Vida Celebrativa - Ano Eclesiástico


ID: 2654

Atos 10.34-43 - Domingo de Páscoa - 17/04/2022

Auxílio Homilético

17/04/2022

Prédica: Atos 10.34-43
Leituras: Salmo 118.1-2, 14-24 e 1 Coríntios 15.19-26
Autoria: Rodolfo Gaede Neto
Data Litúrgica: Domingo de Páscoa
Data da Pregação: 17/04/2022
Proclamar Libertação - Volume: XLVI

Nasce uma nova comunidade

1. Introdução

Se para este Domingo da Páscoa a mensagem central é a afirmação do apóstolo Pedro de que a este ressuscitou Deus no terceiro dia (At 10.40), então temos aí motivo de extraordinária alegria. A alegria por causa dos grandes feitos de Deus está refletida também nos textos do AT e do NT sugeridos como leitura para este domingo.

O Salmo 118 convida a render graças ao Senhor, porque ele bom, porque a sua misericórdia dura para sempre. Se, por um lado, o salmista se refere a experiências como castigo (v. 18), morte (v. 18) rejeição (v. 22), por outro lado, refere-se a experiências de salvação (v. 14), do ser acudido (v. 21), da certeza de não morrer (v. 17), da não entrega à morte (v. 18), da certeza de viver (v. 17) e à experiência de a pedra rejeitada tornar-se a pedra angular (v. 22). Apesar de todos os males experimentados, a destra do Senhor faz proezas (v. 15 e 16). Esse é o motivo dos cânticos e do júbilo manifestado pelo salmista. Ser agraciado pelas obras do Senhor (v. 17) é uma experiência que quer ser testemunhada (v. 17). Por tudo isso a leitura do salmo está em evidente harmonia com a mensagem da Páscoa.

O apóstolo Paulo, em 1 Coríntios 15, chama para a esperança voltada para a realidade que está além das limitações desta vida (v. 19). O único fato capaz de sustentar essa esperança é a mensagem da ressurreição de Cristo (v. 20). Enquanto a marca da descendência de Adam é a finitude e a morte (v. 21), o Cristo ressuscitado é o novo Adam, que inaugura a nova criação na qual todo o mal deste mundo (v. 24), a própria finitude humana e a morte são vencidas (v. 21, 22 e 26). Eis o motivo de excepcional alegria.

2. Considerações exegéticas

A afirmação do apóstolo Pedro de que a este ressuscitou Deus no terceiro dia (At 10.40) está no contexto de seu discurso na casa de Cornélio. Vale destacar esse contexto por estar diretamente relacionado à mensagem central do texto. Pedro está em Jope, hospedado na casa do curtidor Simão. Cornélio, de Cesareia, tem uma visão em que um anjo lhe ordena chamar Pedro à sua casa para poder ouvir suas palavras (10.22). Então Cornélio envia três mensageiros a Jope. Antes que esses cheguem ao destino, Pedro também tem uma visão: viu o céu aberto e descendo um objeto como se fosse um grande lençol [...] contendo toda sorte de quadrúpedes, répteis da terra, e aves do céu. E ouviu-se uma voz que se dirigia a ele: Levanta-te, Pedro; mata e come. Mas Pedro replicou: De modo nenhum, Senhor, porque jamais comi cousa alguma comum e imunda. Segunda vez a voz lhe falou: ao que Deus purificou não consideres comum (10.11-15).

No dia seguinte, Pedro, na companhia de alguns irmãos residentes em Jope, dirigiu-se a Cesareia. Entrou na casa de Cornélio e encontrou muitos reunidos ali. Suas primeiras palavras foram estas: Vós bem sabeis que é proibido a um judeu ajuntar-se ou mesmo aproximar-se a alguém de outra raça, mas Deus me demonstrou que a nenhum homem considerasse comum ou imundo (10.28).

Pedro continua seu sermão testemunhando que Deus não faz acepção de pessoas (10.34) e que ele é Senhor de todos (10.36). Afirma também que esse mesmo Deus ungiu Jesus, que fez o bem, curou as pessoas oprimidas do diabo e foi morto na cruz. A este ressuscitou Deus no terceiro dia (10.40).

O contexto descrito enriquece imensamente a mensagem do nosso texto para o Domingo da Páscoa. Pois, se a mensagem da ressurreição de Jesus é a razão da existência da igreja, então o episódio na casa de Cornélio nos oferece um exemplo de como a pregação dessa mensagem gera o nascimento de uma comunidade cristã. A comunidade que nasce na casa de Cornélio a partir da pregação de Pedro, reunindo as pessoas vindas de Jope com as de Cesareia, revela a característica genuína de uma comunidade cristã. O genuíno deve-se ao fato de reunir debaixo do mesmo teto pessoas que antes não podiam nem ao menos se aproximar umas das outras. A religião judaica ordenava tomar distância de pessoas de outras raças; proibia entrar na casa de pessoas pagãs e, muito mais ainda, proibia comer a comida de gentios. Aqui, pessoas de identidade judaica e pessoas de identidade gentílica se encontram. Pedro, que anteriormente tanto defendia a necessidade de conversão dos gentios ao judaísmo para, depois, poderem aderir à fé cristã, agora esteve hospedado na casa do curtidor Simão e passa a estar hospedado na casa de Cornélio, ambos não judeus. Portanto trata-se de um momento muito especial na incipiente história da religião cristã.

