Vida Celebrativa - Ano Eclesiástico


ID: 2654

Romanos 7.15-25a

Auxílio Homilético

05/07/2020

 

Prédica: Romanos 7.15-25a
Leituras: Zacarias 9.9-12 e Mateus 11.16-19,25-30
Autoria: Paulo Roberto Garcia
Data Litúrgica: 5° Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 05/07/2020
Proclamar Libertação - Volume: XLIV

A fragilidade que derruba muros

1. Introdução

A fé deveria promover a vida, a comunhão e a esperança. Porém em nosso mundo assistimos a religiões promovendo divisões, conflitos e guerras. No texto de Zacarias 9, encontramos o convite à alegria porque o Rei virá como um rei justo, humilde e salvador. Um rei que destruirá os instrumentos de guerra e de morte para promover a paz. Esse é o papel da fé: anunciar a esperança. Quando a prática da fé constrói muros, segrega pessoas e pratica violências, reproduzem-se as condições que levaram as palavras de Jesus a serem relembradas pelo Evangelho de Mateus como uma palavra de juízo: Mas a que compararei esta geração? É semelhante a meninos que, sentados nas praças, gritam aos companheiros: “Nós tocamos flauta, mas vocês não dançaram; entoamos lamentações, mas vocês não prantearam” (Mt 11.16-17). As pessoas de fé passam a ser como crianças mal--humoradas que não querem brincar de nada! Porém o texto de Mateus conclui essa palavra de juízo afirmando que Deus revela aos pequeninos a sua sabedoria (Mt 11.25-30), ou seja, não há espaço para a violência e a arrogância.

Se o papel da fé é o de gerar esperança e vida e não o de construir muros e praticar violências entre os seres humanos, por que, então a arrogância de se julgar “melhor” do que os outros e de segregar? Nossa perícope – Romanos 7.15-25a – contesta essa arrogância humana e apresenta uma visão diferenciada do ser humano, em que a partir da culpa encontramos a possibilidade da restauração pela graça. Nela, somos desafiados e desafiadas a assumir nossos limites, reconhecer nossa falibilidade e a dependência de Deus. Ao fazermos isso, nos tornamos aptos e aptas a anunciar a esperança que derruba muros e promove a vida. Isso é o que abordaremos a seguir.

2. Exegese

Nosso texto é um divisor de águas na Carta aos Romanos. Ele encerra uma primeira sessão, e a encerra de uma forma pessimista. Esse pessimismo faz parte da estratégia literária da carta. Por isso precisamos ver, em primeiro lugar, a estrutura da carta e a localização do texto nessa estrutura.

A organização da carta

A carta de Paulo aos romanos está organizada em dois grandes blocos separados por um capítulo que exerce um papel de dobradiça no texto. O primeiro bloco é formado pelos capítulos 1 a 7. Nossa perícope encerra esse bloco. O tema é a vida sob a lei. Paulo inicia com a discussão sobre a lei natural dos gentios, passa à lei judaica e conclui que nem o gentio nem o judeu (mesmo tendo uma lei boa dada por Deus) conseguem seguir a lei. O resultado é a constatação do fracasso. Esse é o tema de nossa perícope.

O segundo bloco, constituído pelos capítulos de 9 a 15, tem como tema a vida sob a graça. Esse bloco é marcado por uma vida de compromisso com o outro, com os inimigos (incluindo o imperador) e com os fracos da comunidade. O culto racional é uma vida de compromisso. A conclusão desse bloco é a graça que atinge o indivíduo, que se espalha por meio da vida de compromisso com toda a criação.

O capítulo 8 é a dobradiça que permite a mudança do primeiro para o segundo bloco. A passagem da vida sob a lei judaica para a vida sob a graça é definida a partir da ênfase do capítulo: o Espírito. A palavra Espírito ocorre 34 vezes em Romanos. Dessas, 20 vezes só no capítulo 8! Como no grego, a língua original do Novo Testamento, a repetição é uma forma de enfatizar algo. A repetição exaustiva da palavra Espírito mostra que o que permite a passagem da vida sob a Lei para a vida sob a graça é o Espírito. Ou seja, não está na capacidade humana fazer essa transição. Por isso nossa perícope é divisora de águas. Ela apresenta um clímax na discussão.

A falência dos esforços humanos – Romanos 7.15-25a

Para abordar o texto, precisamos entender o objetivo de uma conclusão desse bloco tão terrível, quase deprimente: Miserável homem que sou! Quem me livrará do corpo desta morte? (Rm 7.15). Por que Paulo organiza o texto nessa construção dramática? Aqui temos um ponto importante dessa perícope. Ela aborda um tema fundamental para o pensamento paulino: o efeito de uma religiosidade baseada na Lei e o relacionamento entre os seres humanos. Isso é o que veremos a seguir.

