Vida Celebrativa - Ano Eclesiástico


ID: 2654

Gênesis 12.1-4

Auxílio Homilético

07/03/1993

Prédica: Gênesis 12.1-4
Leituras: Romanos 4.1-5,13-17 e João 4.5-26
Autor: Júlio Zabatiero
Data Litúrgica: 2º Domingo da Quaresma
Data da Pregação: 07/03/1993
Proclamar Libertação - Volume: XVIII

1. Introdução

O apóstolo Paulo afirma que Abraão é o pai, na fé, dos cristãos (Rm 4.1-17). Com isto, ele nos faz procurar em Abraão um modelo de fé, alguém que nos dê um exemplo de vida com Deus. O texto de nossa meditação, Gn 12.1-4, é excelente ponto de partida para uma reflexão sobre a fé.

Entretanto, é preciso que nos disponhamos a ouvir este texto. De tão conhecido, muitas vezes, não o ouvimos, mas lemos nele aquilo que já conhecemos a respeito da fé, da bênção de Deus, da terra da promessa. Muitas vezes, lemos este texto com noções já definidas e definitivas a respeito da fé que nos justifica. Em outras palavras, lemos Gn 12.1-4 como se fosse um texto paulino.

2. Contexto

Para perceber a novidade do texto, será bom conversarmos um pouco a respei¬to da época de Abraão. A data exata de sua vida não sabemos. Alguns a colocam entre os séculos XVII e XIX a.C. Outros, por volta dos séculos XIV e XV. É um detalhe importante, mas não capaz de modificar a nossa compreensão do texto, pois as condições históricas do Antigo Oriente não mudaram o bastante para alterar a leitura do texto.

A organização social dominante por todo o Antigo Oriente era a das cidades-estado, mesmo em países mais desenvolvidos como o Egito e a Mesopotâmia, por exemplo. Naquele tipo de organização, as cidades-estado eram compostas do palácio, do templo, da guarnição militar e da população civil ligada a essas instituições. A cidade não produzia bens primários. Dependia do campo para a sua sobrevivência.

O tributo era a forma mediante a qual o campo supria as cidades de alimento e bens para o comércio.
Normalmente, porém, as cidades-estado extraíam tributo excessivo do produto do campo, o que gerava miséria, insatisfação e desespero entre os camponeses. De forma simplificada, é certo, podemos dizer que a relação entre cidade-estado e campo, nos tempos de Abraão, era conflitiva. A cidade explorava o campo. A vida da cidade dependia da não-vida do campesinato.

Tal situação era, por sua vez, legitimada mediante o recurso à religião. Cada cidade possuía seu deus, o qual — cria-se — era responsável pela fertilidade no campo e pela proteção contra os inimigos estrangeiros. As cidades utilizavam-se da religião para manter a credibilidade do tributo e evitar revoltas significativas dos camponeses espoliados. A obediência ao rei era meio de garantia da ação benéfica dos deuses.

É neste contexto que encontramos a vocação de Abraão. Certamente, o texto de Gn 12.1-4 provém de tempos mais recentes. Já é do período em que há reis em Israel. Não foi escrito antes do século X a.C., embora recolha elementos traditivos bem mais antigos. Sua redação acontece em tempos nos quais Israel se organiza como monarquia tributária, aos moldes das cidades-estado e impérios do Antigo Oriente. Em tal situação, a memória dos pais e mães do povo novamente se faz necessária e se apresenta revolucionária, como resgate da fé em Javé, que libertara o povo hebreu do Egito.

A fé se encontra ameaçada. Como nos países vizinhos, está sendo usada para legitimar o tributo e a dominação do campo pelo Estado monárquico urbano. A memória do êxodo está mesclada com o sonho do Estado em ser grande e vitorioso. O projeto de Deus, de criar um povo solidário e justo, está ameaçado pela desigualdade e injustiça do sistema tributário. Contra tal apropriação da fé levantam-se vozes proféticas. Aqui e ali, o campesinato resiste e rejeita a manipulação da fé em Javé; abomina o aprisionamento de Deus pelas mãos do Estado.

3. Fé abraâmica

A memória do pai Abraão assume contornos críticos. Torna-se fonte de resistência e purificação da fé. Aquele que, no passado, superou a dominação urbano-estatal é modelo de fé e resistência para o presente. A partir destas considerações, destaco três aspectos fundamentais da fé abraâmica em nosso texto.

