Vida Celebrativa - Ano Eclesiástico


ID: 2654

Ezequiel 37.1-14

21/03/1999

Prédica: Ezequiel 37.1-14
Leituras: Romanos 8.11-17 e João 11.47-53
Autor: Martin N. Dreher
Data Litúrgica: 5º Domingo da Quaresma
Data da Pregação: 31/03/1999
Proclamar Libertação - Volume: XXIV
Tema:

1. Caminhando ao longo do texto

Walther Zimmerli dá aos 14 primeiros versículos do cap. 37 de Ezequiel o título: A ressurreição do Israel morto. Neles, temos nos vv. 1-10 um relato de visão que adquire a forma de drama, seguido nos vv. 11-14 de um debate. Com essa divisão, fica evidente que o profeta não só vê; ele participa da visão. Não julgamos apropriada a sugestão de perícope feita pelo Lecionário para o presente domingo: Ez 37.1-3,11-14. Versículos importantes são deixados de lado.

A visão é introduzida no v. l com um pretérito perfeito, senti. O profeta sente a mão de Deus, que o arrebata e o leva ao vale, que é conhecido de Ezequiel, mas que se encontra em situação assustadora: terra coberta de ossos. A observação detalhada mostra que há muitos ossos, muitos mesmo, todos secos (v. 2).

V. 3: A tradição israelita desconhece, nos dias de Ezequiel, a esperança de uma ressurreição generalizada dos mortos. Mas também se desconhece o que tudo é possível para Deus.

V. 4: Parece, inicialmente, que os ossos são os objetos acerca dos quais deve ser profetizada, dita a palavra de Deus. Depois, a chamada de atenção evidencia que a palavra está dirigida diretamente a eles, aos ossos.

O v. 5 nos traz um acento especial no eu. O verso lembra Gn 2.7: ' 'Então, do pó da terra, o Deus Eterno formou o ser humano. Ele soprou no seu nariz uma respiração de vida, e assim esse ser se tornou um ser vivo.

V. 6: Deus é o sujeito da frase e acentua que criação e ressurreição são ato divino. Ato divino é o fazer viver e o fazer viver de novo.

V. 7: Simultaneamente com o discurso profético e em correspondência a ele, as partes dos esqueletos se recompõem, fazendo ruído.

V. 8: em antropologia dicotômica, a recomposição do ser humano acontece em duas fases, de modo semelhante a Gn 2.7: (...) formou o ser humano (...) soprou no seu nariz uma respiração de vida, e assim esse ser se tornou um ser vivo. Falta, porém, ruah, o espírito.

V. 9: Não fala do Espírito de Javé, mas do espírito da vida que sopra, ao mesmo tempo, de todos os pontos cardeais. Não se trata de um fenômeno meteorológico! Só aqui, nestes versículos, nos é revelado que se trata de corpos que foram mortos; talvez de pessoas assassinadas. Observe-se que já não se fala de esqueletos ou de ossos, mas de corpos!

V. 10: O que Deus fala, por intermédio do profeta, acontece. Cuide-se para não tirar da expressão exército mais do que ela aqui possibilita. Exército não significa mais do que multidão.

V. 11: A partir do v. 11 nos vem interpretação: os que vivem no exílio babilônico são pessoas sem esperança. É deles que vem a expressão: Estamos secos, sem esperança, fomos podados. Pior: a expressão é estendida a toda a casa de Israel. Este povo, formado de 12 tribos, há muito não mais existe. Exilados de hoje e o povo de outrora: tudo seco, sem esperança, podado.

Vv. 12-13a: Na ação salvadora, Javé se dá a conhecer. Ele tira das sepulturas (note: o tema retorna como variação musical: antes eram ossos espalhados no vale, agora eles saem das sepulturas). Ele leva de volta. É o retorno para a terra. Essa esperança é concreta: vai haver uma (re)tomada definitiva da terra. A esperança é para esta terra.

V. 13a: Nisso se fica sabendo que Javé é Deus.

V. 14: Israel vai receber o espírito de Deus e viverá por causa dele. Nisso saberá que Deus é Deus.

2. Contemplando

Sentado, em casa, o profeta tem uma visão: a mão de Deus faz desaparecer tudo o que ele está vendo, para que veja o que Deus quer que veja. Essa mão de Deus também é peso sobre os seus ombros. Deus o desinstala: tira-o de dentro de casa e leva-o para o vale do rio Quebar (1.1). A Tel-Abibe (3.15), na qual moravam os judeus levados ao cativeiro, está cheia de ossos dos que foram mortos (37.9). Faz tempo que esses ossos estão aí. Nada mais há neles que lembre carne ou músculos. Tudo se decompôs e foi devorado pelos urubus. Só há esqueletos ressequidos. E Deus faz o profeta caminhar por sobre esses ossos e esqueletos. Ele caminha e ossos batem em ossos, como se fossem baquetas de tarola. Música de percussão horripilante, principalmente para o profeta, descendente de sacerdotes: ele caminha e produz som em local impuro e no qual se adquire impureza. Pior: esses ossos foram, outrora, seres humanos; neles, sente-se, agora, toda a brutalidade da morte.

