoístas em atitudes comunitárias.
Jesus já tinha falado sobre o perdão na oração do Pai nosso: «E perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores.» o perdão é um privilégio daquelas pessoas que sabem perdoar. É pedir para ser tratado do mesmo jeito que nós tratamos os outros. «Perdoa-nos, assim como perdoamos»
A parábola de Jesus não foi contada para botar peso em ninguém. Nossas familias e nossas comunidades estão ansiosas por mais tolerância, por mais perdão, por mais compreensão, por novas atitudes positivas que ajudem a melhorar os relacionamentos. E cada pessoa é chamada por Jesus a passar esse coisas adiante. Quantas vezes? Sete vezes?
- Não apenas sete vezes, diz Jesus, mas setenta vezes sete.
Amém.