Vida Celebrativa - Ano Eclesiástico


ID: 2654

Lucas 19.1-10 - 21º Domingo após Pentecostes - 30 de outubro de 2022

Auxílio Homilético

30/10/2022

Prédica: Lucas 19.1-10
Leituras: Isaías 1.10-18 e 2 Tessalonicenses 1.1-4, 11-12
Autoria: Roberto Ervino Zwetsch
Data Litúrgica: 21º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 30/10/2022
Proclamar Libertação - Volume: XLVI

Hoje houve salvação nesta casa!

1. Introdução

O desafio de pregar sobre a história de Zaqueu é grande. Uma vez porque a narrativa é bem conhecida e muita gente na comunidade, ao escutar a leitura, vai pensar: “Ih, novamente essa história do rico que se converte!”. Por isso mesmo, em segundo lugar, cabe estudar com afinco o texto, ler comentários, refletir sobre o que se passa em nosso país e na comunidade, para então ajustar a embocadura de forma a dizer algo consistente, que desafie para uma mudança de vida. A composição das leituras com o texto do evangelho pode ser um sinal para sua incidência nos dias de hoje. Isaías 1.10-17 (não acho justo incluir o v. 18, pois muda o tema!) questiona rituais religiosos baseados na injustiça, num sacrificialismo estéril e cruel. O profeta é duro ao criticar uma forma de religiosidade autossuficiente e convencida de sua justiça. O Deus da justiça não suporta um culto que esconde a iniquidade: sim, quando multiplicais as vossas orações, não as ouço, porque as vossas mãos estão cheias de sangue (v. 15). Palavras dirigidas aos príncipes ou governantes do país! Palavras muito atuais num país assolado pela tragédia da pandemia da Covid-19 e pelo descalabro da criminosa ausência de políticas de saúde que preservem vidas. Já a leitura de 2 Tessalonicenses 1 nos remete a um outro ambiente, uma pequena e jovem comunidade cristã na Macedônia, que conheceu o Evangelho de Jesus por meio do apóstolo Paulo, que vem exercitando o que aprendeu com fé e coerência. Paulo dá graças a Deus porque a fé em Jesus cresce sobremaneira e se expressa concretamente no amor mútuo que aumenta a cada dia no meio da comunidade. Fé e amor mútuo são dois lados da mesma experiência de nova vida a partir do evangelho da graça e do amor de Deus. Se pudesse sugerir, como o faz Paulo Roberto Garcia (PL 40), ambos os textos nos desafiam a superar a injustiça e a pôr em prática a fé que atua pelo amor. “Fé ativa que promove a prática da justiça” ou do amor mútuo. Esse é o desafio na narrativa do encontro de Jesus com Zaqueu na beira do caminho passando por Jericó rumo à Jerusalém.

A narrativa de Lucas 19.1ss foi estudada anteriormente nos seguintes volumes de Proclamar Libertação: II (1977), VIII (1982), XIV (1988), 37 (2012) e 40 (2015). Como todos esses exemplares estão disponíveis no Portal Luteranos, sugiro que quem puder dê uma olhada. Cada contribuição traz informações e perspectivas de análise do texto muito interessantes para o desafio de atualizar essa narrativa hoje.

2. Informações exegéticas

Como é sabido, Lucas é o evangelista de língua grega, que possivelmente vivia em Antioquia e que escreveu os dois relatos complementares: o evangelho, que narra a caminhada de Jesus de Nazaré, e o livro de Atos, que narra a caminhada da comunidade das discípulas e dos discípulos de Jesus, depois chamada de igreja de Deus, após sua ressurreição. Lucas faz parte dos evangelhos sinóticos, com Mateus e Marcos. Marcos lhe serviu de base, contando ainda com a outra fonte chamada de Q. Se Lucas se associa aos dois outros evangelhos, não deixou de imprimir sua particularidade, pois quase a metade do seu evangelho é constituída de material exclusivo, como a narrativa do encontro de Jesus com Zaqueu.