Km meio a tudo isso, a pergunta de Deus (v. 3): será que esses ossos podem ter vida de novo'? Ora bolas, claro que não! Nosso século está cheio de ossadas: de chilenos, de argentinos, de brasileiros, de cambojanos, dos judeus de Auschwitz, dos gulagues soviéticos, das guerras de intervenção na África e na América Central. — Mas o profeta devolve a pergunta: Tu o sabes! Eu, Ezequiel, só vejo impossibilidades; mas como haveria eu de medir tuas possibilidades por minhas impossibilidades? De Deus se pode esperar tudo.

Mas não é só ver, ouvir. O profeta recebe a ordem de intervir. Aquele que é expressão da impotência humana é convidado a se tornar porta-voz do poder de Deus. Ele deve proferir a palavra de Deus acerca dos esqueletos e aos esqueletos. Essa ordem é loucura ou milagre: esqueletos vão ouvir! E, de fato, Deus lhes anuncia espírito da vida que há de neles penetrar e devolver-lhes a plenitude de seus corpos. No v. 6, o profeta vê o milagre da palavra de Deus: os cadáveres voltam a ser o que eram. Quando o profeta fala, ouve-se o som de osso batendo em osso, e eles se reaproximam um do outro. E, eis!, dos esqueletos surgem pessoas completas — mas sem vida. O profeta lhes fala e eles ficam de pé e são muitos. Ficar de pé... homo erectus: dignidade devolvida.

Depois, o visto e o falado são explicados: os ossos são toda a casa de Israel, também aquelas tribos do Norte das quais nem mais se tem notícia. A palavra de Deus se dirige aos que não são mais, aos que não têm mais esperança, aos que estão mortos, eliminados, desesperadamente resignados. A palavra se dirige à geração que experimentou o ano de 587 a.C. O povo que, segundo a vontade de Deus, foi escolhido para ser luz e salvação para os povos é um vale de ossos. A comunidade de Deus no mundo é um vale de ossos.

Mas Deus cria, faz futuro para seu povo, mesmo quando não se pode esperar mais nada, absolutamente nada. O impossível é possível, quando Deus o quer. Ele abre sepulturas. As portas do inferno não prevalecerão contra os filhos de Deus. Por duas vezes, no texto, Deus chama os ossos de meu povo. Deus mantém sua promessa, mesmo quando o povo só está feito ainda de ossos. Ele não só fala; também o faz. Deus não desiste de ser Deus. Ele cumpre sua promessa. Mantém, em termos de Antigo Testamento, a promessa da terra (vv. 12-14); mantém, em termos de Novo Testamento, para o povo de Deus um descanso, como o descanso de Deus no sétimo dia (Hb 4.9; cf. l Pe l .4).

3. Pregando

Depois do visto, do contemplado com o profeta, o pregador do final do séc. 20 é convidado a falar a seus ossos no vale de ..., próximo da cidade de ..., que sente que o reino de Deus não vem mais. Ele deveria ter o cuidado de situar o visto na perícope no todo do livro de Ezequiel.
Pois bem: árvore morta não produz brotos. A promessa de Deus tinha como pressuposto que ainda havia algo que poderia voltar a ter vida. Há, pois, um descompasso entre a realidade da cena e a promessa de Deus? Ou há mais a ser tirado dessa cena brutal?

O texto fala de morte. Nossa geração aprendeu a ver a morte como fato natural: é coisa da natureza. O ser humano morre: é coisa da natureza. Ele envelhece, há degeneração, há falência múltipla de funções. Também a decomposição é vista como natural. À nossa volta, tudo vem e vai. Por que não aceitar a naturalidade das coisas?

A morte tem outro aspecto. É juízo de Deus. É por isso que não conseguimos aceitar a morte. A morte é inimigo; o último grande inimigo com o qual temos que lutar (l Co 15.26). Não morremos apenas de câncer, enfarte, esclerose, imuno-deficiência. Nessas doenças e apesar delas, morremos consumidos pela ira de Deus. É isso que torna a morte tão amarga, tão deprimente. Não fora isso, a morte seria realmente um adormecer.

