Vida Celebrativa - Ano Eclesiástico


ID: 2654

Hebreus 9.15-17(26b-28)

Auxílio Homilético

14/04/1995

Prédica: Hebreus 9.15-17(26b-28)
Leituras: Oséias 6.1-6 e Lucas 23.(26-32) 33-49
Autor: Hans Alfred Trein
Data Litúrgica: Sexta-Feira Santa
Data da Pregação: 14/04/1995
Proclamar Libertação - Volume XX


1. Introdução

O modo de pensar dominante em todos os tempos prefere a riqueza à miséria, o prazer à dor, a satisfação à fome, o rir ao chorar, a alegria à tristeza, a abundância à carência, o sucesso ao fracasso, a sobrevida, mesmo que apenas vegetativa, à morte...

A civilização ocidental ainda potenciou essas oposições, dualizando-as com valor positivo e negativo, tirando-lhes a integridade dialética. Difunde a propa¬ganda enganosa — ultimamente incrementada por grande parte dos novos movimentos religiosos — de que hostilizando e suprimindo o negativo, a pessoa estará experimentando a felicidade absoluta.

Vivemos numa civilização cada vez mais incapaz do luto. Tenho observado que familiares e parentes querem livrar-se o mais rápido possível do defunto, querem esquecer, suprimir, fugir, ou, então, buscam refúgio em tranquilizantes e sedativos. Temos algumas pessoas portadoras de deficiência mental por terem sido sedadas para receber uma notícia de morte na família.

Por outro lado, os testemunhos de fé e as manifestações de solidariedade em favor da vida, na comunidade, concorrem com a associação no cemitério. Cruzes quebradas de cima dos túmulos mobilizam uma comunidade mais fácil e rapidamente do que a fome e a miséria de crianças e o empobrecimento de famílias-membros. Obviamente, os cemitérios indígenas também têm potenciado as lutas por terra, inclusive com o paradoxal empenho da própria vida. É um fenómeno antropológico. Contudo, a mera religiosidade humana não pode ser confundida com a fé cristã. Muitas comunidades, ditas cristãs, sobrevivem para realizar uma boa acomodação da morte.

Além disso, o processo litúrgico mais organizado e participado na comunidade se dá ao redor de morte e sepultamento. Há uma divisão de tarefas e iniciativas que dispensa qualquer regimento interno: vai desde avisar os parentes de longe, passando pela busca da documentação necessária, pela organização do velório, pelas providências no cemitério, e vai, em mínimos detalhes, até as pessoas responsáveis pelo fechamento do caixão. Cada pessoa parece salvi exatamente o que fazer.

Como lidamos com essa realidade aparentemente contraditória no trabalho pastoral? Aqui vai uma proposta para lidar com a tristeza e o luto relacionado a perdas, através do culto comunitário.

2. A morte de Jesus na comunidade

Com exceção das situações imprevistas de morte de seus membros, o calendário eclesiástico conduz a comunidade através de dois períodos do ano, fortemente marcados pelo tema da morte: Sexta-Feira Santa e Finados. São oportunidades mais objetivas para propiciar vazão à tristeza e ao luto. Seriam mal-usadas se, por medo ou receio de manifestações mais espontâneas, a tristeza e o luto fossem precipitadamente suprimidos com chavões batidos. A ressurreição fica numa esfera muito abstrata e barata, se não houver a experiência de profunda aflição e luto.

Com relação à morte de Jesus Cristo, em geral, encontrei nas comunidades a concepção de que ela era imprescindível. A gente causaria surpresa e talvez ale certa confusão, se afirmasse que Jesus esperava não precisar morrer (se for possível, passa de mim este cálice), que Deus não quis a morte de Jesus, que o sentimento de abandono de Jesus na cruz chega a revelar até certa decepção de Jesus com seu Deus, ou seja, que Jesus não sabia que ia ressuscitar.