Lucas, porém, oferece ainda mais algumas características que vale resgatar. A Bíblia Pastoral (Paulinas, 1990) traz uma breve introdução a esse evangelho e afirma o seguinte: ele narra o caminho de Jesus como caminho que se realiza na história, começando em Nazaré e terminando tragicamente em Jerusalém. Trata-se dos caminhos da salvação ou da libertação de tudo o que escraviza as pessoas, a começar pelas mais pobres e vulneráveis. É por isso que, nesse evangelho, pobres e pessoas oprimidas ganham tanto destaque (desde o Magnificat de Maria até a narrativa da cruz e ressurreição). A caminhada de Jesus estabelece um confronto com um sistema religioso, político e econômico que marginaliza e sacrifica pessoas. Jesus expõe as raízes desse sistema ao exaltar pessoas insignificantes e tirar o chão das pessoas que se autodefinem como justas, piedosas e sem mácula (Lc 18.9-14, entre outros). Jesus fez de sua vida e testemunho um ato de entrega plena ao Pai, que chama os pobres de bem-aventurados ou felizes (Lc 6.20ss), mas adverte: Ai de vocês, os ricos porque já têm a sua consolação (6.24).

Verner Hoefelmann, num artigo sobre missão em Lucas (1988), enfatizou que esse evangelho tem como agentes privilegiados os pobres. O termo grego ptochos designa os pobres em sentido social e econômico, incluindo doentes, cegos, paralíticos e leprosos (hoje se usa a palavra hansenianos). Em Lucas 4.18ss e 7.18ss, Jesus imagina o jubileu prometido como um programa messiânico, sinal do reino de Deus. Nele está reservado um lugar especial para os pobres, os mendigos, os sem terra e sem teto, sem trabalho e sem direitos. Hoefelmann então explica as razões dessas ênfases: a) são essas pessoas que mais necessitam da graça libertadora de Deus; b) são as que mais se mostram abertas ao projeto do reino de Deus; c) são as que mais estão interessadas em mudar a atuação.

A narrativa do encontro de Jesus com Zaqueu, à primeira vista, parece um desvio desse roteiro básico. Literariamente, o texto encontra-se na terceira parte do evangelho, que descreve a caminhada de Jesus rumo à Jerusalém, com relatos de viagem e encontros os mais diversos (9.51 – 19.27). Mais próximo do nosso texto, encontramos as seguintes narrativas, depois da interessante parábola do juiz iníquo: 18.9ss – o confronto entre duas piedades contrastantes, a do fariseu e a do publicano; 18.15ss – Jesus abençoando crianças num gesto duro contra seu grupo; 18.18ss – um diálogo compreensivo com um jovem rico, que rejeitou o caminho de Jesus, mesmo que a tristeza tomasse conta de sua vida, porque não aceitou abrir mão de sua riqueza; o texto que segue complementa essa narrativa para o assustado grupo de seguidoras e seguidores: Sendo assim, quem pode ser salvo?; 18.31ss – Jesus prediz sua morte e ressurreição, enquanto Lucas adverte a comunidade a quem dirigiu o evangelho: o sentido dessas palavras era-lhes encoberto, de sorte que não percebiam o que ele dizia (v. 34); 18.35ss – a narrativa da cura de um homem cego já perto de Jericó, a cidade por onde deveria passar. É um texto paradigmático, porque quem acompanhava o pobre homem o repreendia para que se calasse, mas ele gritava: Filho de Davi, tem misericórdia de mim! (v. 38). Jesus, ouvindo o grito, chamou o homem e perguntou: Que queres que eu te faça? O homem nem pensa para responder e diz: Senhor, que eu torne a ver (v. 41). O resultado é que esse homem volta a ver e sai saltitando dando glória a Deus.