1. A Lei e a arrogância

A Lei é entendida por Paulo como algo positivo. Ela aponta para a vontade de Deus. Porém a experiência do povo de Deus foi marcada por uma divisão entre os que não cumpriam a Lei e os que se entendiam cumpridores da Lei. Deste modo, esses que se consideravam cumpridores se arvoravam da primazia na relação com Deus. A Lei, que deveria ter um papel de orientação para a vida, converteu-se em um elemento para promover a discriminação e, inclusive, a perseguição. A arrogância dos que se apresentavam como cumpridores da Lei (os puros) se transformava em justificativa para a separação dos que não seguiam ou não cumpriam a Lei (impuros). Mais que isso, justificava o sofrimento dos pobres, enfermos, mulheres, crianças e estrangeiros como resultado da infidelidade deles.

Esse sistema cruel e discriminatório é enfrentado por Paulo nessa primeira parte da Carta aos Romanos.

2. A Lei e a falência dos esforços humanos

Paulo irá definir nesse bloco que ninguém consegue seguir a Lei. De um lado, encontramos os gentios, que, mesmo tendo sua lei natural, não conseguem segui-la. De outro lado, temos os judeus, que mesmo recebendo a Lei de Deus e mesmo sendo ela boa, não a conseguiram seguir: Porque nem mesmo compreendo o meu próprio modo de agir, pois não faço o que prefiro, e sim o que detesto. Ora, se faço o que não quero, concordo com a lei, que é boa. Neste caso, quem faz isso já não sou eu, mas o pecado que habita em mim (Rm 7.15-17 NAA).

A Lei, sendo boa, transforma-se de orientadora em acusadora e evidencia o pecado que habita no ser humano. Aqui entra um ponto fundamental da argumentação de Paulo nessa carta. A impossibilidade humana de cumprir a Lei torna, de um lado, todos culpados devido ao não cumprimento. Porém, ao mesmo tempo, torna todos iguais na falência e todos igualmente carentes da graça de Deus. Ou seja, Paulo parte do argumento da falência para criar a igualdade. Essa concepção se refletirá, por exemplo, na fórmula batismal encontrada em Gálatas 3.26-28: Pois todos vocês são filhos de Deus mediante a fé em Cristo Jesus; porque todos vocês que foram batizados em Cristo de Cristo se revestiram. Assim sendo, não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher; porque todos vocês são um em Cristo Jesus. Essa fórmula mostra que, no batismo, todos, por serem revestidos de Cristo, são iguais. Isso porque antes do batismo todos eram iguais na culpa. Ou seja, na necessidade da graça de Deus e na restauração em Cristo reside a igualdade dos seres humanos.

Por isso, frente à pergunta Quem me livrará do corpo desta morte? (Rm 7.25), a resposta de Paulo é uma ação de graças: Graças a Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor! (Rm 7.25). Em Cristo somos resgatados da “lei do pecado” e conduzidos para a restauração de vida. Esse será o tema do bloco compreendido nos capítulos 9 a 15 da carta.

Ou seja, nossa perícope encerra uma grande discussão que aponta que o ser humano não tem condições de por si só cumprir nem a lei judaica nem a lei natural ou a lei dos gentios. Por isso ninguém é melhor que ninguém, muito pelo contrário, todos são igualmente culpados e igualmente necessitados da graça de Deus. Essa necessidade será suprida por Jesus Cristo.

3. Meditação

Nosso mundo é um mundo da competição. Uma competição que adentra todas as relações humanas e ganha contornos de violência. Uma violência que alcança o absurdo de ser praticada em nome de Deus. Aqueles e aquelas que não apresentam os atributos ou os comportamentos exigidos por um grupo são considerados inferiores, impuros, rebeldes, e outros adjetivos na tentativa de justificar o exercício da violência contra eles. A violência é exercida em forma de discursos, gestos e também fisicamente. É um tempo de medo.

Mesmo entre aqueles e aquelas que pertencem a um mesmo grupo, uma mesma linha, um mesmo pensamento, a violência se estabelece na forma de competição. Não basta estar em um grupo considerado “melhor”, há que ser o melhor dentro desse grupo.

Esse processo de construção de muros e de construção de instrumentos de violência acontece em todos os segmentos da sociedade: está no âmbito do trabalho, das relações sociais e políticas, e está também no âmbito religioso, entre lideranças, entre igrejas, entre grupos de uma mesma igreja.

Essa é uma visão muito ruim de nosso mundo. Diante dela o texto paulino nos convida a afirmar: Miserável homem que sou! Quem me livrará do corpo desta morte? (v. 24). A constatação paulina é que essa crise (tanto do mundo do texto como do nosso mundo) é derivada da arrogância humana. Nós nos julgamos capazes de fazer o bem, nos tornando construtores do caminho que nos aproxima de Deus e de sua pureza. Ao constatar o fracasso de qualquer tentativa, somos convidados e convidadas a reconhecer que somos todos “miseravelmente” iguais e, consequentemente, carentes da graça de Deus. Nessa igualdade no fracasso, os muros construídos se tornam marcos de nossa arrogância, que é falsa, pois se baseia em uma visão equivocada que temos de nós mesmos. Em Cristo, tudo deve mudar. O reconhecimento da necessidade da graça deve produzir o fim dos muros. Em uma leitura da fórmula batismal de Gálatas 3.26-28, temos em Cristo o fim, tanto dos muros étnicos (nem judeu nem grego) como dos muros de gênero (nem mulher nem homem) e dos muros sociais (nem livre nem escravo). Toda a vida deve ser transformada.

