Vida Celebrativa - Ano Eclesiástico


ID: 2654

Memória | Salmo 103.1-8

6º Domingo após Pentecostes | Ação de Graças

04/07/2021

 

Amados irmãos, amadas irmãs,

sem memória, não há ação de graças. A ação de graças a Deus só é possível quando podemos lembrar os maravilhosos feitos do Senhor na nossa vida pessoal e comunitária. E não se trata de uma memória pessoal apenas, mas também da memória daquilo que Deus realizou no passado, antes mesmo de nós nascermos. Podemos relembrar com gratidão o quanto Deus é amoroso e cuidadoso para com o seu povo.

Atualmente, vivemos uma época que desvaloriza a memória. Se antes era preciso decorar os números de telefone para se entrar em contato com alguém, hoje basta recorrer aos nomes na nossa lista telefônica. Importante é que não esqueçamos os nomes; da mesma forma, as redes sociais também intensificam a perda da memória. No início do Orkut e depois do Facebook, o que se postava, permanecia em seu lugar e o post poderia ser reencontrado quando se quisesse. Então, surgiram os stories que, embora tenham esse nome, são posts que após 24 horas simplesmente desaparecem como se nunca tivessem existido.

Zygmunt Bauman, o famoso e já falecido sociólogo polonês, diz sobre os novos tempos que vivemos: “neste mundo, tudo pode acontecer e tudo pode ser feito, mas nada pode ser feito uma vez por todas – e o que quer que aconteça, logo chega sem se anunciar e vai-se embora sem aviso”1. Ele diz também: “Desse modo, há pouca coisa, no mundo, que se possa considerar sólida e digna de confiança, nada que lembre uma vigorosa tela em que se pudesse tecer o itinerário da vida de uma pessoa”2. Com isso, Bauman quer dizer que vivemos tempos líquidos: nada é feito para ficar. Enquanto o mundo sólido era resistente e durável, o mundo líquido e as relações líquidas mudam completamente a todo o momento. As verdades sólidas e absolutas são substituídas pelas verdades líquidas e individuais que se tornam a bandeira de cada um.

Além das redes sociais, a própria urbanização testemunha a perda de memória. No Culto de Ação de Graças de 2019 preguei sobre isso e gostaria apenas de relembrar um pouco. Antes, o pão tinha história. Enquanto a mãe preparava a massa do pão, o filho ou esposo ia cortar a lenha e a filha ia acender o fogo no forno de tijolos. Fazer o pão era um ato comunitário. Vivia-se comunidade no ato de fazer um pão ou outras atividades da casa. Além disso, aquele pão possuía história. Por isso, não era desperdiçado, pois se sabia de onde ele vinha e o trabalho necessário para tê-lo. Hoje, os pães são sem memória. Compra-se na padaria ou no mercado e desperdiça-se de maneira tão rápida quanto como foi adquirido. É um pão sem história. Quando isso acontece, a vida torna-se ingrata. Sem a memória não há como haver ação de graças.

Isso não significa que devemos deixar de postar stories em nossas redes sociais e que devemos parar de comprar pães na padaria. O convite é que pensemos sobre o como isso afeta a nossa gratidão. Na alimentação, o grande problema hoje é o desperdício que é uma das piores formas de ingratidão. Aqueles que compram demais ao ponto de deixar a comida estragar e ser jogada fora vive uma das piores formas de ingratidão a Deus. A verdadeira ação de graças nos leva a uma administração consciente dos nossos bens para que o desperdício seja evitado.

O desperdício é a morte da memória e, por consequência, a morte da própria fé. Talvez, nos perguntemos: “por que cada vez menos pessoas acreditem em Deus?”. Para responder a essa pergunta, basta olharmos como vivemos em sociedade. Os agricultores dependem do transcendente para colherem o que plantaram. Necessitam do tempo certo de sol, chuva, geada, assim por diante. Deus é pressuposto na vida agrícola. No meio urbano, tudo é comprado e jogado fora de maneira fácil. Assim, Deus se torna desnecessário.

Nietzsche, um teólogo alemão, diz: “Deus só é feito pela história”3. Sem a noção da memória e da história – seja nas coisas pequenas ou maiores – não há a noção de Deus. O ser humano passa a olhar apenas para o próprio umbigo e a esquecer que tudo o que tem é dádiva de Deus. Ao mesmo tempo, passa a se achar o dono da Criação, destruindo-a e consumindo-a desrespeitosamente, ferindo a dignidade da própria Criação de Deus. Sem Deus, o ser humano se torna deus e senhor sobre a Criação.

