Amados irmãos, amadas irmãs,
a luta contra a mentira é uma batalha de todo cristão que ama a Jesus. Vivemos um tempo único na história onde reinam a incerteza, o medo e a insegurança. Somos bombardeados diariamente por múltiplos tipos de informação ao ponto de quase ser impossível descobrir o que é fato e o que é fake. Hoje, não há mais verdades absolutas e universais a todas as pessoas, mas apenas os conjuntos de informações que eu – a meu critério e a partir das minhas ideias – julgo como verdadeiras. Estas informações são facilmente compartilhadas porque combinam com aquilo que eu defendo, sem, contudo, haver uma consulta aprofundada sobre determinado assunto. A definição da verdade não é mais universal e válida a todos, mas depende do eu: eu decido o que é verdade ou mentira para mim mesmo.
Obviamente, isso afeta também a igreja cristã de um modo geral. Se há 100 anos os cristãos verdadeiros possuíam convicções da sua fé, hoje, aparentemente, tudo é válido. Facilmente ouvimos frases populares como “Deus é só um”, ou “Deus é o mesmo”, assim por diante. Porém, será que é o mesmo Deus? Será que é a mesma fé? Os cristãos da atualidade perderam a noção de que nem toda prática religiosa é condizente com a Palavra de Deus e que nem toda experiência religiosa está de acordo com a Bíblia.
Inclusive, esta foi a batalha do Reformador Martinho Lutero. O reformador alemão não se conformou em apenas afirmar que “Deus é o mesmo” ou que “só existe um Deus”. Embora Lutero confessasse o mesmo Trino Deus, ele lutou para que o ensino da igreja fosse purificado para que os cristãos do seu tempo redescobrissem a verdade do Evangelho e confiassem novamente na Bíblia como uma autoridade para as suas vidas. Por isso, Lutero desafiou a igreja de seu tempo ao afirmar com muita coragem que a maior autoridade da igreja não era o Papa, mas a Palavra de Deus e que o maior tesouro da igreja não eram as relíquias que ela aparentemente tinha, mas o Evangelho de Jesus Cristo. Aquele homem foi usado por Deus para trazer a igreja de volta à essência do Evangelho.
Este é o firme propósito da Carta de Judas. Este Judas não é aquele que foi o traidor, mas o irmão de Jesus e Tiago. Nós encontramos essa informação em Marcos 6.3, onde está escrito: “Não é esse o carpinteiro, o filho de Maria e irmão de Tiago, José, Judas e Simão?” Judas era irmão de Jesus, mas não era apóstolo de Jesus. Chama-nos a atenção que no início da sua carta, Judas não se define como meio-irmão de sangue de Jesus, mas como “servo de Jesus Cristo e irmão de Tiago.” (Judas 1.1). Assim, Judas não se colocava acima dos demais de cristãos, mas em um nível de igualdade com eles, mesmo sendo meio-irmão de sangue do Senhor. Seu parentesco físico com Jesus não lhe concedia privilégios especiais.
A carta de Judas não é endereçada a uma igreja específica, mas a todos os cristãos da sua época. A intenção de Judas era a de alertar a igreja de seu tempo sobre a existência de falsos mestres com falsos ensinos entre os próprios cristãos. Eles sorrateiramente se infiltraram no meio do rebanho sendo, na verdade, lobos devoradores. A carta de Judas é endereçada a cristãos que caíram nas mentiras dos ensinos de falsos mestres ao invés de permanecerem fiéis à verdade evangélica. Sua carta é uma denúncia de que – embora seus destinatários conhecessem bem a Bíblia (cf. 1.5-16) – eles estavam completamente afastados do Evangelho e da própria salvação. Por isso, Judas se sentiu no dever de escrever uma carta alertando os irmãos sobre aqueles que aparentam ser de Jesus, mas que, na verdade, são do diabo. O sábio pastor presbiteriano Hernandes Dias Lopes diz: “Judas viveu num tempo em que as pessoas transigiam com a verdade e consideravam todas as religiões igualmente válidas. Por essa razão, Judas faz uma convocação solene à igreja, mostra o perigo dos falsos mestres e seu desastroso destino”1.
Os cristãos de sua época estavam caindo principalmente em duas doutrinas que não combinam com as verdades da Palavra de Deus:
a) Antinomismo: Esta doutrina de “nome esquisito” dizia respeito a quem acreditava que a crença no Evangelho libertava da Lei Moral. Isso é comprovado no final do v. 4, onde está escrito: “São pessoas ímpias, que transformam em libertinagem a graça do nosso Deus e negam o nosso único Soberano e Senhor, Jesus Cristo.” Os antinomistas pensavam que o Evangelho lhes permitia fazer o que quisessem, afinal de contas, Jesus havia morrido por eles e certamente sempre lhes concederia o perdão. Na verdade, eles perverteram a graça de Deus e apenas usavam do Evangelho para justificar os seus próprios pecados.
