Lucas 12.49-56 nos apresenta um Cristo estranho e que talvez contrarie os pensamentos cristológicos da Reforma do Séc. XVI. O Jesus Cristo crucificado enquanto revelação do rosto amoroso e misericordioso de Deus daria lugar ao Cristo de Constantino, Carlos Magno e tantos outros que abusaram do seu nome para causar conflitos na História da Igreja. Quando o arquétipo do Cristo misericordioso é trocado pelo arquétipo do Cristo dos poderosos, “acima de tudo e de todos”, acabam-se de vez as distinções de Lei e Evangelho, pois o primeiro uso da Lei acaba sendo transformado no próprio evangelho: a salvação passa a vir dos “messias políticos” (sejam quais forem) e não do Cristo da cruz. Essa mutilação do Evangelho dá justificativa e base ao armamento, à guerra, enfim, à própria banalização da morte.
Portanto, qual é o Cristo de Lucas? Qual a condutância entre o Cristo dos pobres e marginalizados – como Lucas o apresenta em todo o seu Evangelho – com o Cristo do fogo e da espada? Qual a relação entre o Cristo enquanto Príncipe da Paz com esse Cristo aparentemente destruidor da paz?
Talvez, tenhamos que olhar além, olhar para os “valores” do Reino de Deus. Quais “valores”? Refiro-me a aqueles que estão registrados em Mateus 5.3-10: Destaco o v. 6, que diz: “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados”. Também o v. 9: “Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus”. Os “valores” citados no Sermão do Monte de Mateus (ou da Planície de Lucas) são um estrondo terrível nos ouvidos de quem almeja o poder a todo custo, de quem confunde Lei e Evangelho e de quem não quer deixar Deus ser Deus para que sejamos seres humanos. O Deus da cruz confunde e enlouquece as potências, as hierarquias e as forças do mundo imanente. Como diria o filósofo italiano contemporâneo Gianni Vattimo,
É possível evidenciarmos, através de uma leitura radical da encarnação como kénosis, que o enfraquecimento do ser é um dos possíveis sentidos, senão o sentido absoluto, da mensagem cristã que fala de um Deus que se encarna, se rebaixa e confunde todas as potências deste mundo...1
Parece ser impossível que tais bem-aventuranças e o Evangelho possam trazer divisão à terra. É loucura pensar que a mensagem da paz possa trazer divisão. Então, vieram à minha mente alguns nomes que tiveram fome e sede por justiça e que, tal qual Abel, seus sangues ainda hoje clamam da terra por justiça: lembrei-me de Dietrich Bonhoeffer, Martin Luther King Jr., Dorathy Stang, Doraci Edinger; lembrei-me também de Bruno e Dom.
De quantos outros poderíamos lembrar? Quantos outros, lutando pela vida, foram mortos? “Em um mundo de exclusão, quem é contra a exclusão é excluído”2; em um mundo marcado pela morte, quem é a favor da vida em abundância para todas as pessoas, é morto; no mundo dos poderosos não há lugar para os fracos. Esse é o mundo em que vivemos: um mundo cheio de notórias contradições, contrastes e incoerências.
Portanto, ao que me parece, não há contradição entre Lucas 12.49-56 e a cristologia bíblica, dos credos da Igreja Antiga e com a própria cristologia luterana; ao contrário, ao que me parece, as contradições residem justamente no fato de que, por mais que já tenhamos avançado muito tecnologicamente, continuamos atrasados em nossa humanidade: o ser humano já pisou na lua, mas ainda não aprendeu a amar e a pacificar como Jesus. Contudo, lembremos que o avanço que não enxerga o outro é sempre um retrocesso. Assim, a mensagem de Cristo sempre será crítica ao mundo dos poderosos, das injustiças, das desigualdades, assim por diante.
Assim, continua sendo possível que onde a verdadeira mensagem do verdadeiro Cristo bíblico é pregada sem titubear, ali surja conflitos, guerras, enfim, perseguições, tal qual foi aos primeiros cristãos e tal qual continua acontecendo em diversos lugares hoje. Talvez, até mesmo em nossas comunidades – especialmente neste ano!
P. William Felipe Zacarias
Sapiranga/RS, 09 de Agosto de 2022
Comunidade Vida Nova - Paróquia Evangélica de Confissão Luterana Ferrabraz
Sínodo Rio dos Sinos
1 VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade. Rio de Janeiro: Record, 2004. p. 101.
2 KIVITZ, Ed Rene. “Sobre o meu desligamento da Ordem dos Pastores Batistas do Brasil/SP”. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=m2ivGEMK2rE>. Acesso em: 07. ago. 2022.