A leitura negativa da existência humana transforma-se na possibilidade de, despidos de nossa arrogância, em Cristo vivermos a dimensão de um mundo sem muros, sem divisões, com a esperança que permite partilhar o que o profeta Zacarias anunciou: Alegre-se muito, ó filha de Sião! Exulte, ó filha de Jerusalém! Eis que o seu rei vem até você, justo e salvador, humilde, montado em jumento, num jumentinho, cria de jumenta. Destruirei os carros de guerra de Efraim e os cavalos de Jerusalém; os arcos de guerra serão destruídos. Ele anunciará paz às nações; o seu domínio se estenderá de mar a mar e desde o Eufrates até os confins da terra (Zc 9.9-12 NAA).

4. Imagens para a prédica

O mundo em que vivemos é um mundo marcado pela arrogância e pela violência, que levam à construção de muros que separam aqueles e aquelas que se julgam superiores daqueles e daquelas que eles consideram inferiores. Podemos exemplificar essa realidade usando uma citação de Zygmunt Bauman encontrada em seu livro Confiança e medo na cidade:

Como bem sabemos, as cercas têm dois lados. Dividem um espaço antes uniforme
em “dentro” e “fora”, mas o que é “dentro” para quem está de um lado da cerca é
“fora” para quem está do outro. Os moradores de condomínio mantêm-se fora da
desconcertante, perturbadora e vagamente ameaçadora – por ser turbulenta e confusa
– vida urbana, para se colocarem “dentro” de um oásis de tranquilidade e segurança.
Contudo, justamente por isso, mantêm todos os demais fora dos lugares
decentes e seguros, e estão absolutamente decididos a conservar e defender com
unhas e dentes esse padrão; tratam de manter os outros nas mesmas ruas desoladas
que pretendem deixar do lado de fora, sem ligar para o preço que isso tem. A cerca
separa o “gueto voluntário” dos arrogantes dos muitos condenados a nada ter. Para
aqueles que vivem num gueto voluntário, os outros guetos são espaços “nos quais
não entrarão jamais”. Para aqueles que estão nos guetos “involuntários”, a área a
que estão confinados (excluídos de qualquer outro lugar) é um espaço “do qual não
lhes é permitido sair” (BAUMAN, 2009, p. 23-24).

Essa imagem da criação de cercas que separam o gueto voluntário dos arrogantes é uma imagem forte do que encontramos em muitos espaços de nossas cidades. Isso pode ser associado a exemplos locais.

5. Subsídios litúrgicos

Para o momento de confissão, sugerimos a poesia de Cora Coralina. Cora Coralina representa o potencial de igualdade que há entre os seres humanos. Poetisa que iniciou sua carreira aos 75 anos de idade, possuidora apenas da 4ª série primária, encantou e encanta os leitores e as leitoras de todos os tempos. Na poesia abaixo, encontramos a possibilidade de confessar a necessidade de aceitar nossas fragilidades, assumir uma postura humilde e assim, reencantar nosso mundo.

Humildade
Senhor, fazei com que eu aceite
minha pobreza tal como sempre foi.
Que não sinta o que não tenho.
Não lamente o que podia ter
e se perdeu por caminhos errados
e nunca mais voltou.
Dai, Senhor, que minha humildade
seja como a chuva desejada
caindo mansa,
longa noite escura
numa terra sedenta
e num telhado velho.
Que eu possa agradecer a Vós,
minha cama estreita,
minhas coisinhas pobres,
minha casa de chão,
pedras e tábuas remontadas.E ter sempre um feixe de lenha
debaixo do meu fogão de taipa,
e acender, eu mesma,
o fogo alegre da minha casa
na manhã de um novo dia que começa.

Bibliografia

BAUMAN, Zygmunt. Confiança e medo na cidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.
SAMPLEY, J. Paul. Paulo no Mundo Greco-Romano. Um Compêndio. São Paulo: Paulus, 2008.


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Autor(a): Paulo Roberto Garcia
Âmbito: IECLB
Área: Celebração / Nível: Celebração - Ano Eclesiástico / Subnível: Celebração - Ano Eclesiástico - Ciclo do Tempo Comum
Área: Governança / Nível: Governança - Rede de Recursos / Subnível: Governança-Rede de Recursos-Auxílios Homiléticos-Proclamar Libertação
Natureza do Domingo: Pentecostes
Perfil do Domingo: 5º Domingo após Pentecostes
Testamento: Novo / Livro: Romanos / Capitulo: 7 / Versículo Inicial: 15 / Versículo Final: 25
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 2019 / Volume: 44
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 54667

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