Vida Celebrativa - Ano Eclesiástico


ID: 2654

Gênesis 1.1-5

Auxílio Homilético

10/01/2021

 

Prédica: Gênesis 1.1-5
Leituras: Marcos 1.4-11 e Atos 19.1-7
Autoria: Léo Zeno Konzen
Data Litúrgica: 1° Domingo após Epifania (Batismo do Senhor)
Data da Pregação: 10/01/2021
Proclamar Libertação - Volume: XLV

Águas de vida e teologias de morte

1. Introdução

Estamos entrando numa nova etapa do ano litúrgico, após a conclusão do ciclo de Advento e Natal. Chegamos ao tempo comum que, brincando, poderíamos chamar de tempo do “feijão com arroz”. Esse novo tempo começa com o batismo do Senhor. Jesus nos é apresentado como novo Adão, que vai iniciar uma nova história ou uma nova fase da história da salvação. Com a luz e a força do Espírito que desce sobre ele ao sair das águas, ele está pronto para iniciar a pregação da mensagem que o Pai lhe confiou.

As águas do batismo lembram aquelas das origens, no primeiro relato da criação. Lá, sobre as águas ainda desorganizadas, já pousava o Espírito de Deus. É a criação repleta da força de vida que se manifestará mais e mais, a cada novo dia da criação.

Em Éfeso, discípulos já encaminhados são enriquecidos com o batismo em nome do Senhor Jesus e também recebem o Espírito Santo. A teologia da criação e o movimento de João Batista, ao qual Jesus se filia pelo batismo, situam-se em contextos de periferia: a primeira, no exílio babilônico, o segundo em relação ao Templo e à sinagoga. Ambos enfrentam teologias de morte, embora se proclamem de origem divina. Daí nosso título: águas de vida e teologias de morte.

2. Exegese

Olhar no todo, foco na parte: assim poderíamos traduzir um aspecto importante da metodologia de estudo dos textos bíblicos que procuraremos colocar em prática também aqui.

Não custa reafirmar que a Bíblia não é um manual de história e que o texto de pregação não é parte de um livro de ciências naturais. A Bíblia é memória de uma experiência de fé vivida dentro de uma longa história. Portanto nada de fundamentalismos ou polêmicas com as ciências modernas!

Dentro desse grande memorial há uma enorme diversidade. Não se perde, porém, a unidade fundamental. De Gênesis a Apocalipse ouve-se a mesma grande melodia, em movimentos distintos. A melodia começa obviamente no primeiro livro, o Gênesis. Não foi o primeiro a ser escrito, mas é o que dá entrada à grande casa construída por nossos irmãos e irmãs na fé. Saber de onde viemos faz parte de nossa identidade. No Gênesis narram-se as “origens” de tudo, tanto do próprio universo quanto da humanidade e do “povo de Deus”.

Os primeiros 11 capítulos tratam das origens mais remotas. Falam da criação do mundo e das vicissitudes da humanidade antes do início da lenta constituição do povo específico da Bíblia. Mas a história e as questões relevantes desse povo, vividas mais adiante, encontram-se qual tempero nesses relatos aparentemente tão distantes. Depois desses 11 capítulos segue um longo bloco que narra histórias dos patriarcas da fé do povo da Bíblia: Abraão, Isaque e Jacó e, finalmente e em especial, José.

O primeiro relato da criação, com o qual inicia Gênesis 1-11, introduz na fé e na teologia bíblicas. Não se trata da fé que existia no começo, mas de um mosaico que reflete momentos diferentes da longa história. A composição desse relato é complexa. Integra contribuições de diversos momentos. Mas o chão que fez maturar esse belo fruto foi certamente o exílio (século VI a.C.) e os produtores principais foram sacerdotes do Templo, que tinham sido obrigados a viver, no exílio, a experiência da humilhação e da luta por liberdade e vida.

Esses nobres exilados perceberam que o sofrimento a que estavam submetidos era justificado e reforçado por certa teologia babilônica. Sua fé não combinava com essa teologia idolátrica e diabólica. Nessa teologia babilônica, sol, lua, luz e outras coisas eram divindades! Era preciso mantê-las favoráveis para que houvesse colheitas, chuvas, estações, estabilidade política. Ameaças de dilúvios não faltavam!

Nossos inconformados sacerdotes começaram a construir uma teologia inteligente que mantivesse o povo na fé e esperança no Deus que havia criado o seu povo e o havia libertado da escravidão do Egito. Aproveitaram-se de relatos babilônicos, transformaram-nos e criaram novos e próprios. Uma teologia em forma de relatos, de narrativas!

O primeiro relato da criação mostra Deus (o Deus do povo de Deus!) criando o universo, separando partes e colocando tudo em ordem. Beleza! Deus viu que tudo era muito bom. Os babilônios estavam equivocados. As coisas não dependiam do culto oficial do império, nem eram determinadas por divindades como o sol e a lua. Essas coisas eram criaturas de Deus e lhe prestavam serviço!

