Estamos às vésperas da Semana Santa no calendário litúrgico da igreja cristã. Na 6ª feira celebramos a morte de Jesus Cristo, seguida da ressurreição no domingo de páscoa. Este é o cerne da fé cristã. Alguns a chamam de 6ª feira da paixão, outros de 6ª feira santa. Quando um e quando outro? Arrisco-me.
Na cruz Jesus clama a Deus dizendo: “Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?” (Mateus 27.46). Ele cita palavras do Salmo 22 ditas no momento antes da sua morte. Ele está pregado na cruz. Está ensanguentado e ferido. Pregos e espinhos machucam seu corpo. A alma sofre a dor do abandono e do sarcasmo dos soldados. Jesus está no grupo de pessoas que sofre a dor da morte por indignidade e que têm suas necessidades diminuídas ou não atendidas por ser a morte a certeza dada. Ali, diante da morte certa, resta clamar: “Por que, Senhor?” É 6ª feira da paixão. É sofrimento.
A resposta de Deus vem em forma de acontecimento. Quando Jesus morreu a terra tremeu. Sepulturas se abriram e pessoas ressuscitaram. A cortina do Santo dos Santos (lugar da morada de Deus no templo onde somente o sacerdote mais importante podia entrar uma vez ao ano) foi rasgada de cima até embaixo. Rasgo feito por Deus (de cima para baixo). Na cruz de Cristo abre-se o acesso a Deus. Ali, na cruz de Cristo, Deus realiza a sua obra de reconciliação em favor de todas as pessoas (João 3.16) e todas as pessoas podem ter acesso a Deus. O Santo dos Santos está aberto e acessível. É 6ª feira santa. É salvação. É vida.
Jesus sente-se abandonado por Deus. Pode isso? Creio antes que Deus não quis agir. Deixou a morte acontecer para que fosse seguida da ressurreição. Esta sim a resposta de Deus à maldade humana. Creio também que Deus estivesse impotente naquela situação. A prepotência humana expulsa tudo e todos. Resta a Deus agir no rastro da maldade que ficou fazendo ressurgir a vida. É 6ª feira da paixão transformada em 6ª feira santa. Em Deus está a capacidade de transformar um mal (a morte) em bem (ressurreição).
Há poucos dias precisamos de atendimento médico. Apesar do privilégio de ter plano de saúde, a primeira coisa a ser feita foi um procedimento burocrático / financeiro: pega a senha e aguarda a vez na fila de espera; solicita autorização de consulta médica do plano; nova fila de espera para solicitar autorização de exames; ... Somente depois de todas as autorizações concedidas de fato houve atendimento de saúde. Então exclamei não contra o abandono de Deus, mas contra toda a maldade (em minha opinião) humana: “Agora que a parte mercenária foi feita, podemos cuidar da vida?” Foi a nossa noite de “paixão”.
Citamos o nome de Deus em nosso clamor, mas de fato sofremos as consequências da mão e decisão humana. Alimentos adulterados, corrupção, negociatas com remédios, pagamento de juros exorbitantes, ... são decisões humanas. Os pregos que machucaram o corpo de Jesus em nosso tempo têm outro nome. A indignidade que machucou a alma de Jesus, bom esta está bem viva entre nós e continua fazendo suas vítimas. É a “paixão” do povo.
A 6ª feira da paixão me faz ouvir e meditar o clamor de Cristo na cruz – também o clamor do povo; a 6ª feira da paixão me faz perceber que Deus agiu em meu favor, concedeu-me o perdão e por isso experimento a 6ª feira santa; a 6ª feira da paixão me faz observar a ação humana e a reação santificadora de Deus; a 6ª feira santa me faz perceber que o acesso a Deus está dado; a 6ª feira santa me faz perceber que a dor não tem a última palavra; a 6ª feira santa me faz perceber que Deus deseja a todos/as vida abundante; a 6ª feira me faz perceber que Deus me compromete com sua ação: diminuir a “paixão” e apontar para a santificação.
Enquanto vivermos como se não tivéssemos tido acesso a Deus, a 6ª feira da paixão continuará existindo na vida de milhões de pessoas em forma de espera pela 6ª feira santa, a 6ª feira da cura, da libertação, da salvação.