Por incrível que pareça, pode haver na igreja pessoas que usam a Palavra de Deus apenas para justificar as suas ações ao invés de procurarem seguir os ensinamentos da Palavra de Deus como instrução para a sua vida cristã. Aceitam o Evangelho, mas negam a Lei como organização da sociedade, ensino para a vida e ajuda aos regenerados. Querem que o Evangelho lhes permita todo tipo de liberdade, mas se negam a ouvir as palavras de repreensão e correção.
Este tipo de ensino estava presente nas igrejas de sua época e, por isso, Judas, meio-irmão e servo de Jesus, precisa escrever uma carta para que os irmãos retornassem à doutrina correta da Palavra de Deus na vivência evangélica com liberdade e responsabilidade diante de Deus e do próximo, sem baratear a graça de Deus;
b) Gnosticismo: Esta doutrina de “nome ainda mais esquisito” dizia respeito a quem acreditava que o mero conhecimento intelectual de Jesus já poderia conceder a salvação. Os gnósticos acreditavam na salvação pelo conhecimento e não pela fé salvadora em Jesus Cristo. Além disso, negavam as doutrinas da Criação, encarnação e ressurreição. Ao mesmo tempo, também os gnósticos barateavam a graça de Deus achando que poderiam cometer qualquer tipo de pecado sem nenhuma consequência. Era uma doutrina completamente contrária ao Evangelho e as igrejas da época precisavam ser purificadas dela antes que a desgraça causada por ela fosse ainda maior ou irreversível.
Mais tarde, os chamados Pais da Igreja irão concordar que esse ensinamento falso começou com Simão, o Mágico, em Atos 8.9-24. Aquele homem ensinava que a salvação vinha pela fé nele mesmo2. Além disso, este falso ensinamento negava a importância do Antigo Testamento. Mais tarde, um cristão chamado Marcião irá interpretar de forma errada o Novo Testamento ao ponto de afirmar que o Deus do Antigo Testamento é diferente do Deus do Novo Testamento.
Esta era apenas uma das faces de uma das heresias mais perigosas enfrentadas pelos cristãos no início da Igreja. Judas já percebia este problema em sua época e teve tempo para escrever uma carta exortando os irmãos ao discernimento espiritual de doutrinas.
Assim, “jamais houve um período em que os cristãos não tenham sido confrontados com a tarefa de expressar sua fé sob a forma de confissões (uma espécie de resumo da fé)”3 para que falsos ensinamentos fossem combatidos e a verdade do Evangelho, preservada. Era preciso preservar a doutrina correta para que salvação não fosse perdida. Esta é uma obra do próprio Deus na História da Igreja: Deus sempre levanta novamente homens e mulheres que lutam contra a mentira e batalham pela verdade do Evangelho.
Judas também estava nesta batalha. Assim nos diz a sua carta: “Amados, quando eu me empenhava para escrever-lhes a respeito da salvação que temos em comum, senti que era necessário corresponder-me com vocês, para exortá-los a lutar pela fé que uma vez por todas foi entregue aos santos.” (Judas 1.4). A palavra lutar que aparece nesse versículo é muito importante! No grego, a palavra não possui apenas o sentido de uma batalha, mas também de uma agonia. “É um retrato do atleta dedicado competindo nos jogos gregos e esticando nervos e tendões, a fim de dar o melhor de si e vencer”4. Era como a agonia de entrar no Coliseu para batalhar contra um grande gladiador.
Judas está dizendo aos leitores da sua carta que assim como um atleta se prepara com todo o esforço, com toda a coragem e com todo o seu treino para a batalha, da mesma forma os irmãos deveriam se empenhar para combater qualquer ensino incorreto que invada a Igreja Cristã. Esta não é uma tarefa fácil. Podem acontecer divisões, brigas, difamações. Assim como na vida de um atleta, batalhar pela verdade pode trazer ansiedades, agonias, estresses e preocupações. Entretanto, não se deve desistir! É preciso persistir! Confiar! Seguir em frente!
Não se trata, porém, de uma luta pelas nossas verdades individuais. Não é uma batalha para defender o que nós mesmos pensamos a respeito de qualquer coisa. A batalha agonizante é pela verdade e pela clareza do próprio Evangelho. Se um atleta entrar em na batalha sem treino, ele será facilmente derrotado. O defensor da Palavra de Deus precisa treinar, isto é, conhecer bem a Palavra da Verdade para então defendê-la mesmo que o mundo inteiro a queira distorcer e eliminar sua autoridade. Se não treinar antes, lendo e conhecendo bem da Palavra e do contexto dos textos, certamente será vencido. Por isso, a regra principal de interpretação bíblica é: texto fora de contexto é pretexto!
A luta contra a mentira é uma batalha de todo cristão que ama a Jesus. Esta mesma luta permanece sendo importante hoje quando muitas pessoas apenas usam e manejam da Palavra de Deus para justificar suas ações injustificáveis, promovendo a injustiça, a opressão, a fome, a miséria, a morte. Citar versículos bíblicos ainda não torna alguém uma pessoa cristã. E há muitos que usam desta Palavra para iludir pessoas e – como Simão, o Mágico – conseguirem seguidores para si mesmo a fim de permanecerem inabaláveis onde estão. A carta de Judas é endereçada também a nós para que estejamos atentos àqueles que se infiltram na Igreja para promoverem seus próprios nomes e não o nome de Jesus, ou quando apenas usam o nome de Jesus para promoverem seus próprios nomes. Estejamos de olhos bem abertos!