Na sequência temos a narrativa de Jesus e Zaqueu, que também acontece na caminhada através da cidade e no meio de uma multidão. Jericó é uma cidade de fronteira, situada entre o mundo sírio-palestinense e o mundo greco-romano, não muito grande, mas importante na chamada Era Herodiana. Cidade de comércio forte e próspero, alimentado por muitos peregrinos, era usada por Herodes como capital de inverno. Diferente de outras cidades, parece ter tido muitas árvores nas ruas, entre elas o sicômoro mencionado, uma espécie de plátano que produz um fruto semelhante ao figo, com ramos que vinham até quase o chão e muito fortes. Essa cidade serve de palco para um encontro inédito.

Sobre o texto, eu o divido em duas partes: v. 1-4, em que o personagem principal é Zaqueu; v. 5-9, em que se destacam a figura e a ação de Jesus. Nessa  divisão didática, o v. 10 é como a moral da história.

V. 1-4 – Jericó é a cidade através da qual Jesus caminha. Ele a atravessa. Nela havia um homem, Zaqueu (é a forma abreviada de Zacarias, que significa “Deus lembra”; outra possibilidade é “justo, puro”). Ele é apresentado como chefe de publicanos, uma categoria odiada pelos judeus porque eram pessoas que trabalhavam na coleta de impostos, que beneficiavam a nobreza sacerdotal e o Império Romano. Como chefe, tinha vários subordinados, mas sua posição permitia facilidade de enriquecer às custas dos trabalhadores e trabalhadoras, seja de forma legal ou ilegal. Os impostos eram cobrados não diretamente pelos romanos, mas por gente judaica aliada aos romanos, que arrendavam a cobrança aos da terra, gerando um conflito permanente no país. Para ser lucrativo o negócio, as taxas tinham de ser superiores ao arrendamento e demais despesas, mas seguidamente superavam o cobrado pelos romanos, sendo arbitrariamente elevadas e gerando o ódio da população. Não por acaso, essa categoria de cobradores de impostos era colocada junto com pecadores, pagãos e prostitutas.

A convivência com essas pessoas era sumariamente condenada e causa de impureza ritual grave. Uma hipocrisia, pois eram as próprias autoridades judaicas que aceitavam obrigatoriamente o sistema como parte da invasão e opressão romana. No Evangelho de Lucas, porém, encontramos um contraponto desconcertante: em dois textos, publicanos são elogiados, não tanto pelo que fazem enquanto tais, mas por sua honesta abertura para sair de si e mudar de vida (18.9sss; 19.1ss). 

Um último aspecto que chama a atenção na narrativa é um certo humor com o qual o evangelista apresenta esse homem Zaqueu. De baixa estatura e curioso para ao menos conhecer mais de perto a figura desse mestre que vem de Nazaré, ele trepa numa árvore – como faria qualquer criança – e de cima consegue acompanhar a caminhada de Jesus. Dá para imaginar a cena. Lucas é hábil no relato, pois desfaz toda aquela figura odiosa e rica por meio de um gesto quase infantil.

V. 5-9 – Ao passar pelo local, surpreendentemente, Jesus olha para cima e fala com esse Zaqueu estranho: Desce depressa, pois me convém hoje ficar em tua casa. Há aqui uma inversão da lei da hospitalidade (Gn 18.1ss), pois nesse caso é Jesus que se convida. E a reação do homem rico é imediata e também fora do comum: ele desceu depressa e o recebeu com alegria. A murmuração ou falação no meio do povo se volta contra Jesus. É a típica forma de intolerância religiosa ou social, pois a acusação era cruel: ele se hospeda com um homem pecador. Portanto se torna pecador e impuro como Zaqueu.

