Vida Celebrativa - Ano Eclesiástico


ID: 2654

O Deus Desmascarado | Êxodo 34.29-35 / Lucas 9.28-36

Último Domingo após Epifania / Transfiguração do Senhor

27/02/2022

 

Amados irmãos, amadas irmãs,

como imaginaríamos o rosto de Deus? Como pensaríamos a sua face? Que palpite daríamos sobre a sua aparência? Talvez estejamos acostumados com a imagem de Deus como um velho irado sentado em um trono rodeado de raios e trovões. Essa é uma imagem bastante assustadora de Deus. Por muito tempo na História da Igreja a imagem de Deus foi relacionada a raios, trovões, tempestades, enfim, fenômenos que causam medo e desespero ao ser humano. Na Idade Média há muitas histórias sobre isso. Uma delas diz:

três companheiros que caminhavam por uma estrada quando dois deles foram subitamente fulminados por um raio. O terceiro ficou apavorado ao ouvir vozes no ar, a dizer: “Vamos fulminá-lo também.” Em seguida, ouviu outra voz retorquir: “Não podemos, pois que hoje ele ouviu a sentença: ‘O Verbo se fez Carne.”’ Compreendeu então que fora salvo porque naquele dia assistira à missa.1

Muitas destas histórias eram contadas para causar medo nas crianças que acabavam crescendo com um imaginário assustador sobre Deus. O próprio Martinho Lutero decidiu se tornar monge após ser fortemente amedrontado por uma tempestade que lhe lembrava a ira de Deus. Talvez nós mesmos crescemos aprendendo a ter medo de Deus e a imaginá-lo das maneiras mais horríveis possíveis.

O próprio Jesus foi historicamente ensinado como sendo um juiz impiedoso, sentado em cima do arco-íris, com uma espada de dois gumes em sua boca e com relâmpagos saindo dos seus olhos para destruir os desobedientes. Como as pessoas não tinham acesso às Escrituras na sua própria língua, precisavam confiar no Cristo pregado pelos padres da época: um Cristo como um juiz implacável que quer exterminar os seres humanos. A imagem do Cristo juiz era uma propaganda que a igreja da Idade Média usava para tirar dinheiro dos fiéis que investiam mais do que tinham para escaparem do juízo de Jesus.

Hoje nós estamos no Último Domingo após Epifania. Os Domingos da Epifania têm como objetivo revelar quem é Jesus. A pergunta que devemos responder em cada Domingo é: o que o texto previsto para hoje revela sobre Jesus? Como podemos revelá-lo diariamente através da nossa vida cristã?

Neste Domingo, ouvimos dois textos que falam muito a respeito de Deus. É por isso que ouvimos anteriormente a leitura de Êxodo 34.29-35 e Lucas 9.28-36, pois não é possível entender um destes textos sem o apoio do outro. Neste Último Domingo após a Epifania, perguntamos aos dois textos: o que eles nos dizem sobre a aparência de Deus? Quais as diferenças da imagem de Deus nos dois textos? Qual é a diferença entre a revelação de Deus a Moisés da revelação de Deus em Jesus?

1    PALAVRA ESCRITA E PALAVRA ENCARNADA

No Antigo Testamento, Deus se revelou através da Palavra escrita. É na Antiga Aliança que encontramos primeiramente a autoridade das Escrituras. O próprio Moisés é quem recebeu a Lei escrita do próprio Deus no monte Sinai. Moisés desceu do Monte Sinai com as tábuas do testemunho. As Leis impressas nessas duas tábuas são a orientação para toda a vida do povo de Deus. Adiante, as Tábuas da Lei serão guardadas dentro da Arca da Aliança onde passarão a simbolizar a própria presença de Deus entre o seu povo. Portanto, no Antigo Testamento temos a revelação escrita de Deus.

