Prédica: João 6.24-35
Leituras: Êxodo 16.2-4,9-15 e Efésios 4.1-16
Autor: Emílio Voigt
Data Litúrgica: 10º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 02/08/2015
Proclamar Libertação - Volume: XXXIX
Jesus, o pão da vida
1. Introdução
O texto proposto já foi abordado em outras cinco edições de Proclamar Libertação (XIX, p. 217; XXV, p. 254; XXXI, p. 213; XXXVI, p. 245). Além disso, o versículo 35 de Jo 6 foi trabalhado no PL VIII, p. 151. Há, portanto, um bom número de auxílios homiléticos com diferentes ênfases e perspectivas.
A leitura de Êx 16.2-4,9-15 está claramente relacionada com o texto da pregação. A história do maná é citada explicitamente no diálogo entre Jesus e o seu público. Por outro lado, a relação com Ef 4.1-16 não é direta ou evidente. Precisa ser construída. Pode-se estabelecer uma conexão entre as “obras que Deus
quer” (Jo 6.28) com aquilo que se postula em Ef 4.1-3. A graça é dom de Cristo (Ef 4.7), assim como o pão da vida é dado por Jesus. No contexto do Evangelho
de João, o pão da vida é interpretado sob o ponto de vista da Eucaristia, o que proporciona ligação com o corpo de Cristo, citado em Efésios.
A perícope para pregação faz parte de um bloco temático que trata do pão do céu ou pão da vida:
– Jo 6.1-15: alimentação da multidão com pães de cevada
– Jo 6.25-34: Deus dá o pão do céu / Jesus promete dar o pão do céu
– Jo 6.35-51: Jesus identifica-se com o pão do céu / pão da vida
– Jo 6.52-58: o pão do céu é experimentado na Eucaristia.
A apreciação desse contexto literário é importante para a interpretação e a preparação da prédica.
2. Exegese
V. 24-27 – A pergunta “quando chegaste” engloba também o questionamento pelo “como” Jesus veio parar em Cafarnaum. Afinal, os discípulos haviam partido sem ele. O leitor e a leitora do evangelho sabem muito bem o que aconteceu (v. 16-21). Jesus parece não estar muito entusiasmado com a vinda das pessoas a ele. Sua resposta, que não tem ligação com a pergunta, é uma crítica à motivação para procurá-lo. Aqui, a Nova Tradução na Linguagem de Hoje consegue transmitir com clareza a repreensão de Jesus. As pessoas não compreenderam o sinal que estava por trás da alimentação (6.1-15). Experimentaram somente a satisfação da necessidade material, não reconhecendo o caráter simbólico do ato.
No Evangelho de João, a palavra “sinal” é usada como sinônimo de milagre. O uso desse termo indica que o evangelista entende os milagres como espécie de parábolas. É algo que vai além do fato. Tem um sentido que precisa ser compreendido. Nem sempre as pessoas que veem o sinal (6.14) apreendem o seu significado. Sinal é uma representação simbólica da mensagem do evangelho e alcança o seu objetivo quando desperta a fé.
A repreensão pela incompreensão é seguida de uma convocação: trabalhar para alcançar a comida que subsiste para a vida eterna. O alimento material não é questionado ou desprezado, mas ele tem um limite. Consegue apenas manter a vida terrena, que também tem um “prazo de validade”. É preciso trabalhar para alcançar o alimento que perdura para a vida eterna. Antes que isso possa ser considerado conquista ou merecimento, a frase é complementada: o pão do céu será dado. O alimento para a vida eterna é um presente. O trabalho humano é somente atitude de recebimento. O selo tem significado de confirmação: Deus confirmou Jesus como aquele que dá a vida. Isso está implícito no título “filho da humanidade”, que, no Evangelho de João, está associado com a exaltação de Jesus a partir da cruz. A dádiva do pão para a vida eterna pressupõe a crucificação e a ressurreição. Esse é o selo. A interpretação eucarística nos v. 52-58 deixará mais evidente a conexão entre morte, ressurreição e pão da vida.