Se, a partir da divindade de Jesus, a gente concluir que todo o episódio de cruz e ressurreição foi um jogo de cartas marcadas, um jogo de cena de quem j;í sabia de antemão como tudo ia terminar, penso que tanto a divindade como também a humanidade de Jesus ficam bagatelizadas, o sofrimento, o desespero c o profundo sentimento de solidão e abandono são indevidamente maquiados.

Com a morte de Jesus legitimada teologicamente é quase impossível ficar triste. Devemos nos perguntar se a legitimação teológica da morte de Jesus não acaba também legitimando todo sofrimento e morte ao nosso redor. É o conhecido Deus quis assim que a gente ouve nas situações mais gritantes de injustiça, imprudência. Será que é possível sustentar hoje que Deus é culpado ou, pelo menos, responsável pela morte de Jesus Cristo?

Por isso, proponho que o culto da Sexta-Feira da Paixão procure oportunizar o luto e a condolência pela morte do Filho de Deus encarnado, criando um ambiente propício para a vivência da tristeza.

3. Os textos do dia

Para a pregação está sugerido o texto de Hebreus 9.l5-17(26b-28). Nesta abordagem restrinjo-me aos vv. 15-17. Quanto aos vv. 26b-28, sugiro a leitura de PL XIX, p. 291 ss.

O autor vale-se da conhecida figura jurídica do testamento. A palavrinha grega, assim traduzida, é diatheke. Nas outras dez vezes que aparece no bloco dos capítulos 8 e 9, ela está traduzida por aliança, pois é assim que a LXX traduz o berít hebraico.

Essa formidável constatação exegética conduziu-me, por algum tempo, a um desvio interminável, um poço sem fundo. A única suspeita útil que perma¬nece é que o autor, usando a figura do testamento, faz aqui uma crítica à teologia da aliança. De fato, a rigor não se pode falar em aliança; primeiro, porque ela não se dá entre parceiros iguais e ocorre sem consulta prévia; segundo, porque acaba quando morre um parceiro! Em terceiro lugar, não houve alianças, mas sim uma renovada declaração de vontade da parte de Deus na relação com o seu povo. Deus é que deu o tom das alianças. Parece que o autor relê a figura problemática da aliança e propõe sua substituição pela figura do testamento.

O testamento, que, desde sempre, só entra em vigor com a morte do testador, afirma o início da herança e, no caso de Cristo, da herança eterna! As pessoas chamadas, a partir da morte do Cristo testador, herdam a sua condição de filhas de Deus, estão encarregadas da missão de Deus no mundo, estão capacitadas para isso através da fé.

A figura do testamento existe para explicar o inexplicável. O texto não permite a inferência de que Deus preparou a morte do testador para colocar os chamados na herança. As autoridades assassinas de Jesus é que não sabiam e nem imaginavam que, através de sua intenção de acabar com o movimento de Jesus, justamente desencadeariam a sua ampliação e difusão pelo mundo.

Oséias 6.1-6 é a primeira leitura bíblica para esse dia. O v. 1 consta como alternativa de versículo introdutório na tradicional liturgia de sepultamento.

O NT faz uma releitura cristológica do v. 2, onde Deus nos levantará ao terceiro dia (Lc 24.46; l Co 15.4), numa alusão direta à ressurreição de Cristo. Além disso, o NT faz Jesus atualizar a crítica aos sacrifícios do v. 6 (Mt 9.13; 12.7), em resposta a acusações de que se relaciona com pecadores e quebra o sábado.

A prática do sacrifício estava dando margem a muita hipocrisia. Com Jesus veio o sacrifício único, suficiente e de uma vez por todas (Hb 9.26-28). O testador morre só uma vez. A imagem do testador sublinha a qualidade da mediação cristológica.

Sugiro que Lucas 23.33-38,44-49 seja a leitura do Evangelho para esta celebração. Além de ouvir um texto já conhecido, proponho que seja também experimentado com outros sentidos. Penso no uso de vinagre c gelo, e no recurso de apagar ou diminuir a intensidade da luz, no caso de a celebração se realizar à noite.