Primeiro, é fé obediente a Deus. Javé fala a Abraão, e este age em obediente resposta à palavra divina. No v. l, o texto anuncia a fala de Deus. No 4, vem a obediente resposta de Abraão, conforme Javé lhe dissera. Ressalta a inexistência de intermediários institucionais da fala de Deus. No regime tributarista, a religião é monopolizada pelo Estado, a fim de legitimar a espoliação dos produtores. A fé abraâmica não precisa de intermediários. É fé pessoal, para a qual Deus se manifesta pessoal e diretamente. Exige atenção e obediência a Deus, e não à institucionalização da fé na religião estatal.
Na teologia paulina, Jesus Cristo é o obediente por excelência. Mediante a sua obediência, abre acesso à obediência direta a Deus por parte de homens e mulheres. Jesus desinstitucionaliza a fé cristalizada no Judaísmo de sua época e a reveste novamente de seu caráter pessoal. Fé, então, significa obedecer a Deus acima de tudo e todos. Fé é obedecer ao único Senhor, que destrona os soberanos humanos.

Segundo, é fé que assume riscos. Abraão, ao obedecer a Deus, corta os vínculos de segurança: sua terra, sua parentela, casa de seus pais (V. 1). A possibilidade de uma nova vida, sem a espoliação da cidade-estado, sem a idolatria dos deuses estatais, implica riscos. A fé em Javé, o Deus que liberta e cria história, não tem um futuro fechado, mas um projeto aberto e dinâmico. Vai para a terra que eu te mostrarei (v. 1b).

Os hebreus libertos do Egito também receberam um futuro aberto. A terra da promessa já estava ocupada. Futuro aberto e arriscado. O Filho de Deus, encarnado, assume todos os riscos da vida humana, inclusive o pecado — mas os supera, não se tornando pecador, porém sacrifício pelo pecado em nosso favor (cf. 2 Co 5.21). À mulher samaritana Jesus afirma que a verdadeira adoração não se define pelo espaço sagrado dos templos, mas pela obediência à verdade e pela fidelidade ao Espírito — que sopra onde quer.

Terceiro, é f é comprometida. Abraão, o obediente, recebe a tarefa de ser instrumento da bênção de Javé (w. 2-3). Nestes dois versos concentra-se um grande volume de afirmações teológicas, com vistas a explicitar a bênção de Deus. É aqui, também, que as marcas da redação do livro de Génesis deixam marcas mais fortes. Vejamos, brevemente, a estrutura destes versos:

a farei de ti uma grande nação
     b abençoar-te-ei
a' engrandecerei teu nome
     C sê tu bênção
d abençoarei os que te abençoarem
     e amaldiçoarei os que te desprezarem
d em ti serão benditos todos os clãs da terra

Repare na linguagem das afirmações a e a': é linguagem relativa à nação, ao Estado monárquico. Por meio dela, a bênção de Javé é entendida como bênção para a nação Israel e seus reis. Já a linguagem das afirmações em d e d' refere-se ao ambiente pré-estatal, ambiente do tribalismo, no qual a família trabalhadora é a base social. Tribalismo no qual as famílias/clãs assumem as decisões políticas e econômicas, não necessitando de uma instituição superior que dela se assenhoreie, explorando-a para manter-se em funcionamento.

Como trabalhar com essas duas linguagens distintas? Colocando-as sob o enfoque abraâmico. Nação e nome deverão ser lidos a partir de em ti e clãs da terra. Assim, o texto recupera sua dimensão crítica. A memória de Abraão retoma seu caráter contestador da monarquia israelita tributária e nos encaminha, mais uma vez, para o projeto da solidariedade familiar (tribal). Igualmente, a estrutura dos versos nos faz interpretá-los a partir de seu centro: C Sê tu bênção. A nação-estado monárquica não pretendia ser bênção, mas império. A nação tribal-familiar não pretende ser império, mas bênção para todas as famílias (clãs) da terra.

Bênção, aqui e na maior parte dos textos do AT, tem a ver com a vida, solidariedade, justiça e paz. A bênção é característica da ação de Deus, que cria bem-estar (shalom) e vida com dignidade e sentido. Nas promessas patriarcais (Gn 12.2s.; 17.16,20; 22.17; 26.3,24 e 28.14), o Deus que sustenta e acrescenta a vida de seu povo no país em que está instalado não é distinto daquele que salvou Israel do Egito (G.A. Keller e outro, Bendecir, in: Diccionário Teológico Manual del Antiguo Testamento, vol. I, ed. E. JENNI e C. WESTERMANN, col. 531, Ediciones Sígueme, Salamanca).

