Amados irmãos, amadas irmãs,
a Idade Média era um caos! Também chamada de “Idade das Trevas”, esse foi, de fato, um período obscuro da História da Igreja e da própria História Geral. Esse era um contexto em que as pessoas tinham medo de Deus. Deus era visto como um tirano pronto para castigar os pecadores; Deus era visto como um justo juiz que seria capaz até de ordenar à morte aqueles que não queriam se converterem à fé; não bastassem os sofrimentos em vida, Deus era visto como o grande castigador que lançava facilmente no inferno qualquer pecador – que permaneceria ali por toda a eternidade.
Para termos uma ideia do quão assustadora era a “imaginação” sobre Deus, prestemos atenção nesse pequeno relato do ano de 1487:
Há também a história dos três companheiros que caminhavam por uma estrada quando dois deles foram subitamente fulminados por um raio. O terceiro ficou apavorado ao ouvir vozes no ar, a dizer: “Vamos fulminá-lo também.” Em seguida, ouviu outra voz retorquir: “Não podemos, pois que hoje ele ouviu a sentença: ‘O Verbo se fez Carne.”’ Compreendeu então que fora salvo porque naquele dia assistira à missa e, ao final dela, as palavras de São João (1:1), no Evangelho: “No princípio era o Verbo” e assim por diante.1
Assim, o terceiro homem havia sido poupado porque naquele dia havia ido à missa. Do contrário, a ira dos céus recairia também sobre a sua cabeça.
Nesta época, as pessoas tinham medo de Deus. E havia quem se aproveitasse desse medo para ganhar benefícios, como a própria igreja da época que extorquia os cristãos através da venda das indulgências. Acreditava-se que para receber a vida eterna, o cristão deveria “negociar” com Deus, tal qual hoje muitas igrejas continuam promovendo esse negócio com promessas de bênçãos e prosperidade. Se naquela época vendiam-se “terrenos no céu”, hoje vendem-se “bênçãos na terra”.
É nesse contexto que em 10 de Novembro de 1483 nasceu na cidade de Eisleben um bebê que recebeu o nome do santo do dia: Martin Luder. O jovem Martin cresceu ouvindo todas essas histórias assustadoras sobre Deus; possivelmente até a história dos três companheiros – escrita quando ele tinha apenas quatro anos de idade – deve ter chegado aos seus ouvidos.
Cumprindo a vontade do seu pai, Hans Luder, o jovem Martin ingressou na faculdade de Artes e Direito. Porém, um dia, um “raio fulminante” cruzou também o seu caminho. Em 1505, enquanto voltava do sepultamento de um amigo, nas proximidades de Stotternheim um raio ameaçou a sua vida. Com medo da fúria divina, o jovem Martin clamou a Santa Ana. A ela, Martin prometeu que se fosse salvo da tempestade se tornaria um monge. “Pela primeira vez em sua vida, Martin negava obediência a uma autoridade, a autoridade paterna, e confiava sua vida a outra autoridade: a igreja”2. Foi então que Martin entrou para a ordem dos Agostinianos em Frankfurt no dia 17 de Julho de 1505.
Entretanto, ele continuava tendo medo de Deus e se torturava em penitências na esperança de encontrar um Deus misericordioso. Ele era “confrontado com a ira de Deus, com um Cristo raivoso, juiz que só condenava”3. Mais tarde, o próprio Lutero declarou: “Jejuei quase até a morte, pois muitas vezes passava três dias sem tomar uma gota de água ou aceitar um bocado de comida. Eu levava o jejum muito a sério”4. Mas passar sede e fome não era o bastante: “Eu me torturava com orações, jejuns, vigílias e congelamento; só a geada podia ter me matado”5. Qual era o objetivo desses sofrimentos causados em si mesmo? “Queria algo simples: um Deus misericordioso”6.
Mais tarde, na cidade de Wittenberg, Martin passou a estudar profundamente a Bíblia. Em Wittenberg atuava como professor de Bíblia. Não gostava de ler comentários ou interpretações sobre as Escrituras; ao contrário, Martin foi diretamente às fontes: o Novo Testamento em grego, especialmente a carta do apóstolo Paulo aos Romanos. Ao ler o Novo Testamento grego, Martin fez importantes descobertas e “exige de seus ouvintes que se transformem”7. “Ali está a palavra μετανοια (metanoia), traduzida no texto latino por poenitentia, penitência. Luder descobre que μετανοια é mais: mudança de direção” . Outra tradução para a palavra μετανοια é arrependimento. Pronto! “Essa palavra abre-lhe o céu” . Deus não espera do ser humano a penitência, a automutilação, o autoflagelo, mas um arrependimento sincero do coração a partir da obra de Cristo na cruz.
E assim, a partir da leitura da Bíblia, o jovem Martin começa a descobrir um Deus totalmente diferente daquele pregado pela igreja da sua época. No Novo Testamento, Martin descobriu um Deus que não faz a exigência do pagamento de indulgências, de obras para a salvação ou de penitências para agradá-lo com nosso sofrimento. Ao contrário, no Novo Testamento, Martin descobriu o Deus que sofre e morre na cruz em nosso favor – exatamente o contrário daquilo que era ensinado até então. Os sofrimentos de Cristo substituem, assim, qualquer sofrimento que faríamos para obtermos a salvação.
