Vida Celebrativa - Ano Eclesiástico


ID: 2654

Romanos 8.22-27

Auxílio Homilético

24/05/2015

Prédica: Romanos 8.22-27
Leituras: Ezequiel 37.1-14 e João 15.26-27; 16.4-15
Autor: Martin Norberto Dreher
Data Litúrgica: Domingo de Pentecostes
Data da Pregação: 24/05/2015
Proclamar Libertação - Volume: XXXIX

Estamos muito bem representados diante de Deus.
Melhor impossível!

 1. Introdução
 

Pentecostes é a festa do Espírito. No Brasil, o conceito “Espírito” gera muitas expectativas e está antecedido por muitas concepções. É bom que o pregador se lembre disso. A filosofia ocidental sugere que haja oposição entre realidade material e realidade espiritual. Fala-se do ser humano orientado pelas coisas da natureza e pelas coisas do espírito. Discute-se o que seja mais importante: o material ou o espiritual. Quando de fala da “festa do Espírito”, muitos podem pensar nas “forças espirituais” do ser humano, sua capacidade de raciocinar, sua vontade heroica, seu autodomínio, sua capacidade de controlar os instintos, os “bens mais altos” que a pessoa tem. Não raro, essas “capacidades” são então deduzidas do “divino” que reside no ser humano, da simbiose entre Deus e ser humano. Agora, o Brasil em particular está repleto de “espíritos”. Não foi por acaso que o kardecismo aqui se transformou em religião e que pululam espíritos em busca de reencarnação, que há espíritos de ancestrais a exigir oferendas de seus descendentes.

Não é tarefa da pregação tratar da filosofia ocidental ou do mundo dos “espíritos”. O que é essencial à pregação é evidenciar que o “espírito” do ser humano ou os “espíritos”, mesmo aqueles que batem na nuca da pessoa e jogam-na ao chão não são idênticos ao Espírito de Deus nem “centelha” desse Espírito. A “imagem e semelhança de Deus” fala de uma relação do ser humano com Deus. De modo algum afirma que Deus e ser humano tenham origem ou sejam feitos da mesma matéria! Não afirma que o ser humano seja portador de matéria divina. Criador e criatura são distintos em sua totalidade. Quando e se o Espírito de Deus habita em nós ou nos é concedido, isso é um milagre. E esse milagre aconteceu em Pentecostes em e com pessoas que, sendo pecadoras, se haviam fechado a Deus, que dele se haviam separado, que confiavam em si mesmas, que se vangloriavam de suas capacidades e que pretendiam se autoafirmar contra Deus, mesmo sendo “justas” e “piedosas” e tendo o nome de Deus em cada frase que proferiam. Em Pentecostes, o próprio Deus dirige-se a pessoas que dele nada sabem ou que nada querem saber. Em Pentecostes, Deus dá-se de presente em um mundo rebelde, caído, ingrato, que se autoglorifica, orgulhoso, autodestrutivo, nada “pneumático”, muito “carnal”. Estamos indo muito longe na análise de nós mesmos? Os textos do domingo ajudam-nos a encontrar resposta.

Os três textos do domingo querem animar a comunidade a ter esperança a partir das ações do Espírito de Deus. Ezequiel fala do Espírito de Deus que arranca vida de sepulturas. Gente injusta, povo idólatra volta a viver pelo amor de Deus. João fala do Espírito de Jesus que fará as pessoas saberem o que é direito e justo, a designar de pecado o que é pecado. Romanos 8 é todo ele dedicado ao “Espírito” e diz que quem vive no Espírito de Deus é pessoa cheia de esperança.

2. O texto

Ernst Käsemann chama nossa atenção para o fato de que no capítulo 8 da Epístola aos Romanos, todo ele dedicado ao Espírito, os versos 18-30 formam uma unidade. Nesse capítulo, Paulo não se deixa envolver pelo entusiasmo característico do mundo helenista nem pelo êxtase por ele anunciado. É sóbrio. Esperança cristã parte da esperança do sofrimento, parte da cruz do crucificado. Mas o sofrimento que experimentamos nada é se comparado à glória que nos aguarda (v. 18). Mas é necessário que passemos por ele. É verdade, a criatura geme, os cristãos gemem, até o Espírito geme, mesmo que de forma diferente do que os cristãos. Cristãos gemem enquanto esperam que Deus os liberte completamente. Enquanto gemem, o Espírito auxilia-os em sua fraqueza. É ele quem intercede pelos cristãos junto a Deus. O que é essa “fraqueza” dos cristãos? É a dúvida, a incerteza dos que ainda estão do lado de cá da fronteira escatológica. Não sabemos “o que” devemos pedir. Sabemos “como” devemos pedir, pois o que Deus reservou para nós vai além de nosso pedir e de nosso compreender. Como, porém, o Espírito intercede por nós, é ele quem interpreta o que nosso coração deseja, e Deus o entende. Mais: o Espírito “pede de acordo com a vontade de Deus”, pois “sabemos” (Paulo reproduz frase do judaísmo) que tudo o que a misericórdia de Deus faz é para o bem.