A bênção deve ser entendida em oposição à maldição concreta na história do povo. Tanto para a época de Abraão como para a época da monarquia israelita, a maldição se expressava concretamente na forma do tributo e do serviço prestado ao Estado, legitimados pela religião oficial da nação. A bênção de Deus significava, portanto, a superação de uma organização social injusta e opressora, à qual deveria seguir uma nova forma de organização social, baseada nos moldes da aliança entre Deus e o povo, cujo fundamento era a libertação do Egito.

É interessante notar que Paulo, na Epístola aos Gálatas (3.26-29), sintetiza a sua argumentação sobre a salvação em Cristo (relendo as promessas patriarcais) com a afirmação da igualdade em Cristo. Em outras palavras, na comunidade cristã, as divisões criadas por um sistema político-econômico injusto e opressor deverão ser abolidas. Este é o projeto missionário da comunidade cristã paulina. A promessa de Deus, em Cristo, concretiza-se na formação de comunidades que oferecem uma alternativa de vida aos habitantes explorados pelo Império Romano. Alternativa que nega os valores afirmados pelo Império e cria liberdade na comunidade, isto é, no serviço amoroso e solidário ao necessitado.

Conseqüentemente, assumir a fé de Abraão é assumir a tarefa de ser bênção para todos os que necessitam da shalom produzida pela concretização histórica do projeto libertador de Javé. Jesus, em seu tempo, reafirmou e ampliou esta concepção, no que foi seguido pelo apóstolo Paulo, que transportou a compreensão da fé, criada em um mundo rural, para a sociedade urbana do Império Romano.

4. Enfoques

Cabe-nos, por fim, refletir sobre os riscos e a concretização da fé em nosso momento histórico. Tanto na liturgia quanto no sermão deveriam ser explicitados os inimigos da fé abraâmica hoje. Por exemplo, a concentração de terras, que impede a muitos o acesso à vida digna, baseada no trabalho livre e criativo em sua propriedade; também a ideologia da segurança econômica que o mercado oferece aos consumidores. Poder-se-ia questionar o consumismo como ideologia que elimina os riscos da fé, pois faz basear a segurança em bens concretos e não-repartidos. A acumulação — seja do capital ou dos bens consumíveis — nega a solidariedade da fé e impede que se assuma a tarefa de ser bênção.

A partir da explicitação de um, ou mais, dos obstáculos à fé abraâmica, convém debater e celebrar formas de superação dos mesmos, mediante o compromisso obediente, arriscado e comprometido da fé em Jesus Cristo. Cânticos seriam bastante úteis nesta altura, e o cancioneiro da Pastoral Popular Luterana, por exemplo, apresenta várias canções que expressam a fé abraâmica de muitos cristãos na atualidade.

A liturgia da confissão poderia enfocar os aspectos da vida de nossa comunidade que estejam negando a fé abraâmica. Poderíamos destacar o comodismo de nossa vida religiosa e o dualismo espírito-matéria que permeia nosso culto e vida cristãos. Símbolos desse comodismo e dualismo poderiam ser trazidos a fim de visualizar o pecado confessado e desafiar à renovação da fé em moldes mais coerentes com a mensagem bíblica.

5. Bibliografia

SCHWANTES, M. A Família de Sara e Abraão. Sinodal/Vozes, São Leopoldo/Petrópolis, 1986.
JENNI, E. e WESTERMANN, C. (eds.) Diccionário Teológico Manual del Antiguo Testamento. Vol. I e II, Sígueme, Salamanca, 1984.
BRUEGEMANN, W. A Terra na Bíblia: Dom, Promessa, Desafio. Paulinas, São Paulo, 1988.
GOTTWALD, N. K. As Tribos de Yahweh. Paulinas, São Paulo, 1986 (especialmente capítulos 27-30 sobre a organização social do tribalismo israelita).


Autor(a): Júlio Zabatiero
Âmbito: IECLB
Área: Celebração / Nível: Celebração - Ano Eclesiástico / Subnível: Celebração - Ano Eclesiástico - Ciclo da Páscoa
Área: Governança / Nível: Governança - Rede de Recursos / Subnível: Governança-Rede de Recursos-Auxílios Homiléticos-Proclamar Libertação
Natureza do Domingo: Quaresma
Perfil do Domingo: 2º Domingo na Quaresma
Testamento: Antigo / Livro: Gênesis / Capitulo: 12 / Versículo Inicial: 1 / Versículo Final: 4
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1992 / Volume: 18
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 13543

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