Jesus – Filho de Deus – não veio para anular a Lei ou descartar o Antigo Testamento. Na verdade, o próprio Jesus disse: “Não pensem que vim revogar a Lei ou os Profetas; não vim para revogar, mas para cumprir”. (Mateus 5.17). Jesus é o próprio cumprimento da Lei. Porém, não para por aí. Além de cumprir a Lei, Jesus é a Palavra que se fez carne e habitou entre nós (cf. João 1.14). Ele, em pessoa, é a própria Palavra de Deus. E Jesus, como verbo de Deus, tem mais autoridade que as próprias Escrituras. Por isso, a Bíblia não apenas é a Palavra de Deus, mas também contém a Palavra de Deus, pois é na Bíblia que encontramos Jesus.

Jesus é o centro da Escritura. Se tirarmos Cristo da Escritura, nada mais prestará dela. Por isso, a Bíblia só encontra o seu sentido no verbo encarnado Jesus Cristo. Enquanto no Antigo Testamento encontramos a Palavra de Deus revelada na escrita, no Novo Testamento encontramos a Palavra de Deus revelada como uma pessoa, a saber, Jesus Cristo que se tornou a própria encarnação do amor de Deus. Por isso, não podemos separar o Antigo do Novo Testamento. O Deus do Antigo Testamento é o mesmo do Novo Testamento. Não há progressão em sua revelação. O Novo Testamento não significa uma evolução de Deus, mas o mesmo Deus revelado pelos líderes e profetas do Antigo Testamento. A questão é que a revelação da Palavra em Jesus é que transcende e ilumina a primeira revelação na Palavra escrita.

Portanto, Moisés recebeu a Palavra escrita de Deus que continua sendo autoridade para todo o seu povo; nós recebemos a Palavra encarnada de Deus – Jesus Cristo. Nós dialogamos uns com os outros através da linguagem. O fato da Palavra de Deus se fazer carne em Jesus e habitar entre nós significa que temos completo acesso a Deus e que Jesus é, de fato, o mediador entre a Trindade e os seres humanos. Ao mesmo tempo, o Espírito Santo é que atualiza a Palavra para que o significado da encarnação e morte de Jesus sejam compreendidos como se ele tivesse nascido e morrido hoje. Se queremos aprender da Palavra de Deus, antes de tudo, precisamos aprender a olhar para Jesus. É por isso que Lutero dizia: “A Bíblia é uma manjedoura, na qual está contido Jesus. Se não o encontrarmos, só temos palha”2.

Em Jesus, a Palavra de Deus não é algo que apenas conhecemos muito bem e temos até a oportunidade de decorar para a termos na ponta da língua; em Jesus, a Palavra de Deus significa relacionamento, pois a Palavra se fez uma pessoa com quem posso me relacionar; em Jesus, a Palavra de Deus não é algo que apenas conhecemos de maneira abstrata, mas alguém com quem podemos nos relacionar diariamente de maneira concreta. Se a Palavra de Deus fosse apenas um amontoado de letras, isso significaria apenas um conhecimento arrogante da qual o ser humano poderia tomar posse, como faziam os fariseus e escribas. Como a Palavra de Deus é uma pessoa, então é ele quem tem autoridade sobre mim e que está comigo na vida e na morte. A Palavra dada a Moisés era Palavra a ser conhecida, decorada, repassada; a Palavra de Deus revelada em Jesus é Palavra que quer se relacionar conosco diariamente através do agir do Espírito Santo.

2    ACESSO FECHADO E ACESSO ABERTO

Quando Moisés desceu do Monte Sinai, seu rosto resplandecia. Moisés estava na presença de Deus, de quem acabara de receber as tábuas da Lei. Porém, Moisés coloca um véu em seu rosto. Nos diz Êxodo 34.34: “Porém, quando Moisés vinha diante do Senhor para falar-lhe, removia o véu até sair, e, saindo, dizia aos filhos de Israel tudo o que tinha sido ordenado”. Como Sacerdote, Moisés cumpre uma importante função: ser o mediador entre Deus e o povo de Deus. Enquanto Moisés retirava o véu para falar com o Senhor, retirava o véu para comunicar ao povo as Palavras que o próprio Senhor lhe disse.