Quem são os cristãos, segundo o apóstolo Paulo? São aqueles que parecem não ter nada, mas, na verdade, possuem tudo (2Co 6.10). Não foi, pois, por acaso que os entusiastas de Corinto consideraram Paulo um joão-ninguém. Ele, por seu turno, aceitou essa crítica de bom grado, pois o Jesus que conheceu em Damasco considerava felizes os pobres de espírito (Mt 5.3). Paulo considera-se integrante do grupo dos pobres de espírito. Sabe-se solidário com aqueles que esperam, sofrem, gemem. Seu Senhor é o crucificado, e é esse o senhorio que deve caracterizar a existência do cristão. A glória que se evidenciará em nós cristãos (Rm 8.18) está além-fronteira. “Foi por meio da esperança que fomos salvos” (Rm 8.24). Esperança orienta-se no que ainda não vê.

Não ter nada e ter tudo. Isso é paradoxal. É, quem crê contra tudo e contra todos cabeçudamente é virtuoso. Será? Não, o crucificado é o Ressurreto. Pelo Batismo tornamo-nos participantes da morte de Cristo e esperamos pela ressurreição dos mortos, que ainda há de vir porque Jesus ressuscitou. Mas por estarmos “em Cristo”, encontramo-nos “no” Cristo ressuscitado. Ainda vivemos “na carne” e, por isso, ainda temos a caminhada em direção à vida da ressurreição diante de nós. Temos que esperar e aguardar e suspiramos no aguardo do que há de vir. Também podemos observar a questão desde o outro lado, desde o lado escatológico e dizer: “Já não mais vivo eu, mas Cristo vive em mim” (Gl 2.20). Contudo, quem vive em mim não é o Cristo do passado, aquele que é recordado, mas o Ressurreto. Sou nova criatura, as coisas velhas já passaram, algo novo surgiu (2Co 5.17). Renascimento é surgimento de algo novo. “Em Cristo” essa nova criatura já existe. Eu, que ainda vivo na carne, só vejo um lado da moeda; na fé no Filho de Deus (Gl 2.20) sei que a moeda (minha vida cristã!) tem ainda um outro lado: fui conformado com a imagem do Filho de Deus e, por isso, fui glorificado. Por estarmos “em Cristo”, podemos dizer que “temos tudo”.

É nessa duplicidade da vida cristã que nosso texto de Romanos deve ser lido. É ele que deve ser anunciado à comunidade reunida em culto no dia de Pentecostes. É comunidade pobre, esperançosa, ansiosa pelo Espírito, pedindo por ele. Também ela é duplicidade: é rebanho à espera, igreja a caminho, vivendo na carne, mas com o Espírito a auxiliá-la em sua fraqueza. Ela é, a um só tempo, igreja dos pecadores e igreja não pecadora. A igreja que não existiria sem o Pentecostes celebra Pentecostes. Essa perspectiva auxilia a esquematizar a pregação que teria como tema: Entre carência e riqueza. Somos comunidade representada pelo Espírito de Deus.

3. Meditando

Todo o capítulo 8 de Romanos fala do Espírito. Carecemos dele ou será que o temos? O certo é que ninguém pode designar Jesus de “Senhor” sem o Espírito (1Co 12.3). Só o Espírito consegue entender Deus em sua totalidade, e nós pensamos como Cristo pensa (1Co 2.16). Andamos segundo o Espírito (Rm 8.4). O Espírito mora em nós (Rm 8.9,11), ele nos impulsiona, assim como o vento empurra a vela (Rm 8.14). Temos o Espírito como “primeiro presente que recebemos de Deus” (Rm 8.23) para experimentar como é a vida futura que Deus nos preparou. Voltemos à imagem dos dois lados da moeda: seja qual for a situação que enfrentamos em um dos lados da moeda, que nos mostra nossa vida “na carne”, é necessário não esquecer que a moeda tem uma segunda face, toda feita de ouro: vida celestial que já se faz presente em nós e junto a nós como “primeiro presente”. Importa não esquecer que já o temos.

