Prédica: Lucas 4.1-13
Leituras: Deuteronômio 26.1-11 e Romanos 10.8b-13
Autoria: Uwe Wegner
Data Litúrgica: 1º. Domingo na Quaresma
Data da Pregação: 10 de março de 2019
Proclamar Libertação - Volume: XLIII
Tentações e concepções de Jesus
1. Introdução
A história da tentação de Jesus é passível de diferentes interpretações. Para alguns pesquisadores, ela remonta ao próprio Jesus (p. ex., Jeremias, 2004, p. 122-131), que, em linguagem mitológica, provavelmente descreveu a seus discípulos as tentações pelas quais ele passou em sua permanência no deserto durante 40 dias depois do seu batismo. Teriam sido essas tentações em forma de visões, à semelhança da visão que Jesus teve do diabo caindo do céu, em Lucas 10.18? É possível, embora não sujeito a provas.
Outros pesquisadores já acham que a elaboração da história provém da mão de grupos próximos a Jesus (discípulos ou seguidores mais estreitos). Eles teriam condensado nessa história as tentações mais marcantes pelas quais Jesus como Filho de Deus teria passado ao longo de todo o seu ministério. A história teria sido colocada no início de sua vida, embora retrate todo o período de sua atuação. Por diversas razões, acho essa segunda hipótese muito provável.
Quanto aos textos para leitura, o primeiro deles é Romanos 10.8b-13. Trata sobre a importância da confissão de fé na ressurreição de Jesus e sobre o ato de invocação de Jesus como Senhor. Em comum com o texto da tentação ele tem o fato de ambos sempre remeterem para Deus/Senhor, respectivamente, para a palavra de Deus. O outro texto, Deuteronômio 26.1-11, fala sobre as dádivas das primícias (primeiros frutos) que os israelitas deveriam levar ao altar em agradecimento pela libertação do Egito. A libertação do Egito tem a ver com a última tentação de Jesus: ela mostra que, a sua maneira, Deus cuida de seus filhos e suas filhas, como o diabo quis que Jesus o provasse de forma extraordinária.
2. Exegese
O pão pode ser adquirido com um milagre, seja o de uma multiplicação de pães ou de uma partilha de pães. Assim sugerem os textos de Marcos 6.30-44 e 8.1-10. Nesses casos, o milagre dos pães teve por finalidade dar alimento para multidões esfomeadas no deserto. Jesus o realizou movido por amor, compaixão com a multidão. Aqui em Lucas 4 o milagre sugerido é a transformação de uma pedra em pão por Jesus. Ele, afinal, estava 40 dias sem comer, ao fim dos quais teve fome (v. 2). A sugestão do diabo é: Se és Filho de Deus, mande que esta pedra se transforme em pão. O diabo queria uma prova de que Jesus era, de fato, o “Filho amado de Deus”, como o declarara a voz proveniente do céu por ocasião do seu batismo (Lc 3.22). Ora, de Deus se diz no Antigo Testamento que ele falou, e tudo se fez; ele ordenou, e tudo passou a existir (Sl 33.9). Se é correto o provérbio “tal pai/mãe, tal filho/a”, então nada mais natural do que Jesus, como filho, também poder “falar, e tudo se fazer, poder ordenar, e tudo se cumprir”. Essa é a lógica do diabo: se Jesus é Filho de Deus – tal como Deus –, ele poderá dar uma ordem e a pedra se transformará em pão. E assim estará resolvido o problema da sua fome. Perguntamos: por que isso representou uma tentação para Jesus?
Na lógica do diabo, o sentimento da fome e o aplacar da fome deveriam ter prioridade sobre o resto. E o problema da fome deveria ser resolvido com poderes divinos excepcionais e ações miraculosas. Jesus relativiza em sua resposta o valor exagerado que se pode dar ao pão. O pão é importante, mas não é tudo na vida. Ele contesta o valor absoluto do pão, referindo-se a Deuteronômio 8.3, onde diz: O homem não viverá só de pão, mas de tudo o que procede da boca do Senhor. E da boca do Senhor, de sua palavra, não procede só o alimento para o corpo, mas também o que deve nortear e alimentar nossos pensamentos, ações, alma e coração.