Nesse contexto, compreende-se também o pequeno texto no qual focamos nossa atenção. Nos primeiros cinco versículos do Gênesis, relata-se o primeiro “dia” do “trabalho” divino: “no princípio”, ele “cria” “o céu e a terra” e também a “luz”, separando-a das trevas. Antes mesmo de criar a luz, o “Espírito de Deus pairava sobre as águas”.

“No princípio” (v. 1) expressa que nada havia antes, nenhuma das “divindades” dos babilônios ou outras coisas superiores ou anteriores. Deus está na origem. Ele “cria”, faz surgir e coloca em ordem as coisas. E não precisa fazer nenhum gesto mágico: ele cria por sua simples palavra. Palavra cujo valor eles foram descobrindo mais e mais no exílio. Palavra criadora!

É importante a afirmação do texto sobre o Espírito de Deus: ele “paira” sobre as águas. Nada mais se diz sobre ele no primeiro relato da criação depois disso. Mas não é pouco! Tem-se a impressão que ele está aí como possibilidade de vida. A partir dessa possibilidade, a palavra de Deus “acorda”  aquilo que está latente no céu e na terra, com seu deserto e vazio, com suas trevas e seu abismo. A palavra de Deus vai despertar essas possibilidades e vai fazer surgir estruturas de estabilidade, luminares, animais, plantas e o ser humano – mulher e homem.

Primeira ordem da palavra de Deus é “faça-se a luz”. E a luz se fez, antes mesmo das conhecidas e veneradas divindades tidas como fontes da luz: o sol, a lua e as estrelas. E Deus separa a luz das trevas. A teologia babilônica começa a cair por terra!

E a revolucionária teologia daqueles humilhados e sofridos sacerdotes proclama em alto e bom som: Deus viu que a luz era boa! E dá nome às novas realidades: chama de “dia” a luz, e de “noite” as trevas. Ainda nem há sol, nem lua, nem estrelas!

E, assim, “houve uma tarde e uma manhã: o primeiro dia”. Começa o tempo organizado e estável. No prolongamento da narrativa, há outros dias. No final, no sétimo dia, o dia do descanso de Deus. Dia abençoado e santificado por Deus! Memória perigosa e subversiva no contexto do exílio, onde não havia descanso semanal nem feriados para os exilados. Um direito sagrado do povo, mesmo que ainda não plenamente possível!

3. Meditação

Além do contexto bíblico de cada texto, levamos em conta o contexto litúrgico em que ele é lido e meditado. O texto de Gênesis que tentamos compreender um pouco melhor na parte anterior é proclamado na celebração do 1º Domingo após a Epifania, quando se celebra o batismo do Senhor. O evangelho narra esse acontecimento da vida de nosso Senhor. Jesus foi batizado por João Batista. E a leitura de Atos dos Apóstolos (19.1-7) também fala de batismo, fazendo uma importante diferenciação entre o batismo de João e aquele em nome de Jesus.

Nas três leituras aparece o Espírito de Deus, Espírito Santo. Vamos nos aproximar desse elemento comum para entender melhor os versículos iniciais da Bíblia, o batismo pregado e ministrado por João, o batismo de Jesus e suas implicações, sem deixar de perguntar-nos pelo que isso tudo representa para o nosso batismo.

Em Gênesis, como referimos acima, diz-se que o Espírito de Deus pairava sobre as águas. No evangelho (Mc 1.4-11), afirma-se que, ao Jesus sair da água, o céu se rompeu e o Espírito Santo desceu sobre ele. Em Atos, destaca-se que, ao serem batizados em nome de Jesus, aqueles irmãos e irmãs de Éfeso foram enriquecidos com o dom do Espírito Santo que desceu sobre eles.

Em todas essas situações, o Espírito produziu vida e missão. Em Gênesis, com o Espírito pairando sobre as águas, toda a criação pôde desabrochar para sua existência, organização e missão. No evangelho, pelas águas do batismo, o Espírito como que consagrou Jesus para sua grande e desafiadora missão. Começava aí uma nova criação. Jesus é um novo Adão, no qual e pelo qual a humanidade se renova pela força do Espírito. Nos discípulos em Éfeso, não se explicitam os efeitos do Espírito, mas pode-se intuir que produziu novas criaturas que nascem da videira que é Jesus.

É quase espontânea a lembrança da missão de Jesus proclamada na sinagoga de Nazaré por meio do conhecido texto de Isaías: O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para pregar boas-novas aos pobres. Ele me enviou para proclamar liberdade aos presos e recuperação da vista aos cegos, para libertar os oprimidos (Lc 4.18). É assim que Lucas introduz a missão de Jesus.

Não podemos esquecer que os ambientes em que se forma essa teologia do Espírito são de periferia e de contestação de práticas e teologias vigentes. Vimos isso na análise do texto de Gênesis. Lá, o ambiente era de contestação da teologia babilônica que justificava e promovia uma sociedade imperialista e negadora de direitos fundamentais dos exilados e outros oprimidos. No batismo de Jesus, convém lembrar que se trata do batismo ministrado por João e que era um movimento também de periferia, fora e longe dos ambientes oficiais do Templo de Jerusalém ou das sinagogas dos fariseus. É em ambientes semelhantes a esses que se faz, também em nossos tempos, a experiência da presença e da manifestação do Espírito de Deus, do Espírito Santo.