A comunidade é solicitada a ouvir a leitura do Evangelho de olhos fecha dos. Dez jovens poderiam ser encarregados/as de passar com tijelinhas contendo vinagre, e depois gelo. A leitura do Evangelho é interrompida quando se chega na altura do vinagre, e os jovens passam as tijelinhas de vinagre perto dos narizes das pessoas; o gelo é encostado nas mãos das pessoas, enquanto a leitura fala da morte de Jesus, pois a morte é fria.

Talvez ainda se devesse pensar na leitura de alguns trechos do Evangelho que falam da tristeza das pessoas mais chegadas a Jesus.

4. A celebração da tristeza santa

Acho muito importante preparar o ambiente. Poderiam-se encarregar grupos na comunidade de providenciar panos pretos (nas paredes, nas janelas, nos bancos, nos antepêndios do altar e do púlpito), galhos secos em lugar de flores no altar, tocos secos, imagens de florestas devastadas... Eu pensaria com um grupo na comunidade sobre a conveniência de deixar as velas apagadas ou de acendê-las, de escurecer o ambiente com cortinas ou venezianas, ou, quem sabe, com aquele interruptor que se usa nos quartos das crianças para diminuir a intensidade da luz.

Penso que o silêncio repetido em diversos momentos da celebração poderia ajudar a criar um clima de melancolia. As orações e os cantos também devem pautar-se pelo lamento e pela melodia triste. E motivo de profunda tristeza um justo, como Jesus, ser assassinado e nós recebermos por herança o seu status de filho de Deus, por sua morte colocar em vigor o seu testamento.

5. Prédica

A celebração não deveria ter sua comunicação centrada na palavra. O texto de Hb 9.15-17 é problemático para servir de base à pregação. A imagem do testador que tem que morrer facilmente confirma a ideia de que Deus preparou Jesus para morrer por nós. No entanto, o testamento — e a morte de Jesus como a do testador — é uma imagem humana acessível, feita a posteriori, com a qual o autor de Hebreus procura explicar que Deus deu um sentido inesperado, sacrificai ao assassinato de Jesus. Sua morte ocorre na mesma hora em que no templo estão sendo carneados os cordeiros da páscoa.

Jesus pregou o evangelho com palavra e ação durante a sua vida e não através de sua morte. Ele não quis ser assassinado e, em sua verdadeira humanidade, não estava no comando dos acontecimentos. O Estado executou um inocente! Morrendo pela causa, Jesus mostrou a confiabilidade de seu testamento, uma fidedignidade de mais qualidade do que aquela dos sacerdotes que usavam sangue (alheio) de animais. A partir da morte do testador, abre-se um Novo Testamento, e a ecclesia entra no usufruto da herança eterna.

O centro da celebração deveria ser a Santa Ceia. A oração eucarística deveria referir-se reiteradamente à tristeza, à solidão, aos sentimentos de abandono e às perdas nesta vida (prefácio e anamnese) e pedir que o Espírito Santo nos permita, através da Santa Ceia, experimentar com Jesus a sua morte, testamento de fidelidade. Talvez as velas pudessem ser acesas neste momento, para marcar a presença real de Cristo.

E claro que Deus reafirmou o evangelho da vida através da ressurreição, demonstrando assim a vitória sobre os poderes da morte; mas isto é o evangelho da Páscoa e não da Sexta-Feira Santa!


 


Autor(a): Hans Alfred Trein
Âmbito: IECLB
Área: Celebração / Nível: Celebração - Ano Eclesiástico / Subnível: Celebração - Ano Eclesiástico - Ciclo da Páscoa
Área: Governança / Nível: Governança - Rede de Recursos / Subnível: Governança-Rede de Recursos-Auxílios Homiléticos-Proclamar Libertação
Natureza do Domingo: Sexta da Paixão

Testamento: Novo / Livro: Hebreus / Capitulo: 9 / Versículo Inicial: 15 / Versículo Final: 17
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1994 / Volume: 20
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 13295

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