Prédica: Mateus 5.1-12
Leituras: Mateus 6.1-8 e 1 Coríntios 1.18-31
Autoria: Ricardo Brosowski
Data Litúrgica: 4° Domingo após Epifania
Data da Pregação: 29/01/2023
Proclamar Libertação - Volume: XLVII
Um paradoxo
1. Introdução
O texto das bem-aventuranças é um dos mais conhecidos da Bíblia. Em Mateus 5.1-12, temos a primeira grande pregação de Jesus Cristo. Um anúncio que, ao mesmo tempo que quer transmitir paz e calma para o dia a dia, também gera um saudável desconforto, que deveria impulsionar a sua comunidade a uma prática ética de amor.
Em 1 Coríntios 1.18-31, encontramos a inversão da lógica que acontece na cruz de Cristo. Na cruz, a loucura ganha contornos de poder que gera salvação. Em Miqueias 6.1-8, encontramos um Deus que se preocupa com o seu povo. Um Deus que ensina a justiça e a misericórdia.
Esse conjunto de textos se apresenta como muito atual. As pessoas procuram alguém que as ajude. As pessoas estão sofrendo, ansiosas, depressivas, esquecidas. Jesus Cristo olhou para elas, viu suas necessidades. Esses textos nos convidam a fazer o mesmo. Não por mérito ou como forma de autopromoção, mas como resposta ao amor de Deus, manifesto na cruz. Ser comunidade na atualidade é reconhecer os sinais de sofrimento do mundo contemporâneo, e neste mundo sofrido, anunciar e viver a loucura da cruz, que culmina em justiça e misericórdia. Ou seja, viver as bem-aventuranças, acolhendo-as como consolo, porém, também lutando para que elas sejam praticadas no dia a dia.
No volume 38 de Proclamar Libertação (p. 85-90), a pastora Ana Isa dos Reis reflete de modo detalhado sobre cada uma das bem-aventuranças. Recomendamos a leitura.
2. Exegese
Estamos no início do sermão do monte. Essa fala abre o primeiro grande discurso de Jesus Cristo. Esse discurso compreende os capítulos 5 a 7. Rienecker (1998, p. 25) relata que Jesus se apresenta, nesse discurso, como sendo o novo legislador da sua comunidade. Talvez possamos dizer que, nesse primeiro discurso, Jesus mostra para seus discípulos e para todos que ali estavam qual era a sua vontade para o mundo.
Nesse primeiro bloco de ensinamentos feitos por Jesus, podemos notar um grande teor ético. A ética nada mais é do que uma busca pelo conhecimento daquilo que é, para que, a partir desse ser, seja construído aquilo que deveria ser. Ou seja, a ética é o estudo do comportamento humano a partir de noções como: o bem e o mal; o que é justo e o que é injusto. Ela busca elaborar princípios capazes de orientar a vida humana para ações moralmente corretas. E, ao mesmo tempo, refletir sobre os sistemas morais que estão ou estiveram em vigor na humanidade.
Nosso texto pode ser dividido em duas partes: uma breve introdução (v. 1-2) e a descrição das bem-aventuranças (v. 3-12).
Na introdução, torna-se claro que essas palavras têm um destino duplo. Primeiramente os seus discípulos mais próximos, que se aproximaram dele e receberam instrução. No paralelo de Lucas (Lc 6.20-23), nos é dito: E ele (Jesus) tendo erguido os olhos para os seus discípulos dizia [...]. Contudo, como um segundo destinatário, que não é indireto, temos a multidão que os seguiu. É diante dessas pessoas que Jesus ensina aquilo que espera de seus seguidores.
Para Lutero (2005, p. 25), Jesus mostra a seriedade de seu discurso ao subir o monte, sentar e abrir sua boca. Seu comentário contém um conselho sempre pertinente: “Pois esses são os três pontos, como se diz, que fazem um bom pregador: primeiro, que se apresente, segundo, que abra a boca e diga algo, terceiro, que também saiba quando terminar”.
Temos, nos v. 3-12, oito bem-aventuranças. O termo grego utilizado para descrever o bem-aventurado é makarioi. Lucas utiliza a mesma palavra. Esse termo pode ser traduzido como bem-aventurado, feliz, bendito, um privilegiado que é recebedor do favor divino.
Abbagnano (2018, p. 123-124), em seu dicionário de filosofia, escreve que felicidade e bem-aventurança, apesar de serem sinônimos, podem conter, de modo implícito, uma diferença interessante. A felicidade (eudaimonia) é o estado de satisfação de alguém com a sua situação no mundo. Já a bem-aventurança (makaria) é um ideal de satisfação independente da relação do ser humano com o mundo. Enquanto o conceito de felicidade é mundano e humano, a ideia de bem-aventurança está ligada ao jeito contemplativo e/ou religioso de viver. A bem-aventurança é um estado de satisfação total, completamente independente das vicissitudes mundanas.