A sequência nos surpreende ainda mais, pois a reação à visita de Jesus – que não fala mais nada! – é algo impensável no sistema de cobrança de impostos, ainda mais vinda de quem vem. Ao invés de ouvirmos um sermão de Jesus, uma reprimenda ou lição de moral, o que ouvimos é uma decisão de um homem pecador que é quem fala aqui: Senhor, resolvo dar aos pobres a metade dos meus bens; e se alguma cousa tenho defraudado alguém, restituo quatro vezes mais. Informações bíblicas nos dizem que aqui Zaqueu superou o exigido pela Lei. Conforme Êxodo 22.1, que trata de roubo de gado, a restituição exigia o seguinte: um boi paga cinco furtados, e quatro ovelhas por uma. Quer dizer, o que temos por baixo dessa narrativa é a prática de extorsão dos mais pobres.

Zaqueu reconhece seu pecado e procura mudar de vida. O que intriga no texto é que não ficamos sabendo o que – eventualmente – Jesus e Zaqueu conversaram no caminho até a casa deste. Então é importante, a meu ver, não inventar o que porventura se passou na consciência de Zaqueu ou seu coração. Aqui temos um exemplo forte de como lidar com os evangelhos. Seguir a narrativa e as ações que nela são mencionadas com a maior fidelidade possível, sem cair em psicologismos ou sentimentos que desconhecemos e que o texto não informa.

A única reação claramente indicada é que – ao receber o autoconvite surpreendente de Jesus – Zaqueu o recebeu com alegria. Não deve ser acaso o uso da palavra por Lucas, porque o evangelho é a boa nova de grande alegria (Lc 2.10). Seguremos essa palavra, então! No caso, a reação de Zaqueu talvez seja resultado da grande alegria que a presença de Jesus em sua casa lhe proporcionou. De qualquer forma, sua decisão de repartir metade dos seus bens e restituir a quem defraudou até quatro vezes mais não é algo comum ou esperado. É uma atitude única e, talvez, incomum. Só nesse momento, após ouvir o que o seu anfitrião acabara de lhe anunciar, Jesus fala nessa narrativa. E então ele diz algo que também nos desafia: Hoje houve salvação nesta casa, pois que também este é filho de Abraão. Segundo um dos comentários, ser filho de Abraão significa que Zaqueu foi reincorporado na comunhão dos filhos de Deus, contra as leis de pureza e as diferenças sociais e políticas que o separavam das demais pessoas de suas relações. Jesus o coloca num novo espaço social, religioso e cultural na sociedade judaica. Algo inusitado para um publicano.

Por meio dessa ação de visitação, Jesus anuncia que Deus restaura a vida desse corrupto, se lembra dele e o torna justo. Mas há um detalhe que não encontrei antes: Jesus afirma que a salvação ou libertação aconteceu na casa de Zaqueu. Que significa isso? Por que Jesus não fala em conversão ou de um novo coração (Jr 31.33s; Ez 36.26)? A presença ou visita de Jesus abrange bem mais do que a interioridade da pessoa. Jesus afirma que a salvação acontece na casa. Isso quer dizer que a salvação atinge toda a família e as relações vivenciais de Zaqueu. Creio que se pode afirmar – com o texto – que ela atinge os pobres que foram defraudados e que – na sequência da visita de Jesus – serão beneficiados com uma justiça relacional inesperada e libertadora.

O foco do texto, então, está na salvação da casa, esse nó de relações familiares, de parentesco e de trabalho (incluir os subordinados de Zaqueu nessa salvação não seria despropositado) que transforma a vida de Zaqueu e de sua família restituindo-lhes uma dignidade que ele desconhecia, portanto gratuita e cheia de misericórdia. Salvação aqui é mudança holística portanto, e não apenas uma experiência espiritual genuína, que certamente ocorreu. O que me parece importante é mostrar aqui que mudanças de mentalidade e conversão de espírito não podem ser sentidas a não ser mediante manifestações concretas que se dão na vida cotidiana, nas relações próximas ou distantes, e que se tornam paradigma de outras formas de ser humano.