Observe-se que estamos falando de um “primeiro presente”. Esse primeiro presente é o Espírito que nos deixa experimentar o que há de vir. Ainda esperamos, ansiamos e gememos (v. 23). O Espírito dá-nos o testemunho de que somos filhos e filhas de Deus e autoriza-nos a designar Deus de Pai e, mesmo assim, gememos, pois aguardamos ser postos nessa situação, nessa filiação (v. 23). Não “vemos”, “esperamos”, e o esperado é o que ainda não vemos (v. 24ss). O lado dourado da moeda ainda não está visível para nós.

Essas constatações estão a nos recomendar sobriedade quando pretendemos detectar a realidade da vida no Espírito em nós através de determinados fenômenos. O que afirmamos a respeito do reino de Deus deve também ser afirmado em relação à vida cristã. Estamos proibidos de dizer: “Vejam! Está aqui” ou “Está ali” (Lc 17.21). Não estamos afirmando que não se veem as consequências práticas do ser cristão no dia a dia. Agora, quem quiser constatar e julgar o ser cristão de uma pessoa, segundo determinados critérios empíricos, transformará o que a Bíblia designa de “justiça” em qualidade religiosa e moral e esquecerá que “justiça” é uma relação: uma relação que foi restaurada entre Deus e nós. Na história do cristianismo, sempre de novo foi feita a tentativa de tornar palpável aquilo que está oculto em Cristo. Sempre de novo se fizeram exigências em relação aos cristãos: “Quão certo estás de tua conversão, de teu novo nascimento?” “Quais são os dons espirituais dos quais és detentor?” “Conseguiste te apartar para sempre de determinados pecados?” “Um cristão é pessoa alegre! Já conseguiste te afastar de tuas depressões?” “Quantos atendimentos a tuas orações consegues contabilizar?” “Tens o dom de falar em línguas?” “Fizeste alguma experiência extraordinária com Deus?” É certo que essas perguntas não caem de uma única vez sobre o pobre cristão, mas se espera que, no mínimo, consiga enumerar um milagre que tenha experimentado. Cuidado, porém! Não estamos afirmando que um cristão não experimenta nada. Mas é errado querer que determinadas experiências tenham sido feitas para que se comprove o ser cristão de um cristão. O ser cristão do cristão tem qualidade escatológica, ainda não pode ser visto. Pior: quem exigir de um cristão que comprove cabalmente seu Estar--no-Espírito transforma o evangelho em Lei. Com isso se põe fim à “gloriosa liberdade dos filhos de Deus”.

Como cristãos devemos ter a liberdade de confessar nossa “fraqueza” (v. 26). Devemos ter a liberdade de confessar a fraqueza de nossa “carne”. O apóstolo Paulo não afirma que a fraqueza é substituída por fortaleza, mas que o Senhor diz que o seu “poder é mais forte quando você está fraco” (2Co 12.9). Em Rm 8, é anunciado que o Espírito nos socorre em nossa fraqueza. E a maneira do Espírito atuar em nós não é tal que nos ative para que doravante não necessitemos mais dele e que por nossa força tudo possamos fazer. Ele nos representa. Ele faz o que não somos capazes de fazer. Quando a comunidade ora “no Espírito” (1Co 14.15; Ef 6.18), ela se confia à intercessão do Espírito que fala por ela. Ela não se baseia em sua religiosidade, seja ela rica ou muito pobre. Não negamos que o Espírito produza espiritualidade, mas não é ela que importa. Os gemidos, gritos que, por vezes, ocorrem na oração da comunidade, não são importantes. Importante é o “gemido” inaudível do Espírito, que “não se expressa por palavras” (sem glossolalia) enquanto intercede por nós (Rm 8.26). Esse versículo quer ser incentivo à sobriedade para os que pensam saber orar bem demais e consolo para os que ao orar são como os “pobres de espírito” do sermão do monte. O cristão virtuoso não sabe o que deve orar “de acordo com a vontade de Deus” (Rm 8. 27). Isso somente o Espírito consegue. Mas devemos ter a certeza: o Espírito sabe orar de acordo com a vontade de Deus e intercede por nós. Por isso não devemos nos envergonhar quando não sabemos orar, quando nos dá um “branco”, quando em tempos de dificuldade extrema não nos vem palavra por sobre os lábios, quando em tempos “normais” mal conseguimos balbuciar. O Espírito de Deus intercede por nós! Não sabemos o que devemos orar. O que Deus significa para nós, o que Deus preparou para nós, nossa esperada “esperança” não pode ser formulada com palavras humanas, pois ele “pode fazer muito mais do que nós pedimos ou até pensamos” (Ef 3.20). Podemos pedir a ele, mas ele preparou algo muito melhor do que a ele estamos pedindo. Somente ele sabe o que realmente necessitamos. É por isso que o Espírito tira de nossas bocas nossas preces e intercede por nós diante do Pai. Assim, nossa intenção ao orar transforma-se em ato intratrinitário. Nosso gemido transforma-se em gemido de Deus diante de Deus. Aquele que “vê o que está dentro do coração” fala por nós. Pentecostes diz que estamos muito bem representados diante de Deus; melhor impossível.