V. 28-29 – O pão para a vida eterna é fruto da ação divina. Mas o seu recebimento não é sinônimo de inércia nem atestado de indispensabilidade do agir humano. É impossível receber e ficar de braços cruzados. É dessa forma que a pergunta “o que precisamos fazer?” ganha sentido. Como resultado da dádiva, as pessoas entenderam que são desafiadas à ação e demonstram disposição para agir. Mas querem saber exatamente o que fazer. A expressão “obras de Deus” significa aquilo que Deus espera que seja feito. Em outras palavras, a pergunta era: que coisas precisamos fazer para cumprir a vontade de Deus? A resposta de Jesus vem no singular: a obra que Deus espera é a fé. Não se trata de contrapor a fé com as obras judaicas, mas de resumir, em um único aspecto, o que Deus espera das pessoas. Também os mandamentos foram concentrados em um enfoque: o amor (Mc 12.28-31). A partir do amor a Deus e ao próximo, todos os mandamentos são cumpridos. A partir da fé, surgem todas as obras que Deus espera. Fé, no Evangelho de João, é cristocêntrica: crer naquele que foi enviado por Deus. Não se diz explicitamente quem ele é, mas a réplica dos ouvintes demonstrará que entenderam a reivindicação de Jesus como o enviado.
V. 30-31 – A exigência de crer em Jesus é confrontada com a pergunta pela sua legitimidade: Que sinal fazes? Quais os teus feitos? Jesus havia indicado o que povo deveria fazer. Agora, esse povo quer saber o que ele faz. Se Jesus postula ser o enviado de Deus, as pessoas querem uma comprovação na forma de sinais. Especialmente no Evangelho de João, os sinais são determinantes para afirmar a legitimidade e motivar a fé em Jesus (Jo 2.23; 4.45-48; 6.2; 7.3,31; 20.30s). A alimentação que os antepassados receberam no deserto (Êx 16) serve como indicação de um sinal que o enviado de Deus poderia ou deveria fazer. O pedido demonstra que a alimentação com pães de cevada (Jo 6.1-15) não foi entendida como prova da messianidade de Jesus. Ela não serviu como sinal que conduzisse à fé nele. Justamente essa incompreensão acerca do que havia acontecido do outro lado do lago Genesaré foi o objetivo da crítica de Jesus no v. 26.
V. 32-33 – Jesus não aponta para qualquer sinal que tenha efetuado nem demonstra intenção de fazer algo para satisfazer a exigência de comprovação do seu envio. Em outra ocasião, diante de pedido semelhante, foi mais enfático, negando a possibilidade de oferecer evidências (Mt 12.38s). Na pergunta não havia referência a Moisés, mas Jesus faz questão de mencioná-lo em sua resposta. Com isso, contrapõe o maná – e também os pães de cevada – com o pão que desce do céu. Maná e pães da multiplicação são alimentos para a vida temporária. O verdadeiro pão do céu é dado por Deus e dá vida ao mundo. Aqui encontramos três afirmações importantes: 1) o pão é dado por Deus – não é fruto de merecimento; 2) o pão vai além do sustento corporal – concede vida que não é aniquilada com a morte; 3) o pão é dado ao mundo – não é oferta restrita a um grupo ou povo determinado.
V. 34-35 – Assim como a samaritana pediu pela água da vida (Jo 4.15), o público pede pelo pão da vida. E quer tê-lo sempre. No v. 27, Jesus identificara--se como aquele que daria o pão. Agora afirma ser o próprio pão da vida. É, ao mesmo tempo, doador e dádiva. Jesus não é como o pão: é o pão. A fórmula “eu sou” (ego eimi) é característica dos discursos jesuânicos no Evangelho de João. Ela pode estar numa forma absoluta, como em 4.26, ou vir acompanhada de um complemento:
– eu sou o pão da vida (6.35;41,48,51)
– eu sou a luz do mundo (8.12; 9.5)
– eu sou a porta (10.7,9)
– eu sou o bom pastor (10.11,14)
– eu sou a ressurreição e a vida (11.25)
– eu sou o caminho, e a verdade e a vida (14.6)
– eu sou a videira verdadeira (15.1,5).