O que ocorre com Jesus, após ter-se inserido no movimento popular e profético de João por meio do batismo, ajuda a iluminar a compreensão do próprio texto do Gênesis: com a luz e a força do Espírito, Jesus parte para a missão de proclamar a Boa-Nova do reino de Deus. Explicita-se, assim, de modo mais claro, a força criadora e missionária do Espírito que já pairava sobre as águas, lá no princípio. Fica claro, também, que o Espírito que animou a caminhada missionária de Jesus não é algo estranho ao mundo criado por Deus. É como diz o Salmo 104.30: Envias o teu Espírito, e são criados, e assim renovas a face da terra.

Inevitavelmente, o Espírito destacado na criação, no batismo de Jesus e naquele dos discípulos de Éfeso evoca o espírito profético. No Antigo Testamento, os profetas eram profetas pela luz e força do Espírito que tomava conta deles. No Novo, não é diferente. O próprio João Batista é profeta, e mais do que um profeta, na avaliação de Jesus. E Jesus, então, não só é pleno do Espírito como também o transmite aos seus.

Finalmente, o batismo de Jesus nos remete também ao nosso batismo, recebido em nome da Trindade Santa. Para além das simples convenções sociais, esse batismo celebra nosso mergulho no projeto salvífico de Deus manifestado de modo mais evidente na vida de Jesus de Nazaré. O batismo nos associa a ele, a seu seguimento, fazendo-nos experimentar a graça e o compromisso desse enxerto na videira cultivada pelo Pai.

4. Imagens para a prédica

Pode-se evocar a observação e admiração da natureza, de noite ou de dia, para despertar a grandeza e a beleza da criação de Deus. O Salmo 8 pode ajudar.

A força de vida presente na criação pode servir como ponte para falar do Espírito de Deus que “pairava sobre as águas” e possibilitou o desenvolvimento das mais diversas formas de vida, com a luz e a força da palavra de Deus.

As águas sobre as quais pairava o Espírito de Deus são também uma bela imagem que nos põe em contato com o batismo de Jesus e com o nosso batismo. Águas são a base da vida, mas também podem matar. O batismo é também uma morte, como bem sabemos. Mas sem elas não há vida. Podem fazer nascer para a missão, como a de Jesus.

Se a água pode matar, isso de certa maneira é necessário. A teologia da criação (Gênesis) e o batismo de Jesus situam-se em contextos de afirmação de coisas e causas que se opunham às teologias dominantes. A adesão de Jesus ao batismo pregado por João foi nitidamente uma opção pela periferia e, consequentemente, um questionamento às teologias e práticas veiculadas pelo Templo de Jerusalém, dominado pelos sacerdotes saduceus, e pelas sinagogas, dominadas pelos fariseus. E a teologia da criação foi proposta (ou, quem sabe, renovada e aprofundada) pelos sacerdotes exilados, empobrecidos e humilhados no exílio, como alternativa de resistência e libertação dos judeus no exílio da Babilônia.

Águas que geram vida e vencem a morte!

5. Subsídios litúrgicos

Um recurso visual pode ser um recipiente com água posto num lugar bem visível para a comunidade. Talvez possa ajudar também colocar uma planta bem viçosa ao lado da água.

Hinos que cantam a grandeza e a beleza da criação também são bem-vindos no culto. Também hinos que tematizam a ação do Espírito Santo e a missão de Jesus (e nossa) celebrada no batismo.

Nos pedidos de perdão pode-se incluir o tema da destruição da criação e das consequências trágicas que ela provoca. Nada impede que se peça também perdão por aceitarmos teologias que abençoam a violência contra os pobres e tentam extinguir o Espírito de Deus!

Cabe ainda a oração pela fidelidade corajosa e perseverante na vivência do nosso batismo.

Bibliografia

SCHWANTES, Milton. Gênesis 1-11: Vida, Comunidade e Bíblia. São Leopoldo: CEBI, 2007.
WESTERMANN, Claus. Genesi: Commentario. Milano: Piemme, 1989.


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Autor(a): Léo Zeno Konzen
Âmbito: IECLB
Área: Governança / Nível: Governança - Rede de Recursos / Subnível: Governança-Rede de Recursos-Auxílios Homiléticos-Proclamar Libertação
Área: Celebração / Nível: Celebração - Ano Eclesiástico / Subnível: Celebração - Ano Eclesiástico - Ciclo do Natal
Natureza do Domingo: Epifania
Perfil do Domingo: 1º Domingo após Epifania
Testamento: Antigo / Livro: Gênesis / Capitulo: 1 / Versículo Inicial: 1 / Versículo Final: 5
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 2020 / Volume: 45
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 64829

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Há algo muito vivo, atuante, efetivo e poderoso na fé, a ponto de não ser possível que ela cesse de praticar o bem. Ela também não pergunta se há boas ações a fazer e, sim, antes que surja a pergunta, ela já as realizou e sempre está a realizar.
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