Não existe um consenso sobre como se devem interpretar essas bem-aventuranças. Podem elas ser interpretadas como uma caracterização da vida imanente dos discípulos de Jesus? Ou serão promessas escatológicas, que vislumbram uma forma esperançosa de vivenciar o dia a dia de sofrimento nesta vida?
Podemos perceber, no anúncio das bem-aventuranças, duas coisas. A primeira é a contraposição de uma forma de sofrimento existente com um modo misericordioso de tratá-lo. A segunda é um aparente paradoxo moral. Beltrand Russell, em sua filosofia do atomismo lógico, escreve assim: “O objetivo da filosofia é começar com uma coisa tão simples que não parece merecer atenção e terminar com outra tão paradoxal em que ninguém acreditará”. É mais ou menos isso que as bem-aventuranças fazem.
Existem aqueles que são misericordiosos. Esses, muitas vezes, abrem mão de si mesmos, não levando em consideração as suas dores, as suas mágoas, as suas crises. O que normalmente ocorre com pessoas assim? São pisoteadas, chacoteadas. Mas, quase como um projeto contracultural, o texto bíblico nos diz: esses alcançaram misericórdia. Ou seja, também serão perdoados, alguém também abrirá mão da vingança, das próprias dores para que ele possa ser suprido.
Talvez as bem-aventuranças ganhem um status ético justamente por, em sua forma paradoxal de se apresentar, se mostrarem essenciais para não apenas almejar o futuro, mas também para possibilitar a vida e a convivência humana já agora.
Na sua forma de viver e agir, Jesus Cristo concretizará aquilo que ensina em todo o sermão do monte. A tarefa dos discípulos é colocar em prática aquilo que Jesus ensinou e viveu. Rienecker (1998, p. 75) reflete que é a partir desse primeiro grande discurso de Jesus que a sua mensagem deve encontrar eco na vida dos discípulos, ou seja, que deve ser transformada de discurso em ação, que a comunidade de Jesus Cristo se tornará palpável e observável. A comunidade de Jesus Cristo nada mais é (creio que o termo mais correto seja “deveria ser”) do que a continuação da vida de Jesus em todos os lugares e através de todos os tempos, até que ele mesmo venha.
Podemos dizer que esse texto serve de instrução prática: console, tenha misericórdia, não haja com ira ou violência, viva a paz, não espere nada deste mundo, viva a justiça. Essa é uma árdua tarefa. Contudo, Lutero (2005, p. 276) conclui que essas palavras também são um consolo para as pessoas cristãs. As palavras ditas aqui servem para que as pessoas cristãs não se importem com a ingratidão, o ódio, a inveja e o desprezo do mundo, e sim para que se olhe para o próprio Deus.
3. Meditação
É impossível dizer que a vida é fácil. As pessoas tendem, no cotidiano, a se deparar com as dores e os sofrimentos causados por situações difíceis, que nem sempre resultam de escolhas próprias. Estamos todos sujeitos aos infortúnios, à entropia e ao suspiro derradeiro. C’est la vie.
Em nossos cultos, temos um espaço muito especial na liturgia em que clamamos pelas dores do mundo. Esse é um grande reconhecimento de que as coisas ao nosso redor não são tão boas quanto gostaríamos que fossem. O coronavírus ainda nos assusta. Surge uma hepatite misteriosa e, ao mesmo tempo, o retorno da varíola; ocorrem guerras e fome. As pessoas estão ansiosas, solitárias, depressivas, com medo, angustiadas com o futuro.
Para piorar, em muitas situações, essas pessoas não encontram quem olhe para elas, quem as escute sem julgamentos, não há quem as acolha. Essa crise não é só dos outros! É minha também! Eu não sou visto, ninguém me escuta, não sou acolhido!
A ideia da felicidade presente também está cada vez mais distante. E isso é curioso. As conquistas tecnológicas nos aproximaram de quem estava longe, avanços na medicina fazem a nossa expectativa de vida aumentar, produção em alta. Contudo, mesmo assim, vivemos em um período de infelicidades, de vazio e de grandes crises. Lembramos que o conceito de felicidade nos diz que ela é o estado de satisfação de alguém com a sua situação no mundo. Isso está cada vez mais raro.
É justamente nesse ponto que o texto do evangelho começa a fazer sentido. Jesus Cristo não jogou ao vento palavras que não faziam sentido para as pessoas. Ele não fez um discurso para ser recortado e postado no TikTok. A primeira coisa que ele faz é olhar para as pessoas.