Para estarmos atentos, precisamos:
1 Relembrar quem deu a Palavra: Assim nos diz o v. 17: “Mas vocês, meus amados, lembrem-se das palavras anteriormente proferidas pelos apóstolos de nosso Senhor Jesus Cristo.” O ensino dos apóstolos é o ensino correto da Palavra de Deus. Atos 2.42 nos diz que os primeiros cristãos “perseveravam na doutrina dos apóstolos.” Fique atento a quem quer colocar ou retirar algo da Bíblia;
2 Relembrar o que eles disseram: O v. 18 nos diz: “Eles diziam a vocês: “Nos últimos tempos, haverá zombadores, andando segundo as suas ímpias paixões.” É o mesmo ensinamento que está em 2 Pedro 3.3. Os zombadores manifestam publicamente seu desprezo e seu descaso por Deus e pela sua Palavra, rejeitando também o juízo de Deus e escolhendo uma vida de pecado. Cuidado com quem debocha da Palavra de Deus! O apóstolo Paulo nos diz em Gálatas 6.7: “Não se enganem: de Deus não se zomba. Pois aquilo que a pessoa semear, isso também colherá”;
3 Relembrar porque eles disseram: O v. 19 nos diz: “São estes os que promovem divisões, seguem os seus próprios instintos e não têm o Espírito.” São pessoas vestidas de ovelhas, mas com essência de lobos. Seu objetivo não é edificar, mas dividir e destruir. São enganadores porque não possuem o Espírito Santo, mas seguem o espírito diabólico. Estas pessoas precisam de um arrependimento sincero antes que seja tarde demais. Devemos ficar atentos aos seus ensinamentos e buscar a verdade do Evangelho mesmo quando somos confrontados por lobos devoradores. Ou temos um compromisso com a Palavra, ou nos comportaremos a partir das próprias verdades individuais.
Amados irmãos, amadas irmãs,
a luta contra a mentira é uma batalha de todo cristão que ama a Jesus. O grande pregador inglês Charles Spurgeon certa vez disse: “Não consigo suportar as doutrinas falsas, por mais primorosa que seja sua apresentação. Você comeria carne envenenada só porque lhe é servida em um prato de porcelana finíssima?”5 Não importa se a mentira vem da maneira mais enfeitada e bonita possível: uma mentira permanece sendo uma mentira! Sempre!
É preciso batalhar pela verdade, mesmo em meio a tantas incertezas, medos e preocupações. Em meio às tantas fake news e às tantas distorções do Evangelho, o desafio dado por Deus a nós hoje é que tenhamos a coragem de distinguir a verdade da mentira, não por causa do que nós acreditamos ser a verdade, mas por causa daquilo que a Palavra de Deus diz ser a verdade. Também todos os nossos pensamentos, crenças e ideias são julgados pela Palavra de Deus. A verdade que liberta não é a minha, ou do meu “ídolo” de estimação do momento, seja um jogador de futebol, um artista, um cantor ou um político. A verdade que liberta é a verdade do Evangelho do amor incondicional de Jesus pelos seres humanos. Esta é a verdade libertadora!
Por isso, sigamos os conselhos finais dados por Judas, servo de Jesus, aos cristãos: “Mas vocês, meus amados, edificando-se na fé santíssima que vocês têm, orando no Espírito Santo, mantenham-se no amor de Deus, esperando a misericórdia do nosso Senhor Jesus Cristo, que conduz para a vida eterna. E tenham compaixão de alguns que estão em dúvida; salvem outros, arrebatando-os do fogo; quanto a outros, sejam também compassivos, mas com temor, detestando até a roupa contaminada pela carne.” (Judas 1.20-23). A correção para a verdade deve ser feita em amor à pessoa, mas detestando a mentira.
Confiemos no Senhor! Termino com as últimas palavras de Judas: “E ao Deus que é poderoso para evitar que vocês tropecem e que pode apresentá-los irrepreensíveis diante da sua glória, com grande alegria, a este que é o único Deus, nosso Salvador, mediante Jesus Cristo, Senhor nosso, sejam a glória, a majestade e o poder e a autoridade, antes de todas as eras, agora, e por toda a eternidade. Amém.” (Judas 1.24-25).
15º DOMINGO APÓS PENTECOSTES | VERDE | TEMPO COMUM | ANO B
05 de Setembro de 2021
P. William Felipe Zacarias
1 DIAS LOPES, Hernandes. 2Pedro e Judas: quando os falsos profetas atavam a Igreja. São Paulo: Hagnos, 2013. p. 105.
2 Cf. HÄGGLUND, Bengt. História da Teologia. 7. ed. Porto Alegre: Concórdia, 2003. p. 28.
3 LINDBERG, Carter. Uma breve história do Cristianismo. São Paulo: Loyola, 2008. p. 39.
4 DIAS LOPES, 2013. p. 11.
5 SPURGEON, Charles. in: DIAS LOPES, 2013. p. 113.