No Antigo Testamento nós encontramos Deus de maneira mascarada. O rosto de Deus não poderia ser visto no Antigo Testamento. Na verdade, ver o rosto de Deus traria morte imediata a quem ousasse tal façanha. O povo conhece Deus, escuta a Palavra de Deus, mas não tinham acesso direto a Deus, pois precisavam de mediadores que estabeleciam essa comunicação. Essa era a tarefa dos sacerdotes que iam diante de Deus no Tabernáculo e, posteriormente, no Templo para entregar as intercessões do povo a Deus, realizar os sacrifícios para o perdão dos pecados do povo e exortar o povo a ouvirem as Palavras do Senhor. Deus está presente entre o seu povo no Antigo Testamento, mas é uma presença escondida, ou (como diria Lutero), é uma presença mascarada.

Com Jesus, acontece exatamente o contrário. Nos diz Lucas 9.29: “E aconteceu que, enquanto ele orava, a aparência do seu rosto se transfigurou e a roupa dele ficou de um branco brilhante.” Assim como foi a Moisés, agora chegou o momento do rosto de Jesus brilhar. Jesus, porém, não precisou ocultar o seu rosto. Seu brilho não precisa ficar escondido como o de Moisés, pois a sua luz é para todas as pessoas. A glória de Deus estava em Jesus e podia ser vista claramente por Pedro, João e Tiago. Então, do céu, o Pai disse: “ – Este é o meu Filho, o meu eleito; escutem o que ele diz!” (Lucas 9.35).

Jesus revelou o próprio rosto de Deus. Em Jesus, Deus apareceu ao ser humano sem máscaras. Através do sacerdote Jesus, podemos ver claramente o reluzente rosto amoroso e misericordioso de Deus. Por isso, o rosto misericordioso de Deus pode ser visto somente em Cristo. Se queremos enxergar o rosto de Deus, basta olharmos para a face de Jesus. Ele assumiu a forma de servo, fazendo-se humano como um de nós, mas sem deixar de ser Deus.

O acesso que antes era fechado e que precisava da intermediação dos sacerdotes agora é um acesso aberto através do sacerdote Jesus. Através de Jesus, temos completo acesso ao próprio Deus, sem a necessidade de intermediários. Ao olharmos para o rosto de Jesus, olhamos para o rosto do próprio Deus. É por isso que o próprio Senhor Jesus disse: “ – Eu sou o caminho, a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai senão por mim.” (João 14.6). Da mesma forma o apóstolo Paulo irá testemunhar ao dizer: “Porque há um só Deus e um só Mediador entre Deus e a humanidade, Cristo Jesus, homem.” (1 Timóteo 2.5). O acesso a Deus está exclusivamente em Jesus. Por isso o véu do Templo de Jerusalém se rasgou de cima até embaixo no momento da sua morte na cruz. O acesso está aberto! Vamos até a sua presença! Ele está acessível e amoroso a nós em sua graça e misericórdia!

3    MEDO E GRAÇA

No texto de Êxodo, o povo de Deus sentiu medo ao olhar para o rosto reluzente de Moisés. Inclusive, as pessoas nem mesmo queriam chegar perto dele. Aqui, encontramos a revelação daquele velho Deus que causa medo nas pessoas. Em Moisés, o povo não teme a Deus porque o ama, mas porque tem medo. Inclusive, chegam a ter medo do próprio servo do Senhor, Moisés, um homem.

Porém, Deus não quer que tenhamos medo dele. É por isso que Deus se revelou em Jesus. Em Jesus, não encontramos a face brilhante de Deus de uma maneira ameaçadora, mas amorosa. Em Jesus, vemos a face graciosa de Deus que ao invés de nos causar medo, nos acalma, acalenta, ajuda. Jesus é Deus aparecendo a nós sem máscaras! É assim que ele é!

Por isso, não precisamos desesperar diante de Deus. Ao invés de fugir dele com medo, somos convidados a irmos à sua presença receber da sua graça. O brilho do rosto de Jesus não quer nos cegar através do medo, mas nos levar à confiança – ou seja, à fé – naquilo que ainda não foi revelado, mas que será. Quando estamos com medo ou desesperados, olhemos para a face amorosa de Jesus e lembremos o quanto ele nos ama.