Por isso, a memória é mais que importante. Não existe fé cristã sem memória. A fé cristã foi edificada sobre a memória. Nós falamos disso no último culto que tinha como tema “Nova Geração”. Desde os primeiros anos da igreja cristã os irmãos e irmãs passavam de geração em geração aquilo que era essencial na fé. Também a Igreja Cristã – preocupada com a preservação da doutrina correta – criou credos que são resumos da fé que podem ser memorizados e passados de geração em geração, como o Credo Apostólico, por exemplo. Não há fé cristã sem a memória e sem a história. A morte da memória e da história significa a própria morte da fé cristã.

É por isso que o salmista louva a Deus. Sua alma bendiz ao Senhor. Bendizer significa “falar bem”. Davi – que é o autor deste salmo – se alegra em falar bem de Deus ao recordar aquilo que o Senhor tem realizado. E o mais importante: “Bendiga, minha alma, o Senhor, e não se esqueça de nem um só de seus benefícios”. (Salmo 103.2). O próprio salmista lembra a si mesmo das maravilhosas obras de Deus. Ele não deve esquecer aquilo que Deus realizou. Pelo contrário, os feitos de Deus devem ser guardados na memória para que, quando lembrados, levem ao louvor a Deus. Assim como acontece com a gratidão, sem memória não há louvor. É preciso lembrar para agradecer e louvar.

Davi, inclusive, lembra alguns motivos de gratidão e louvor:

1. o perdão: “Ele é quem perdoa todas as suas iniquidades;” (Salmo 103.3a). A graça de Deus é motivo de gratidão e louvor. Não somos e não merecemos nada de Deus. Podemos até nos acharmos pessoas boas, mas não o somos. Nascemos debaixo do sinal do pecado. Mesmo assim, Deus escolhe trocar o castigo pelo perdão e pela misericórdia. Quem de nós poderia existir diante de um Deus castigador e juiz? Nenhum de nós! Só podemos existir diante do Deus amoroso, gracioso e misericordiosos. Por isso, o perdão é motivo de ação de graças: é a possibilidade de irmos diante de Deus sem medo e com alegria;

2. a cura: “quem cura todas as suas enfermidades;” (Salmo 103.3b). O Senhor realiza curas. Seu poder não tem limites. Porém, Deus continua sendo Deus quando a cura não acontece. Deus pode curar, mas não é o ser humano quem determina a cura: ela é da livre vontade de Deus, pois, diferentemente do ser humano, só Deus possui livre-arbítrio;

3. a redenção: “quem da cova redime a sua vida e coroa você de graça e misericórdia” (Salmo 103.4). Aqui Davi não está nos falando da ressurreição (embora essa aplicação seja possível). Davi está lembrando que, como seres humanos, não valemos nada. A nossa situação por causa do pecado é uma miséria total como se vivêssemos em uma cova. Porém, é do lamaçal do pecado que Deus redime a nossa vida. Ele nos tira do lodo para que vivamos em abundância. Davi ainda não sabia, mas Deus faria isso através da morte do seu único Filho na cruz. É ali que fomos retirados do poço da miséria para vivermos com dignidade diante de Deus. Por isso, somos coroados de graça e misericórdia. Deus não nos enxerga mais como pecadores, mas como salvos;

4. bens: “É ele quem enche de bens a sua vida, de modo que a sua mocidade se renova com a da água” (Salmo 103.5). Tudo aquilo que possuímos é dádiva de Deus. Não foi a nossa força que conquistou, mas Deus quem nos deu! Não importa se é muito ou pouco, Deus nos concede tudo o que temos através da dádiva do trabalho. Martinho Lutero nos ensina no Catecismo Menor que “o pão nosso de cada dia” não significa apenas o pão, mas

tudo que se refere ao sustento e às necessidades da vida, como por exemplo: comida, bebida, roupa, calçado, casa, lar, meio de vida, dinheiro e bens, marido e esposa íntegros, filhos íntegros, empregados íntegros e fiéis, bom governo, bom tempo, paz, saúde, disciplina, honra, amigos leais, bons vizinhos e coisas semelhantes.4

Você já tinha pensado em tudo isso como “pão”? É tudo isso que pedimos quando oramos a oração do Pai-nosso. E, conforme Lutero, “Deus dá o pão de cada dia, também sem o nosso pedido, a todas as pessoas, inclusive às pessoas más” . Deus não faz as distinções que nós fazemos. Ele quer bem a todas as pessoas e lhes concede o sustento para que possam reconhecer o agir de Deus e amá-lo.