V. 10 – Esse versículo é como um resumo teológico do ensinamento que a narrativa propôs: “O Filho do homem veio buscar e salvar o perdido”. É interessante colocar essa narrativa junto com a parábola do rico e do publicano que Lucas apresentou no capítulo 18.19ss. Ali o rico é confrontado com o mendigo Lázaro e a distância entre a riqueza de um e a miséria do outro. A parábola mostra os sofrimentos do rico após a morte e a sua consciência de que errou fatalmente em vida. Chama a atenção que, na sua conversa com o pai Abraão, ele aprendeu a interceder pela família ainda viva para que, ao menos ela, seja poupada dos tormentos pelos quais ele está passando na eternidade. A resposta de Abraão é dura e objetiva: Eles têm Moisés e os profetas; ouçam-nos. O rico não se conforma: Não, pai Abraão, se alguém dentre os mortos for ter com eles, irão se arrepender. Abraão conclui dramaticamente: Se não ouvem Moisés e os profetas, tão pouco se deixarão persuadir, ainda que alguém ressuscite dentre os mortos. Parece que a história de Zaqueu, o encontro com Jesus e a salvação ou libertação que sua casa experimentou mostram uma possibilidade de retomar a vida conforme a justiça, a graça e o amor de Deus. Nesse caso, porém, se trata do encontro com o Jesus terreno e não ainda com o Ressuscitado.

3. Meditação

Li muitas vezes essa narrativa. E a cada leitura mais me sentia desafiado a pensar como anunciar a mensagem que está nela escondida. Pois não é prudente espiritualizar esse texto ou ficar na sua superfície. Tem muito em jogo no que se passou entre Jesus, Zaqueu, sua casa e suas relações sociais, políticas, étnicas e religiosas ou espirituais. É uma história exemplar e não consegui deixar de lê-la como contraponto do drama vivido pelo rico da parábola em que o miserável Lázaro é quem encontra a vida plena e não o rico autossuficiente e que despreza o resto da humanidade.

Zaqueu foi visto por Jesus, chamado pelo nome e visitado em casa. Jesus ultrapassou todas as medidas de segurança e de pureza previstas na Lei para se hospedar em sua casa. Gesto ousado e sem comparação. O gesto de Jesus, porém, repercutiu profundamente na vida daquela casa como nunca antes. E a transformação da casa atinge Zaqueu e sua parentela, traz para o seu convívio gente pobre e gente que foi ludibriada por ele e seus subordinados. A vida jamais foi a mesma para essa família depois da visita de Jesus. E teve consequências sem precedentes.

É interessante observar que não foi preciso que Jesus fizesse qualquer exigência ao anfitrião corrupto. Ele mesmo sabia o que deveria fazer. Houve aqui uma transformação abarcadora, uma libertação holística que envolveu a pessoa, a família, o projeto de vida, e até mesmo a sociedade mais próxima.

Não se pode exagerar, porém, pois um caso como esse não acontece todo dia, nem em Jericó e muito menos no Brasil. Mas será que poderíamos encontrar algum exemplo de um possível Zaqueu contemporâneo? Imagino que colegas que estarão preparando sua prédica nesses dias encontrarão aqui e ali, em sua experiência ministerial, algum caso correlato, mesmo que com as diferenças compreensíveis de distância no tempo, de cultura e tradições religiosas. Cabe analisar – quem sabe – um desses casos e ver como ele poderia ilustrar a compreensão do que aconteceu com Zaqueu em seu encontro com o mestre Jesus, o filho da nova humanidade.

O que penso ser importante enfatizar a partir da narrativa desse encontro é que a visita de Jesus em nossa casa não acontece por acaso. Ele chama e se convida a entrar nela. Ele busca a hospitalidade em nossas casas, em nossas vidas e em nossas relações para nos abrir mente, coração e vida para o que é de fato importante: que se rompam os preconceitos do que é justo e injusto, do que seja puro e impuro, do que significa viver com alegria ou tristeza, do que é ser livre ou dominado pelos demônios da riqueza, do poder e da autossuficiência egoística.