A base para essa identificação de Jesus é a fórmula veterotestamentária da revelação divina, que tem em Êx 3.14 sua expressão central.
Comendo o maná ou o pão de cevada, as pessoas ficariam fartas por um certo tempo. Depois viriam a fome e a necessidade de novamente saciá-la. Quem experimentar do pão da vida jamais terá fome e sede. A afirmação “jamais terá fome e sede” está em conexão com o clamor “dá-nos sempre”. Indica também que é pão de outra substância para satisfazer outra necessidade. Se Jesus é o pão, quem quiser saciar-se com esse pão deve vir a ele. Vir a Jesus significava, no tempo dos evangelistas, vir à comunidade. E somente virá à comunidade aquela pessoa que crê em Jesus. Esse crer e vir a Jesus são consequência da iniciativa divina.
3. Meditação
Como impulsos para a pregação, apresento algumas reflexões e ideias que surgiram no confronto com o texto. Apresento-as em forma de tópicos, que não seguem necessariamente uma ordem ou lógica de pensamento:
– O pão era alimento básico no Antigo Oriente. Comer pão era o mesmo que fazer uma refeição (Lc 14.1). Pão é a comida, o alimento necessário para a subsistência. Seria o nosso popular feijão com arroz. Em tempos bíblicos, grande parte da população conseguia satisfazer as necessidades elementares a duras penas. Enquanto nossa preocupação pode ser o tipo de pão a ser colocado na mesa, a inquietude da época era a possibilidade de sequer ter algo para comer. Nesse sentido, a oração do Pai-nosso revela o desejo legítimo de ter assegurado hoje o pão que se consumirá amanhã. Também a alimentação da multidão com pães de cevada é indicação de que o provimento das necessidades básicas do ser humano é um propósito divino. Mas a vida que Deus almeja para o ser humano vai além da dimensão material. Por ser perecível, o alimento material pode apenas alimentar uma vida transitória. Além disso, a vida baseada nesse alimento carece de plenitude. Somente acrescida do pão do céu, a vida torna-se completa e perene. Pão material e pão do céu são os elementos necessários à vida plena.
– O pão material pode ser obtido de diferentes maneiras. Pode vir de forma honesta ou desleal, ser conquistado com esforço ou recebido gratuitamente. Embora esteja relacionado com sobrevivência e bem-estar pessoal, o pão não pode ser visto exclusivamente do ponto de vista individual. A visão individualista motiva a ganância, leva ao acúmulo, cria desigualdades. Gera o absurdo de pouca gente com muito pão e muita gente com pouco ou quase nada. O Pai-nosso leva--nos a compreender a obtenção do pão como questão coletiva. Pede-se em conjunto e para o conjunto. Pedir pelo pão nosso requer a solidariedade com quem não tem e o questionamento sobre as formas de conquista e divisão do pão.
– Se o pão material pode ser obtido de diferentes maneiras, o pão da vida plena é alcançado somente de um modo: recebendo-o como presente. Nada se pode fazer para merecer esse pão. A única coisa que se requer é a fé. E essa também não é obra humana. A fé não é criada por razão, vontade própria, esforço ou merecimento. É dom divino. O pão da vida é oferecido a todo o mundo. É importante acentuar essa dimensão inclusiva e universal. Nem pessoa, nem grupo,
nem denominação religiosa podem considerar-se detentoras exclusivas da graça de Deus. Tampouco podem definir quem deveria ou não recebê-la.