Por trás dessa resposta está, com certeza, uma profunda confiança de Jesus no fato de que, a despeito de fomes eventuais e circunstanciais, Deus provê o suficiente para todas as suas criaturas. É o que ele afirma explicitamente em Lucas 12.22-34 / Mateus 6.25-34: Portanto não se preocupem dizendo: “Que comeremos”, “Que beberemos”, “Com que nos vestiremos”? [...] O Pai de vocês, que está nos céus, sabe que vocês precisam de todas elas. Segundo Mateus 6.33, para a solução de problemas como pão e fome, vestuário para se cobrir e água para matar a sede, basta que as pessoas busquem como prioridade o reino de Deus e sua justiça – aí todas estas coisas lhes serão acrescentadas. E em que consiste essa justiça do reino pode ser visualizado na história de Zaqueu (Lc 19.2-10). Parte da sua riqueza, em verdade, poderia ser produto de roubo, e o mandamento de Deus é claro: “Não roubarás”. Zaqueu entendeu isso e falou que devolveria quatro vezes mais qualquer valor eventualmente roubado (v. 8). Ora, sabemos muito bem que, também naquela época, na hora em que terminassem a roubalheira e a corrupção que se praticavam na economia, muito dinheiro que era acumulado injustamente poderia ser distribuído mais equitativamente – haveria mais pão pra todos. Mas Zaqueu faz ainda uma segunda coisa que combina muito bem com a justiça de Deus: ele reparte a metade dos seus bens com os pobres (v. 8). Ou seja, ele não acumula excessos, mas os partilha com quem deles necessita. claro que, nesse caso, ele dificilmente conseguiria compartilhar bens sem generosidade, bondade ou compaixão autênticas em seu coração. Jesus confiava nessa prática de partilha. Só isso também explica que ele e seus discípulos viviam pregando e curando de forma itinerante pela Galileia, sem levar nada pelo caminho: Nem pão, nem sacola, nem dinheiro... nem duas túnicas (Mc 6.8s). E Jesus mostrou na parábola dos trabalhadores na vinha que, justamente por Deus ser bondoso, ele não dá a cada um unicamente segundo suas capacidades e tempo de trabalho, mas também segundo suas necessidades. Por isso mesmo a parábola diz que Deus, o dono da vinha, pagou exatamente o mesmo denário necessário para o sustento diário de todos os trabalhadores, apesar de nem todos terem tido a possibilidade de trabalhar a mesma carga horária (Mt 20.1-15). E termina com a intrigante pergunta: Você ficou com inveja por eu ser bom? (v. 15). Jesus tem razão: se uma justiça de Deus como essa, não só fria e calculista, mas permeada de partilha, bondade e generosidade tomar conta da sociedade, o problema do pão, do que comer, beber e vestir, não necessitará mais de milagres de transformação de pedras em pão, pois terá havido, antes, o milagre da transformação dos corações. E, de fato, o que adiantaria para Jesus ou Deus “milagres” contínuos na área do pão e da economia, se as pessoas mesmas não se tornassem também criaturas renovadas e transformadas (Rm 12. 2)? Augusto E. Kunert, em sua reflexão sobre as tentações de Jesus, no PL 27 (p. 70-79), pergunta com razão: “Quais seriam as consequências [se uma notícia de transformação de pedras em pães e de um salto miraculoso de Jesus desde o pináculo do templo se divulgassem pela Galileia e Palestina da época]? Haveria uma conversão em massa? O arrependimento seria geral? O povo buscaria o Deus vivo? Os corruptos passariam por uma transformação [...]? Os exploradores dos mais fracos abandonariam suas práticas para iniciar uma vida nova?” (p. 73). Ou seja: o pão, quando resultado de poderes extraordinários, satisfaz o ser humano só pela metade, só em seu corpo. E a tentação de Jesus era exatamente esta: que ele se desse por satisfeito só pela metade. Bem mais transformador e evangélico é quando o recebimento do pão é resultado de uma prática solidária de justiça, amor e partilha. Expressão máxima desse último caso é a Santa Ceia, em que o pão é recebido por todos, mas através da generosidade e justiça de uma partilha.