Ao olhar para elas, Jesus Cristo percebe quem é o seu interlocutor. Pode ver seus rostos, sua feição de espanto, de alegria, de tristeza, de dor, de pressa, também de indiferença. Além disso, as situações de sofrimento, de opressão, de choro, de acusação, de perseguição, de injustiças, de pobreza ficam perceptíveis.
Estamos com muita dificuldade em olhar e ver o que nos cerca. Não conseguimos observar os sinais de nosso tempo. Não conseguimos ver as pessoas que passam ao nosso lado. Não enxergar significa não conhecer. Olhar para as pessoas e buscar compreendê-las é um ato de diaconia.
É importante notar que as palavras expressas por Jesus trazem não só um consolo, mas também uma ressignificação. Com isso lembramos de Vigotski: “Uma palavra sem significado é um som vazio; o significado, portanto, é um critério da palavra, seu componente indispensável. Pareceria, então, que o significado poderia ser visto como um fenômeno da fala”. Após ver aquelas pessoas, Jesus forneceu, pela fala, um sentido a elas.
E é nesse interim que o termo bem-aventurança começa a fazer sentido. A bem-aventurança é um ideal de satisfação independente da relação do ser humano com o mundo. Em outras palavras, compreender a bem-aventurança é compreender que a realização daquilo que ela carrega não está embasada, num primeiro momento, naquilo que ser humano pode e consegue fazer. Mas está para além dele! Por isso é importante notar, na explicação dada, que ela é uma característica dos seres contemplativos e religiosos.
É preciso lembrar, antes de qualquer coisa, que o sermão de Jesus é discurso. Não é da prática que advém a teoria, pelo contrário, da teoria que se vai para a prática. Não são as pessoas que servem para justificar o discurso, como a política partidária faz. Mas é o discurso que é orientado para chegar ao ponto vivencial das pessoas. É por isso que ele pode ser considerado de status ético. Ele detecta o problema e oferece uma solução. Ele sai do mero discurso e se torna prática, se torna ato diaconal e missionário.
Aqui se apresenta novamente o paradoxo. Se os aspectos nitidamente problemáticos da vida se revelam com algum benefício no todo, isso representa realmente um problema? Chorar e prantear é algo ruim, mas ser consolado é bom! Então chorar realmente é um problema?
É justamente nesse ponto que o ensino de Jesus se torna práxis dentro da igreja. Chorar faz parte da vida. O chorar sozinho é que é problema. Estar sedento por justiça é algo comum. Não ter esperança de ser saciado é que gera crise. Conforme Rienecker (1998, p. 76), “por isso a comunidade de Jesus Cristo torna-se uma grandeza absolutamente real. Vale inteiramente para ela a característica da visibilidade”. Que nosso discurso vire prática!
4. Imagens para a prédica
As palavras de Jesus Cristo também são destinadas à comunidade do dia de hoje. Nossas comunidades são formadas por pessoas bem-aventuradas. E ao mesmo tempo responsáveis por espalhar as bem-aventuranças por onde passam. Lembramos os artigos IV, V e VI da Confessio Augustana. Ganhamos a salvação – a maior bem-aventurança de todas, como presente, sem mérito nosso. Isso nos é anunciado em todo o momento pela palavra de Deus, para isso foi instituída a pregação, anunciando-nos um Deus gracioso. Após isso vem a nova obediência, que nos ensina que “devemos” produzir bons frutos e boas obras, por causa do amor de Deus, porém sem confiar que elas nos tragam algum mérito.
Desse modo, podem ser apresentadas, na fala ou visualmente, situações que denotam o infortúnio humano. Situações de miséria, de violência, de corrupção, de desespero e choro. Depois, pode-se explanar sobre o caráter ético do anúncio feito por Jesus Cristo e sobre a busca pela vivência das bem-aventuranças, como prática atual e também como esperança escatológica.
Também se pode diferenciar o conceito de felicidade, como sendo algo que eu conquisto para mim, contraposto ao conceito de bem-aventurança, quando algo me é dado, mesmo que eu não mereça. Um sorvete de baunilha no caminho para o culto é felicidade. O abraço verdadeiro de uma criança na porta do templo é bem-aventurança.
Também se pode usar o paradoxo da cruz como exemplo. Aquilo que parecia o fim de tudo trouxe recomeço. O símbolo de morte gerou vida!
5. Subsídios litúrgicos
Na oração de intercessão, lembrar as dificuldades e bem-aventuranças ocorridas na comunidade. Antes da oração, podem ser levantados motivos especiais de agradecimento e intercessão.
Bibliografia
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: WWF Martins Fontes, 2012.
LUTERO, Martinho. Prédicas semanais sobre Mateus 5 – 7. In: ______. Obras selecionadas. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia; Canoas: ULBRA, 2005. v. 9, p. 15-279.
RIENECKER, Fritz. O Evangelho de Mateus. Curitiba: Esperança, 1998. (Comentário Esperança).
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