Vida Celebrativa - Ano Eclesiástico


ID: 2654

Quaresma e discernimento

Jeremias 31. 31-34; Jo 12.20-33

28/03/2012

O sonho de uma maturidade moral é de longa data. O texto de Jeremias teria sido escrito num período que alguns chamam de “era axial”. Quer dizer, mais o menos na mesma época, séculos 6 a 4 a.C., em diferentes partes do mundo, estava acontecendo algo similar. Assim, na Índia surgia Buda ensinando que se inicia o caminho da maturidade quando a pessoa abandonar o apego às ilusões. Na antiga Grécia, os filósofos defendiam que a maturidade passava pelo desenvolvimento do raciocínio filosófico (por isso Platão, mais tarde, colocaria a ideia de uma república governada pelos sábios). E, na palestina, os israelitas, por meio dos profetas, criaram uma nova compreensão do culto. Portanto, Oséias (780 e 725 a.C.) escrevia: “O meu povo está sendo destruído, porque lhe falta o conhecimento”. (Os 4.6). E, alguns anos depois, durante o reinado do Rei Josias, entre os anos de 627 a 609 a.C., o profeta Jeremias dizia: “Porei a minha lei no seu interior, e a escreverei no seu coração;.. E não ensinarão mais cada um a seu próximo, nem cada um a seu irmão, dizendo: Conhecei ao Senhor; porque todos me conhecerão, desde o menor deles até o maior,..” (Jr 31.33b-34a).
O interessante é que todos eles, ao seu modo, propõem caminhos para um mundo ideal. Um mundo onde a integridade tenha sua fonte na própria pessoa e não nos controles sociais.

Mas, este não é um tema do passado. Ele volta constantemente. Assim, o filme Kingdom of Heaven “Reino dos Céus” de Ridley Scott, colocado em cartaz no Brasil como nome de Cruzada, nos propõe que a paz, a tolerância, e a convivência entre os diferentes povos são possíveis desde que o mundo seja reinado pela consciência. Deste modo, o reino dos céus refere-se à boa consciência, da qual que surge a santidade manifesta pelas ações corretas, a coragem em favor dos débeis e a bondade.

Entretanto, o sonho de um mundo melhor a partir da maturidade moral não parece ser algo fácil de alcançar. A esse respeito o apóstolo Paulo escreve:
“Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, pensava como menino; mas, quando cheguei a ser homem, desisti das coisas próprias de menino. Porque, agora, vemos como por espelho, obscuramente: então veremos face a face. Agora conheço em parte; então, conhecerei como também sou conhecido.” (1co 13.12).

A própria maturidade moral é um árduo processo que envolve a vida toda. As teorias mais conhecidas e influentes sobre o crescimento moral da pessoa são as dos psicólogos Piaget (anomia, heteronomia, autonomia) e Kohlberg (aceitação das regras, questionamento, criticidade e aceitação ou rejeição). Em ambos, o amadurecimento moral é um processo cognitivo racional, no qual o não-racional, assim como o afetivo, é considerado imaturo. Trata-se de um processo linear e racional, no qual a abstração é tida como superior. Sua ênfase reside na autonomia, e não nas relações da pessoa. Mesmo assim, Piaget observa que a autonomia se desenvolve em contextos onde há relações democráticas. E Paulo Freire diria: internalizamos o contexto no qual vivemos. Por isso, todo oprimido carrega dentro de si o opressor. Entretanto, pesquisas mais recente tem apontado para as dimensões afetivas e relacionais como chaves do crescimento moral. Assim, as qualidades da compaixão, da preocupação e o cuidado, experimentados na infância e na fase adulta, são o elemento crítico na formação moral. Como diz o colombiano Luiz Restrepo: “O que nos caracteriza e distingue da inteligência artificial é a capacidade de nos emocionar, de reconstruir o mundo e o conhecimento a partir dos laços afetivos que nos impactam”. (El derecho a la ternura).
Então, a maturidade psíquica, social e pessoal constitui uma condição necessária para a maturidade moral. E, nela as expressões afetivas que afirmam a pessoa e seus semelhantes são chaves para o processo do amadurecimento moral. Mas tudo isso, não como etapas sucessivas ou cronológicas conclusivas. O processo não termina em determinado momento. Pelo contrário, o discernimento moral é um processo vitalício.

É por isso que no batismo somos inseridos na comunidade de Jesus Cristo. Para nutrir a nossa fé em todas as suas dimensões e em todas as fases da vida. Por isso, como diz alguém: na fé não há formatura. Como dizia o apóstolo Paulo: começamos conhecendo em parte; continuamos caminhando até poder, algum dia, ver tudo tal como é na realidade.

Iniciamos apontando que o sonho de uma maturidade moral é de longa data. Também anotamos que essa maturidade não se reduz a uma capacidade intelectual, mas que ela envolve, de maneira significativa, a dimensão relacional. É exatamente essa a orientação que encontramos nos ensinamentos de Jesus. [E Jesus lhe perguntou] “Qual destes três te parece ter sido o próximo do homem que caiu nas mãos dos salteadores? Respondeu-lhe o intérprete da Lei: O que usou de misericórdia para com ele. Então, lhe disse: Vai e procede tu de igual modo”. (Lc 10. 36-37).

As palavras anteriores nos advertem que somente quando o interior, a consciência, a mente, o coração, ou que quer que seja aquilo que comanda a vontade humana, esteja governado pela lei do amor como misericórdia, somente então ninguém precisará ser ensinado!

Enquanto isso, procuramos sob a orientação da palavra pregada e visível, o auxílio de Deus. Buscamos nas nossas diversas interações (comunidade, família, trabalho, bairro, prédio, etc.) criar “jeitos” de vida, pessoais e comunitários, que conduzam, pela prática, a essa maturidade tão necessária e sonhada.

Que o Santo Espírito de Deus nos ajude, nesta quaresma, a modificar os nossos passos para andar pelo caminho da misericórdia e assim trilhar o discernimento do bem e do mal. Amém.
 


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