Por último, Davi lembra mais um pouco do agir de Deus no passado: em como Deus julgou os opressores (v. 6) que eram os faraós do Egito que escravizavam o povo de Israel e os libertou sob a liderança de Moisés (v. 7) para que caminhassem rumo à terra prometida.

Além disso, “O Senhor é compassivo e bondoso; tardio em irar-se e rico em bondade.” (Salmo 103.8). Esta é uma belíssima confissão de fé e gratidão a Deus. Ação de graças não significa apenas agradecer por aquilo que recebemos, mas é também louvor a Deus por quem ele é! O nosso Criador, o nosso Salvador, o nosso Consolador. Neste dia, não agradeça apenas por aquilo que recebeu, mas exalte ao Senhor por ele ser o Senhor bondoso e compassivo, como disse Davi. Esse louvor deve fazer parte do nosso dia a dia. Que bom que Deus é quem é. Que bom que Deus pode ser Deus para que sejamos humanos. Precisamos louvar a Deus por quem ele é e não apenas por aquilo que ele faz.

Amados irmãos, amadas irmãs,

ação de graças. Neste dia, vamos trazer à memória tudo o que o Senhor é e o que ele tem feito em nossa vida, família, comunidade e sociedade. A memória dos feitos de Deus precisa ser preservada. Sem memória, a fé cristã está morta. Que lembranças podemos ter deste um ano que nos levam a agradecermos a Deus? Certamente, tivemos altos e baixos. Não podemos esquecer daqueles e daquelas que perdemos neste período, seja por covid-19 ou outras doenças. Mesmo assim, é preciso agradecer a Deus “pelas rosas no caminho e os espinhos que elas têm; pela escuridão da noite, pela estrela que brilhou, pela prece respondida e a esperança que falhou.” (Livro de Canto da IECLB, nº 479). “Em tudo dai graças”, diz Paulo em 1 Tessalonicenses 5.18.

Como Comunidade Vida Nova, também temos muito o que lembrar e agradecer. Quando a Pandemia iniciou e as nossas atividades pararam em Março/2020, não sabíamos o que Deus nos reservaria para o futuro. Porém, até aqui temos sido mantidos e a missão de Deus – que é a nossa paixão – tem continuado. Por isso, agradecemos a Deus por manter esse trabalho e também aos membros pela fidelidade na contribuição, nas ofertas, bem como pela paciência sobre a volta dos cultos presenciais que em breve retornarão.
Através da memória do que Deus fez neste um ano em nossa comunidade, podemos ter certeza de que os planos de Deus para ela ainda não terminaram. Deus quer realizar muitas coisas neste lugar. Agradecemos ao Senhor e confiamos que o futuro está em suas mãos. A memória do passado e a esperança do futuro nos levam ao agradecimento hoje.

Amém.


6º DOMINGO APÓS PENTECOSTES | AÇÃO DE GRAÇAS COMUNIDADE VIDA NOVA | VERMELHO | TEMPO COMUM | ANO B

04 de Julho de 2021


P. William Felipe Zacarias

 

1 BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 36.

 

2 BAUMAN, 1998. p. 36.

 

3 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Considerações Extemporâneas – 1874. In: NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Os Pensadores. Vol. 41. Obras Incompletas. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 58.

 

4 LUTERO, Martim. Catecismo Menor. 16. ed. São Leopoldo: Sinodal, 2011. p. 14.


Autor(a): P. William Felipe Zacarias
Âmbito: IECLB / Sinodo: Rio dos Sinos / Paróquia: Sapiranga - Ferrabraz
Área: Confessionalidade / Nível: Confessionalidade - Prédicas e Meditações
Área: Celebração / Nível: Celebração - Ano Eclesiástico / Subnível: Celebração - Ano Eclesiástico - Ação de Graças - Festa da Colheita
Testamento: Antigo / Livro: Salmos / Capitulo: 103 / Versículo Inicial: 1 / Versículo Final: 8
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Prédica
ID: 63562
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