A segunda tentação é dada por uma condução para o alto (cf. Dt 3.27; 34.1-4) e a visão do poder e da glória de todos os reinos do mundo: dá para tê-los e governá-los, assevera o diabo, mas com a condição de adorá-lo. Satanás usa para essa tentação a própria promessa de Deus do Salmo 2.7-8: Decreto do Senhor: Tu és o meu filho, eu, hoje, te gerei. Pede-me, e eu te darei as nações por herança e as extremidades da terra por tua possessão. O que isso significaria o próprio Jesus esclareceu na palavra de Marcos 10.42: Sabeis que os que são considerados governadores dos povos os oprimem e os seus maiorais os tiranizam. Esta era a tentação: receber o poder, mas usá-lo em benefício próprio e com meios autocráticos de tirania e opressão. Jesus coloca a seguir seu projeto de poder do reino: Mas entre vós não é assim. Quem quiser tornar-se grande, seja o que vos sirva, e quem quiser ser o primeiro, seja escravo de todos (Mc 10.43-44). Esse seria o “poder serviço”, que para Jesus também não é exercido de forma autocrática, mas partilhada – ele o compartilhou, exemplarmente, com doze discípulos. Por isso Jesus resiste à segunda tentação do diabo, mantendo-se fiel ao primeiro mandamento: adoração cabe unicamente a Deus (Dt 5.6-10) e ao seu exercício amoroso, benevolente e serviçal de poder compartilhado.
Na terceira tentação, Jesus é conduzido para o ponto mais alto do edifício do templo (a exata localização do “pináculo” é incerta). O diabo propõe que Jesus se jogue para baixo, pois, se é Filho de Deus, Deus o salvará da morte na queda. O diabo assegura o auxílio divino com bonitas palavras da Escritura (Sl 91.11-12). Jesus revida com outro texto da Escritura: Não ponha à prova o Senhor, teu Deus. Ora, se Jesus se atirasse do templo asseverando uma ajuda milagrosa de Deus, ele, em verdade, estaria condicionando Deus a assegurar sua permanência em vida e, dessa forma, pervertendo a confiança que nos cabe ter em Deus. Para Jesus, a vida é dom de Deus e, por isso mesmo, só a ele compete a decisão de mantê-la ou tirá-la. Jesus resistiu à tentação de se assenhorear da vida até o fim: mesmo diante da iminência de sua morte, ele pede, sim, por vida a seu Deus, mas sem fazer exigências, antes orando humildemente: Contudo, não seja o que eu quero, e sim, o que tu queres (Mc 14.36). Existem lindas promessas de vida nas Escrituras (Mt 10.28-31; Jo 10.10 e outros), mas só a Deus cabe decidir quando e como cumpri-las. O próprio Jesus, aliás, defensor e doador de vida, foi quem afirmou ser preciso aprender a perdê-la para ganhá-la (Mc 8.35).
3. Meditação
A declaração dada pela voz do céu a Jesus no batismo (Tu és o meu Filho amado, em ti me agrado – Lc 3.23) deve tê-lo deixado muito alegre e grato. Mas trazia em seu bojo a seguinte questão para o Salvador: Filho de Deus, sim. Mas, afinal, que tipo de Filho Deus espera que eu seja?
A história da tentação é exatamente isto: a resposta de Jesus ao tipo de Filho que, em seu entendimento, ele achava que Deus queria que fosse, e também ao tipo de Filho que, em seu juízo, ele entendia não corresponder à vontade de Deus. No fundo, as tentações buscam clarear “imagens/concepções” de Jesus: como Deus o quer na qualidade de Filho e como o diabo gostaria que ele fosse. A atualidade do texto reside no fato de que nós, como seguidores e seguidoras de Cristo, podemos viver e pregar ainda hoje exatamente esses dois tipos de concepções sobre Jesus: as diabólicas ou as evangélicas de Cristo como Senhor.
A tentação diabólica, no caso da transformação milagreira de pedras em pães, significaria, segundo Boff, “manipulação da vontade do homem e dispensa das responsabilidades humanas. O homem seria mero espectador e beneficiário, mas não participante. Ele não faria história. Seria libertado paternalisticamente; a libertação não seria o dom de uma conquista”, nem de uma nova justiça nem de uma partilha fraterna (Boff, 1980, p. 171). Mas a tentação do pão não se restringe à sua eventual multiplicação milagreira. Ela também se manifesta quando damos ao pão ou à comida em geral um valor absoluto, que os colocam bem acima de outras necessidades e cuidados que o nosso corpo requer para sua saúde. Penso só nas dezenas de maus hábitos alimentares aos quais nos arraigamos e dos quais não conseguimos nem queremos nos desprender: são eles que nos levam a doenças, tais como pressão alta, diabetes, câncer, entre outras. Não só do pão vivem as pessoas – bem verdade. Quem não quer entender com Jesus que também o pão ou a comida em geral não podem nem devem ser absolutizados, não vai viver deles, vai morrer deles. Mas o mais importante de tudo, para não absolutizarmos o valor do pão e da comida, ainda é para mim o seguinte: aprender a agradecer a Deus por eles, como Jesus, p. ex., fez na segunda partilha dos pães (Mc 8.6). Porque no momento em que agradecemos a Deus pelo que temos, aquilo que possuímos deixa de ser “posse” nossa para tornar-se dádiva sua. E aí não haverá mais razões para acumularmos pão, comida, casa, vestuário, moradia etc., para bem além de nossas necessidades, mas poderemos nos tornar como Deus: de graça ele deu para nós, de graça poderemos repartir com o próximo.