– A partir do momento em que recebemos a dádiva de Deus, temos um compromisso de ação. Fé não subsiste sem obras. A fé em ação manifesta-se, por exemplo, na prática da justiça e tolerância, na busca pela paz, na atitude de humildade, na disposição de perdoar e acolher, nos gestos de partilha e solidariedade. Ela tem sua expressão maior no amor, que não é apenas sentimento, mas ação que visa ao bem das pessoas. Mesmo que alguém tivesse uma fé capaz de transportar montes, se não tivesse amor, nada seria (1Co 13.2). Cabe-nos hoje perguntar bem concretamente: o que fazer para colocar em prática o amor?
– O texto para pregação é um convite para a reflexão sobre o sentido da vida e do trabalho. Para que vivemos e para que trabalhamos? Já se foi o tempo em que se trabalhava somente pela subsistência. Quer-se mais do que o básico, mais do que o essencial. Mas onde estará o limite do anseio por algo mais? Haveria uma medida máxima? Parece que não conseguimos nem ao menos definir a base mínima. A casa está mobiliada e o estômago cheio, mas ainda pode ocorrer um sentimento de vazio. O que preenche a vida e dá-lhe uma perspectiva?
– Jesus reivindicava ser o enviado de Deus, e as pessoas requisitaram uma prova. O pedido não questiona o poder de Deus, mas a legitimidade de quem se apresenta como seu enviado. Por isso não é exigência absurda. O absurdo acontece quando se procura determinar a presença de Deus através de sinais que atendem exclusivamente a interesses individuais. A busca por “bênçãos” torna-se aspiração egocêntrica e materialista. Denominações e grupos orientados por teologia da glória e prosperidade incorrem facilmente nesse erro. O maná no deserto e os sinais de Jesus estavam relacionados com necessidades essenciais, cuidado e preservação da vida. Sinal divino não se presta a exibicionismo, nem tem ligação com privilégio, supérfluo e acúmulo. Aliás, o acúmulo de maná cheirava mal e enchia de vermes. Faria bem refletir sobre os sinais com os quais associamos a ação de Deus hoje.
– O adágio popular “Não digas: desta água não beberei” relativiza a pretensão de certeza e segurança. É possível fazer planos e cercar-se de precauções, mas nem todas as coisas estão sob nosso controle. A afirmação de Jesus “jamais ter fome e sede” indica segurança absoluta porque se refere a algo que está sob o
controle de Deus. A promessa de Deus não depende do esforço das pessoas, nem está sujeita ao acaso ou imprevistos. Ainda assim, a dádiva do pão da vida não é um elixir mágico que soluciona tudo e previne qualquer problema. A existência humana não estará livre de adversidades, e a fé poderá ter seus momentos de aflição e questionamento. Por isso o vir a Cristo é um movimento constante para sempre de novo receber dele o pão que proporciona vida plena.
4. Imagens para a prédica
– É possível utilizar o pão (ou pães) de diferentes maneiras: distribuir pedaços à entrada do culto, colocar sob o altar ou no púlpito. Também levar água, que é citada no v. 35. Considerando que o pão, na Bíblia, é sinônimo de refeição, nada impede de utilizar feijão, arroz, verduras ou outros alimentos para essa simbologia.
– Pode-se fazer cartazes com os dizeres: Você tem fome de quê? Você tem sede de quê? (Canção “Comida”, do grupo musical Titãs), para refletir sobre o
pão que buscamos e o sentido que damos à vida.
5. Subsídios litúrgicos
– Utilizar hinos que abordam a temática do pão, tais como: HPD I 131, 144, 201; HPD II 326, 356, 358.
– Celebrar a Ceia do Senhor, ressaltando que nela a comunidade experimenta comunhão e alimenta-se do pão da vida.
Bibliografia
POKORNY, Petr; HECKEL, Ulrich. Einleitung in das Neue Testament. Seine Literatur und Theologie im Überblick. Tübingen: Mohr Siebeck, 2007.
WENGST, Klaus. Das Johannesevangelium. 1. Teilband: Kapitel 1-10. Stuttgart, Berlin, Köln: Verlag Kohlhammer, 2000.
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