Zaqueu – ao tomar uma decisão crucial em sua vida e que transformou sua casa – pode servir de inspiração para a nossa vida hoje em dia. Salvação ou libertação acontecem, por vezes, sem aviso e de forma a nos surpreender no fundo da alma e da nossa vida.

Zaqueu pode servir como inspiração hoje para compreender que uma vida com sentido e dignidade não se encontra na solidão de uma vida higienicamente apartada. É preciso abrir-se para as pessoas, sobretudo, para as mais pobres, vulneráveis e sem quem as reconheça. É preciso reconhecer nossos pecados, nossa cegueira, nossa falsidade para receber salvação e libertação. E assim, possivelmente será junto daquelas pessoas aparentemente desprezíveis que uma nova qualidade de vida será experimentada.

Mesmo nesses tempos de pandemia, de distanciamento social e de cuidados extremos para evitar infecções ou contaminação de outras pessoas.  Então sim, será possível experimentar o que significa o dito de Jesus: “Hoje houve salvação nesta casa”.

4. Subsídios litúrgicos

Se me fosse permitido sugerir passos para a pregação, eu dividiria o texto nas duas partes mencionadas e destacaria o que enfatizei aqui: a salvação que a visita de Jesus traz envolve ou abrange toda a casa, as pessoas que nela vivem, suas relações, seus projetos pessoais e sua incidência no ambiente de vida. Gostaria de deixar dois exemplos que me impressionaram já há algum tempo. Um da Ásia e outro do Brasil.

O primeiro exemplo é a história de Muhammad Yunus, economista e banqueiro de Bangladesh que, em 2006, foi laureado com o Nobel da Paz. É autor do livro O banqueiro dos pobres, publicado no Brasil pela Editora Ática (2003). Ele afirma que é possível acabar com a pobreza por meio do investimento em favor das pessoas pobres, como faz no banco que fundou e do qual é presidente, sendo o governo de Bangladesh seu principal acionista. Trata-se do Grameen Bank, que já chegou a ter mais de dois milhões de acionistas e cuja experiência exitosa é oferecer microcrédito para milhões de famílias, especialmente mulheres. Um detalhe importante desse banco é o fato de praticamente não ter inadimplência das pessoas que recebem os créditos, que variam de dez a cem dólares. A conclusão de Yunus é que as pessoas pobres são ciosas em relação a suas contas e procuram sempre pagar em dia os seus débitos. Ele afirma que é impossível ter paz com os níveis de pobreza que existam atualmente no mundo.

O segundo exemplo é o ex-banqueiro de investimentos Eduardo Moreira, que atuou no mercado financeiro por vários anos. Ele é empresário, engenheiro, palestrante, escritor, dramaturgo. Formou-se em Engenharia Civil pela PUC do Rio de Janeiro e foi aluno de intercâmbio na Universidade da Califórnia em San Diego, EUA, onde estudou economia. Moreira deu uma reviravolta em sua vida quando foi convidado pela Coordenação do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) para conhecer alguns assentamentos e as cooperativas de produção de alimentos orgânicos. O MST é o maior produtor de arroz orgânico e livre de venenos no Brasil e na América Latina. Ao conhecer de perto a luta dessas famílias e o sucesso da agroecologia, Eduardo Moreira tornou-se um defensor da Reforma Agrária, com o uso das tecnologias orgânicas e a aposta nos trabalhos coletivos das cooperativas. Sua virada foi completada por visitas a comunidades indígenas. Uma das que mais o impactou foi conhecer aldeias dos Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul, o sofrimento dessas comunidades cercadas por fazendas de gado e produção de soja, a invasão de seus territórios e a luta para preservar seu modo de vida. Moreira abandonou o mercado financeiro e hoje se especializou em propor uma nova economia para o Brasil, baseada na cooperação, em novas tecnologias e na defesa do meio ambiente. Um de seus livros recentes é Desigualdade & caminhos para uma sociedade mais justa (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019). 