A segunda tentação quase dispensa atualizações mais exatas. Ela consiste no abuso do poder político, ou seja, no uso do poder para ser servido, e não para servir, como Jesus o concebeu (Mc 10.41-45). Em outras palavras: usar o poder em benefício dos próprios interesses, e não daqueles pelos quais fomos eleitos. Esses abusos se multiplicam em todas as instâncias do poder (executivo, legislativo, judiciário), mas também em todos os níveis (municipal, regional, estadual e federal). A nós, como cidadãos, cidadãs e eleitores/as caberá não nos deixarmos corromper por palavras bonitas, promessas enganosas etc. Nossa grande contribuição contra essa tentação é pelo voto consciente e diferenciado e pela defesa de um exercício de poder não só representativo, mas também participativo através de manifestações, abaixo-assinados, discussões públicas etc.
A última tentação é a de achar que Deus nos deve a preservação da vida sob quaisquer circunstâncias, mesmo que de forma espetacular. Atira-te para baixo que Deus te guardará! (Lc 4.9-10). Se cada mãe e pai têm todo interesse em preservar a vida do seu filho e de sua filha, não terá Deus muito mais ainda interesse em preservar a vida do seu amado Filho eleito? Essa foi a sugestão tentadora do diabo. Jesus não embarcou. Mesmo assim: quanto conflito de vontades, quanta renúncia não terá custado a Jesus assumir e encarnar palavras como a de Marcos 10.45: Não vim para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate de muitos! E quanto de fidelidade a Deus não terão representado suas palavras de oração antes de ser preso: Aba, Pai, tudo te é possível; passa de mim este cálice! Porém, não seja o que eu quero, e sim o que tu queres! Não é por menos que os discípulos tinham dificuldade para entender os anúncios de paixão e morte que Jesus pronunciou (Mc 8.31-37; 9.30-32; 10.32-34). O que Jesus deve ter aprendido gradativamente em seu ministério é que Deus quer preservar nossa vida, sim, mas não ao preço da falta de solidariedade, do desamor, da prática da injustiça, da difusão de inverdades, da falta de consideração com irmãos e irmãs mais fracas. Esse preço Jesus não estava disposto a pagar por fidelidade à vontade amorosa do seu Deus. Pessoas cristãs, na medida em que são defensores da verdade e justiça, jamais terão vida mansa num contexto de opressão, exploração e abusos contra o próximo (Mt 5.10-12).
4. Imagens para a prédica
Como imagens para a prédica me ocorre destacar para esse texto bíblico três figuras: (1) a de uma Bíblia; (2) figura ou figuras comumente usadas para o diabo/tentador; (3) e uma figura de Jesus. Ambos, Jesus e o diabo remetem para a Bíblia. Mas também poderiam ser usadas três imagens referentes às três tentações concretas: (1) a partilha ou multiplicação de pães por Jesus; (2) Cristo como monarca ou imperador; (3) e Cristo amparado milagrosamente por anjos em uma queda.
5. Subsídios litúrgicos
Remeto ao PL 37, 2012, p. 104. Ali Léo Zeno Konzen propõe uma interessante oração entre oficiante e comunidade, rogando a Deus que não nos deixe cair em tentação em face de uma série de tentações atualizadas, que o oficiante vai citando ao longo do texto.
Bibliografia
BOFF, L. Teologia do cativeiro e da libertação. São Paulo: Círculo do Livro S.A., 1980.
KUNERT, Augusto E. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2001. v. 27, p. 70-79.
JEREMIAS, J. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Teológica; Paulus, 2004.
JÚNIOR, E. S. O rosto de Jesus no decorrer da história. Petrópolis: Vozes, 1991.
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