Os ossos do vale do rio Quebar, em Tel-Abibe, são consequência de terrível juízo divino. Na perícope esse aspecto não aparece, mas ele é consequência do livro de Ezequiel: Israel é, desde sua eleição, um povo muito chegado a Deus. Deus o recolheu como criança recém-nascida que havia sido rejeitada. Viu-a crescer, fazer-se mulher, com ela contratou casamento, mas Israel lhe foi infiel (Ez 16). Deus experimenta em sua relação com Israel o descumprimento do primeiro mandamento (Ez 23), derramamento de sangue, opressão dos fracos, adultério, exploração do próximo. A tónica do livro é que Deus está desiludido com seu povo. Por isso entrega Jerusalém ao saque do inimigo. O que sucede em 587 a.C é juízo merecido. Só quando temos esse aspecto do livro do profeta ante os nossos olhos é que podemos compreender o que significa o anúncio de que Deus quer ressuscitar Israel para nova vida. Nesse anúncio de Deus, a sentença de morte, a condenação à morte, é retirada. A graça, a misericórdia, o amor de Deus vencem a ira. Deus designa o povo que entregou à destruição novamente de meu povo. A história que havia sido interrompida é reiniciada. As promessas de outrora voltam a vigorar. Deus faz novo início, misericordioso, com Israel.

O que isso tem a ver com ressurreição? Na esperança da ressurreição fala-se de algo ligado ao fim dos tempos. No texto de Ezequiel é diferente. Ele fala de esperança bem presente. Para entendê-la temos que entender e afirmar que viver ou não viver depende do juízo que Deus profere sobre nós. Quando atraímos sobre nós a ira de Deus, aí jogamos nossa vida fora. Não temos mais vida com qualidade, pois vida com qualidade é vida na presença de Deus, em responsabilidade e em comunhão com ele. Por isso, a ira dele se volta contra os que destroem sua criação. O que Amos anunciara no séc. 8 a.C. acontece nos dias de Ezequiel: juízo.

Daí o acento do milagre no texto: o impossível aconteceu. A pena de morte, a sentença e abolida. Israel voltará a viver. O sopro vital sopra de todas as direções. Deus renova a vida de seu povo. O que é executado é a misericórdia, não a sentença. Cuidado: a palavra de Deus, através do profeta, não é: a vida continua! O que ele diz é muito mais: Deus aceita vocês de novo; ele volta a designá-los de meu povo. Por isso vocês podem viver. O que nada mais valia volta a ter valor. Em sua liberdade soberana, Deus concede sua vida aos condenados à morte.

Mesmo que a temática da ressurreição dos mortos, como a comunidade cristã a experimentou em Jesus Cristo, ainda não esteja presente em Ezequiel, temo-la nesta perícope qual botão de rosa. No botão de rosa está contida toda a exuberância da futura rosa: Deus dá vida ao que lhe é importante. Foi essa a experiência que a comunidade cristã fez em relação a Jesus de Nazaré: Deus deu a vida ao Filho que lhe era sumamente importante. No Filho, Deus deu por nós a vida que lhe era sumamente importante. No Filho e em sua ressurreição nos é anunciado que somos sumamente importantes para Deus, tanto assim que ele faz de nós seu povo. Fazemos parte daquele povo ao qual Deus anuncia sua misericórdia, ao invés de condenação. Na imagem do botão de rosa nos é anunciado: todos os teus pecados te são perdoados. Por isso, nada nos pode separar do amor de Deus que nos foi revelado em Jesus Cristo. Nem mesmo a morte. Deus não deixa perecer o que ama. E essa certeza tem a ver com ressurreição, também e particularmente com a nossa.

Mortos são ressuscitados, àqueles para os quais não havia mais esperança é devolvida esperança, pessoas há muito declaradas desaparecidas são reintegradas ao povo de Deus. O Espírito de Deus sopra neles; há vida nova. A esperança anunciada por Ezequiel encontra como nunca sua concretização em Jesus Cristo. Nele podemos dizer: Abba, Pai (Rm 8.11-17). Nele, os dispersos filhos de Deus se tornam um só corpo (Jo 11.47-53), que coloca sinais de vida.

4. Bibliografia

EICHRODT, Walther. Der Prophet Hesekiel: Kapitel 19-48. Göttingen : Vandenhoeck & Ruprecht, 1969. (Das Alte Testament Deutsch, 22/2).
ZIMMERLI, Walther. Ezechiel. Neukirchen-Vluyn : Neukirchener, 1963. (Biblischer Kommentar Altes Testament, XIII).

Proclamar Libertação 24
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia


Autor(a): Martin N. Dreher
Âmbito: IECLB
Área: Celebração / Nível: Celebração - Ano Eclesiástico / Subnível: Celebração - Ano Eclesiástico - Ciclo da Páscoa
Área: Governança / Nível: Governança - Rede de Recursos / Subnível: Governança-Rede de Recursos-Auxílios Homiléticos-Proclamar Libertação
Natureza do Domingo: Quaresma
Perfil do Domingo: 5º Domingo na Quaresma
Testamento: Antigo / Livro: Ezequiel / Capitulo: 37 / Versículo Inicial: 1 / Versículo Final: 14
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1998 / Volume: 24
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 6986

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