4. Imagem

Já falamos dela acima: a moeda, sua cara e sua coroa. Tome-se moeda, que seja mirada. Peça-se aos membros que vasculhem suas bolsas e carteiras em busca de moeda; quando a encontrarem, que a mirem. Perguntemos: quem vê cara já vê coroa? Coloquemos as moedas de lado. Leiamos o texto de Romanos 8 e perguntemos como o Espírito ajuda a nós que só vemos cara a ter certeza da coroa. É Pentecostes.

5. Subsídios litúrgicos

Oração de coleta:

Senhor, Santo Deus e Pai, nós te rogamos: ilumina nosso coração e nossa mente por meio de teu Santo Espírito. Deixa-nos compreender. Ilumina-nos com teu Espírito para que ele nos transforme, nos ensine e nos console. Ouve-nos por amor a Jesus Cristo que contigo e com o Espírito Santo renova a criação e a nossa vida. Todo-poderoso Deus, tu és princípio e fim de tudo, de eternidade a eternidade. Amém.

Oração da igreja:

Deus, nós te louvamos por causa de teu amor, que nos revelaste em Jesus Cristo. Tocas nosso coração e nos renovas pelo poder de teu Santo Espírito.

Espírito Santo, outrora pairavas sobre as águas e chamaste à vida o que estava oculto nas trevas. No que antes era deserto e vazio puseste vida. Das trevas fizeste luz.

Senhor, concede-nos teu Espírito. Inflama nossos frios corações, põe-nos em movimento, dá-nos força, amor e sobriedade.

Espírito Santo, tiraste da noite o dia, do caos a ordem, da morte a vida. Chamas tua comunidade nesta vida e concedes-lhe dons que sirvam de testemunho às pessoas, de ensinamento e de amor ao próximo.

Senhor, pedimos por teu Espírito. É Espírito da paz que vence os maus pensamentos e planos de morte que habitam no ser humano. É Espírito que se opõe e resiste a tudo o que quer destruir vida. Ele nos ensina tua vontade.

Senhor, Espírito Santo, tu curas onde nossas palavras provocam ferida e dor e saras nosso coração dolorido. Tu levas a criação à plenitude e chamas o transitório à nova vida. Vem sobre nós e nos transforma.

Senhor, Espírito Santo, confiamos em ti, sabemos que vais conosco em nossos caminhos e que contigo caminhamos em direção ao dia em que teu Filho, Jesus Cristo, há de voltar. Amém.

Bibliografia

KÄSEMANN, Ernst. An die Römer. Tübingen: Mohr, 1973.
SCHLATTER, Adolf. Gottes Gerechtigkeit. Ein Kommentar zum Römerbrief. 3. ed. Stuttgart: Calwer Verlag, 1959.


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Autor(a): Martin Dreher
Âmbito: IECLB
Área: Celebração / Nível: Celebração - Ano Eclesiástico / Subnível: Celebração - Ano Eclesiástico - Ciclo da Páscoa
Natureza do Domingo: Pentecostes
Perfil do Domingo: Domingo de Pentecostes
Testamento: Antigo / Livro: Ezequiel / Capitulo: 37 / Versículo Inicial: 1 / Versículo Final: 14
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 2014 / Volume: 39
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 34414

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