Martin encontrou na Bíblia o Deus que sofre em nosso lugar para nos poupar de nosso sofrimento. Cristo já assumiu a cruz para que não sejamos castigados pela ira do Pai. O Filho assumiu a condenação que era nossa para que nós sejamos salvos. O castigo de Deus recaiu sobre o próprio Deus. Sim! Deus castiga Deus: o Pai castiga o Filho inocente para que nós – os culpados – sejamos inocentados. Toda a ira de Deus recaiu sobre Jesus, o Filho, a Segunda Pessoa da Trindade. Assim, raios, acidentes ou doenças não são castigos divinos, pois o castigo já foi efetuado naquele que foi pendurado no madeiro. Como disse Paulo: “Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se ele próprio maldição em nosso lugar – porque está escrito: “Maldito todo aquele que for pendurado em madeiro”. (Gálatas 3.13). O Filho inocente é tornado maldito na cruz para que nós sejamos benditos diante de Deus! O apóstolo também disse: “Aquele que não conheceu pecado, Deus o fez pecado por nós, para que, nele, fôssemos feitos justiça de Deus”. (2 Coríntios 5.21). Jesus não apenas carregou os nossos pecados na cruz, como muito se diz; mesmo ele não tendo cometido pecados, na cruz, Jesus foi transformado no próprio pecado para que nós fôssemos justificados – tornados justos.
Paulo disse ainda: “Para a liberdade foi que Cristo nos libertou”. (Gálatas 5.1). E esse versículo é tão central para o Martin que foi capaz de lhe causar uma mudança de nome. Em grego, temos nesse versículo a palavra ἐλευθερίᾳ (liberdade). Por isso, o monge mudou o seu nome de Martin Luder (o vagabundo) para Martin Lutero (o liberto). Logo, ser evangélico de confissão luterana não significa seguir uma pessoa – o Lutero –, mas crer naquele que nos libertou: o Senhor e Salvador Jesus Cristo! A Reforma Luterana do séc. XVI não brotou da criatividade humana, mas do próprio Evangelho. É daí que surge o nome de Igreja Evangélica. Ser Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil significa, portanto, ser livres de fazer penitências porque Deus já nos concedeu gratuitamente a salvação no sofrimento do Filho para que vivamos em amor a Deus e às pessoas.
Amados irmãos, amadas irmãs,
a Reforma Luterana causou mudanças profundas na Igreja de Jesus Cristo. Lutero nunca quis criar uma nova igreja, mas reformar a Igreja em que era membro. Como isso não foi possível, surgiu então a Igreja Evangélica. A partir do séc. XVI, as igrejas da Reforma adotaram um lema que diz: “Igreja da reforma, sempre se reformando”. A tarefa de reformar a Igreja não parou no séc. XVI. Continua hoje no abandono daquilo que vai contra a Palavra de Deus e colocando no centro Cristo conforme revelado nas Escrituras.
Por isso, temos as seguintes balizas reformatórias:
1) Somente a graça: Hoje, tudo tem um preço. Há exigências para tudo. Em um mundo assim, é difícil compreender a graça de Deus. Porém, a graça divina é presente dado ao ser humano. Os meios da graça são os sacramentos do Batismo e da Santa Ceia. Deus não exige nada em troca pela nossa salvação. A salvação não está à venda;
2) Somente a fé: A salvação não provém da vinda aos cultos, do ajudar na igreja, no fazer obras sociais ou qualquer outra prática social que fazemos. Aliás, sem Cristo, até mesmo as boas obras nos condenam, pois assim elas negarão o autor da salvação. Por isso, a salvação é somente pela fé enquanto confiança nas promessas de Deus. A fé é dom de Deus – dado por graça – na qual o pecador pode se saber salvo por causa de Cristo;
3) Somente Cristo: Não adoramos ou oramos a imagens, santos ou outras divindades; não intercedemos a ninguém senão a Cristo – exclusivamente. Evangélicos de confissão luterana não fazem orações a pessoas que já partiram, nem creem que elas de alguma forma “estão olhando por nós”, pois também elas estão no descanso da morte aguardando a volta do Senhor Jesus no tempo que a Deus pertence;
4) Somente as Escrituras: a Bíblia é a maior autoridade da Igreja Cristã e não o papa ou as tradições. Por isso, as tradições não estão acima da Bíblia, mas são julgadas pela Bíblia como válidas ou não. Por isso, uma igreja/comunidade/paróquia que não conhece as Escrituras cairá facilmente em ensinamentos incorretos e em tradições vazias que são repetidas sem possuírem sentido algum para a fé.
Nestes 505 anos da Reforma Luterana e 15 anos da Paróquia Evangélica de Confissão Luterana Ferrabraz, o meu desejo é que Deus continue nos concedendo sabedoria e discernimento. Como evangélicos de confissão luterana, respeitamos e nos envolvemos ecumenicamente com outras denominações cristãs; nunca, porém, isso significaria o abandono daquilo que nós cremos a partir das Escrituras Sagradas.
E a paz de Deus, que excede todo o entendimento, guardará os nossos corações e as nossas mentes em Cristo Jesus, amém.
21º DOMINGO APÓS PENTECOSTES | VERMELHO | TEMPO COMUM | ANO C
30 de Outubro de 2022
P. William Felipe Zacarias
1 KRAMER, Heinrich; SPRENGER, Jakob. O martelo das feiticeiras. 28. ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2020. p. 264.
2 DREHER, Martin Norberto. De Luder a Lutero. São Leopoldo: Sinodal, 2014. p. 31.
3 DREHER, 2014. p. 41.
4 LW 54, p. 339-340. apud: LINDBERG, Carter. Reformas na Europa. São Leopoldo: Sinodal, 2001. p. 83.
5 LW 24, p. 24. apud: LINDBERG, 2001. p. 83.
6 DREHER, 2014. p. 38.
7 DREHER, 2014. p. 69.
8 DREHER, 2014. p. 69.
9 DREHER, 2014. p. 69.