Ainda assim, é preciso reafirmar que esses exemplos, se existem, não são facilmente seguidos. Pelo contrário, a experiência ensina que a riqueza no mundo e no Brasil fica cada vez mais concentrada em poucas mãos, enquanto a pobreza voltou a crescer, o desemprego avulta sem parar e a fome já atinge, de alguma forma, quase a metade da nossa população. Zaqueu encontrou a salvação e libertação de sua casa a partir da chegada de Jesus no seu meio; e tirou as consequências dessa nova de grande alegria. E nós? E nossas comunidades?

Como um contraponto à narrativa de Zaqueu, trago um poema do pastor Lindolfo Weingärtner, publicado em 1981, no seu livro Prática da esperança (p. 9s), no qual ele, com sensibilidade e sabedoria, nos fala de um velho pescador e o que aprendeu dele:

Uma canoa à beira da laguna.
Um velho pescador,
os pés firmados na popa,
lançando a tarrafa.
Há meia hora
que o estou observando.
É um senhor tarrafeador:
em círculo perfeito
a rede cai sobre a água.

Ele espera,
enquanto a tarrafa afunda,
até que suas bordas,
pesadas de chumbo,
tocam o fundo lamacento.
Depois começa a puxar a corda,
cauteloso,
com mãos esperançosas,
ansiosas,
sentindo
se há vida na rede,
ou se vai ser outra esperança desfeita.

A rede está vazia.
Ele a sacode,
prepara o próximo lance.
Contei os arremessos:
Vinte e três vezes seguidas
ele lançou a tarrafa.
Vinte e três vezes
a tirou da água, vazia.

Ele sabe:
Há dias
em que é preciso lançar a rede
contrariando as expectativas,
contrariando o bom senso –
vinte vezes,
cinquenta vezes,
cem vezes.

Porque é preciso
lançar a rede,
ensaiando esperança,
praticando esperança –
porque deixar de lançá-la
seria o mesmo que desistir,
e desistir
seria igual a morrer.
Prática da esperança:
agradeço-te, velho pescador.
Teu trabalho não foi em vão.
Hoje eu necessitava desesperadamente
que alguém me desse
o recado
que me acabas de dar.
Eu o entendi.

Bibliografia

ADEHEYMO, Tokunboh (Ed.). Comentário bíblico africano. Trad. Heloisa Martins et al. São Paulo: Mundo cristão, 2010.
HOEFELMANN, Verner. A missão de Jesus e a missão da comunidade no Evangelho de Lucas e em Atos dos Apóstolos. Estudos Teológicos, v. 28, p. 71-98, 1988. Disponível em: http://periodicos.est.edu.br/index.php/estudos-teologicos/article/view/1144/1089
WEINGÄRTNER, Lindolfo. Prática da esperança. Poemas e meditações para refletir e orar. São Leopoldo: Sinodal, 1981.


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Autor(a): Roberto Ervino Zwetsch
Âmbito: IECLB
Área: Celebração / Nível: Celebração - Ano Eclesiástico / Subnível: Celebração - Ano Eclesiástico - Ciclo do Tempo Comum
Área: Governança / Nível: Governança - Rede de Recursos / Subnível: Governança-Rede de Recursos-Auxílios Homiléticos-Proclamar Libertação
Natureza do Domingo: Pentecostes
Perfil do Domingo: 21º Domingo após Pentecostes
Testamento: Novo / Livro: Lucas / Capitulo: 19 / Versículo Inicial: 1 / Versículo Final: 10
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 2021 / Volume: 46
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 68647

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Se reconhecemos as grandes e preciosas coisas que nos são dadas, logo se difunde, por meio do Espírito, em nossos corações, o amor, pelo qual agimos livres, alegres, onipotentes e vitoriosos sobre todas as tribulações, servos dos próximos e, assim mesmo, senhores de tudo.
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