É preciso trocar a imagem de Deus. Ao invés daquela pintura do Jesus assustador, olhemos para esta de Matthias Grünewald onde Jesus nos é mostrado em seu sofrimento e humilhação. Aqui encontramos Deus que vai até às últimas consequências por amor a nós: até a cruz! Deus tem a cara do crucificado! Ao invés de castigar, ele decidiu sofrer o castigo! Ao invés de se irar contra nós, ele decidiu sofrer a ira de Deus em nosso lugar; ao invés de nos condenar, ele assumiu a nossa condenação! João Batista está apontando para a centralidade do Cristo crucificado que tira o pecado do mundo, o nosso pecado! Tão grande é o peso do nosso pecado que o travessão da cruz fica “torto”.

Na música sacra, Paul Gerhardt vai compor a maravilhosa letra que diz:

Ó fronte ensanguentada, ferida pela dor, de espinhos coroada, marcada pelo horror! Ó fronte, outrora ornada de eterna glória e luz, agora desprezada, adoro-te, Jesus.

Ó rosto glorioso que sempre fez tremer o mundo poderoso: fizeram-te sofrer! O quanto estás mudado! O teu sublime olhar, cruelmente atormentado, deixou já de brilhar.

O que tens suportado foi minha própria dor; eu mesmo sou culpado de tua cruz, Senhor. Ó vê-me, aflito e pobre: castigo mereci; com tua graça encobre o mal que cometi!

Senhor, teu sofrimento conforta o coração. Por teu cruel tormento obtenho a salvação. Ó dá que eu permaneça contigo, fiel Senhor! Morrendo, eu adormeça, em ti meu Salvador!

No termo desta vida ó, não me deixes só! Concede-me guarida, levanta-me do pó! E se na dor pungente meu coração tremer, vem tu, Jesus clemente, lembrar-me o teu sofrer!3

Amados irmãos, amadas irmãs,

Este é o rosto de Deus. 1 João 4.18-19 nos diz: “No amor não existe medo; pelo contrário, o perfeito amor lança fora o medo. Porque o medo envolve castigo, e quem teme não é aperfeiçoado no amor”. Por isso, não é preciso ter medo de Deus. Ele é Palavra encarnada que se fez pessoa e que se relaciona conosco; por causa de Cristo, temos livre acesso ao próprio Deus; em sua morte, podemos trocar o medo pela confiança na sua graça.

Agora vamos entrar no período da Quaresma. Que a presença da verdadeira imagem resplandecente de Jesus nos acompanhe em cada dia. Agora, a cada Domingo estaremos cada vez mais próximos da sua morte na cruz e de sua ressurreição. Que seja um tempo de preparo para contemplarmos, outra vez, o grandioso ato de amor de Deus pela humanidade. Deus nos abençoe, amém.


ÚLTIMO DOMINGO APÓS EPIFANIA | BRANCO | CICLO DO NATAL | ANO C

27 de Fevereiro de 2022


P. William Felipe Zacarias


1 KRAMER, Heinrich; SPRENGER, James. O martelo das feiticeiras. 28. ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2020. p. 264. Edição do Kindle.

2 LUTERO, Martinho. in: DREHER, Martin Norberto. Bíblia. Suas leituras e interpretações na História do Cristianismo. São Leopoldo: Sinodal, 2006. p. 48.

3 GERHARDT, Paul. “Ó fronte ensanguentada”. in: SILVA STEURNAGEL, Marcell (Org.). Livro de Canto da IECLB. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, 2017. nº 425.


Autor(a): P. William Felipe Zacarias
Âmbito: IECLB / Sinodo: Rio dos Sinos / Paróquia: Sapiranga - Ferrabraz
Área: Confessionalidade / Nível: Confessionalidade - Prédicas e Meditações
Área: Celebração / Nível: Celebração - Ano Eclesiástico / Subnível: Celebração - Ano Eclesiástico - Ciclo do Natal
Testamento: Antigo / Livro: Êxodo / Capitulo: 34 / Versículo Inicial: 29 / Versículo Final: 35
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Prédica
ID: 66201
MÍDIATECA

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