Quanto a isso, merece atenção a tese dos irmãos Ekkehard e Wolfgang Stegemann, segundo a qual o nascimento do cristianismo se deu, de fato, no momento em que não judeus se agregaram à comunhão judaica dos adeptos de Jesus. Esse acontecimento constitui algo novo: as pessoas seguidoras de Jesus estão ligadas entre si, independentemente de sua procedência étnica.

Os mencionados autores situam, geograficamente, esse “evento fundante” do cristianismo em Antioquia, onde, de acordo com Atos 11.26, os discípulos são chamados, pela primeira vez, de christianoi (cristãos), justamente quando sua pregação a judeus e gregos resultou a adesão de representantes de ambos os grupos (At 11.19,20). Antes disso, o posicionamento das pessoas seguidoras de Jesus não passava de um movimento destoante no interior da própria religião judaica.

Os acontecimentos em Antioquia são tratados também em Gálatas 2.11-21: Paulo repreende Pedro que, por receio da censura das lideranças de Jerusalém, suspendera sua comunhão de mesa com gentios. O argumento teológico de Paulo em favor dessa comunhão é a justificação do ser humano, não por obras da lei, mas pela fé em Cristo.

Paulo, que se considera especialmente chamado para a missão entre os gentios, tem agora, a partir dos episódios em Jope e Cesareia, a parceria de Pedro, cujas atitudes reforçam a necessidade de superação das barreiras étnicas, raciais, culturais e religiosas nas comunidades por eles fundadas. Trata-se da renúncia a uma identidade de grupo excludente. Essa superação é necessária para tornar possível a convivência diária de judaico-cristãos e gentílico-cristãos na comunidade. Portanto trata-se aqui da vida em comunidade no sentido genuinamente cristão. Sem a superação das barreiras não há inclusão, nem pertencimento nem comunhão. Com a superação há tudo isso, mais missão e crescimento.

A formação de comunidades cristãs a partir do encontro de judeus e gentios teve, de acordo com os irmãos Stegemann, um desenvolvimento tal que, após o ano 70, as pessoas cristãs não judaicas passam a formar a maioria nas comunidades fora do território de Israel.

3. Meditação

A mensagem da ressurreição de Cristo é força geradora de comunidades. Essas comunidades têm uma característica muito própria. Elas se distinguem pela sua abertura. Diferenciam-se categoricamente de guetos. Para a prédica da Páscoa é importante eleger um conceito capaz de dar conta desse perfil de comunidade e, assim, poder manter um foco claro durante a homilia. Creio que o conceito hospitalidade nos conduz para o cerne daquilo que teologicamente caracteriza a comunidade nascida da Páscoa. Vejamos alguns argumentos.

O conceito hospitalidade tem a sua origem no termo grego philoksenia, que se compõe de philos (amigo) e ksenos (estrangeiro, estranho). Portanto trata-se da acolhida amigável oferecida ao estranho/estrangeiro. O contrário chama-se xenofobia, uma composição de ksenos (estrangeiro) e phobos (medo). Nas assim chamadas obras de misericórdia, registradas em Mateus 25.31-46, Jesus inclui o acolhimento ao forasteiro como prática determinante no contexto do juízo divino (no texto aparece quatro vezes o termo ksenos para designar a pessoa estrangeira, que foi ou não hospedada).

Jesus faz referência à hospitalidade do reino de Deus usando a metáfora do banquete. Para o banquete do Reino, todas as pessoas são convidadas, indistintamente: as das encruzilhadas, das ruas, dos becos, as pessoas más e boas, as pobres, aleijadas, cegas e coxas (Lc 13.29; 14.16ss; Mt 22.1-14).

Pedro, em sua pregação na casa de Cornélio, afirma que Deus concedeu que a ressurreição de Jesus fosse manifestada a um grupo restrito de testemunhas, ou seja: a nós que comemos e bebemos com ele (v. 41). Com isso Pedro fundamenta seu apostolado na experiência de ter participado da hospitalidade praticada por Jesus nas frequentes comunhões de mesa, refeições abertas para todas as pessoas.

Em Lucas 14.12-14, Jesus convida o fariseu a alargar seu conceito de hospitalidade e convidar para suas ceias também “os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos”. Dentre as quatro categorias mencionadas, três são de pessoas com deficiência, discriminadas por causa da lei da pureza. 

Em culturas antigas como a egípcia e a israelita, a hospitalidade representava o direito de asilo a pessoas perseguidas (Hb 11.31; Tg 2.25). O historiador Eduardo Hoornaert afirma que os missionários jesuítas conseguiram, por um tempo, transformar as aldeias indígenas em “asilos”, ou territórios livres em que os indígenas se tornavam intocáveis pelos seus perseguidores. Contudo, constata o mesmo autor, o direito de asilo no Brasil não se aplicava aos escravos. Decretaram as ordenações filipinas: “Se o escravo (ainda que seja cristão) fugir a seu senhor para a igreja, acoutando-se nela para se livrar do cativeiro em que está, não será por ela defendido, mas será por força tirado dela” (HOORNAERT, 1978, p. 125). Eis a experiência de negação da hospitalidade por parte da igreja.

Durante a ditadura civil-militar no Brasil, depois de 1964, pessoas politicamente perseguidas refugiavam-se nas igrejas, ambientes considerados seguros e protegidos. Era a igreja exercitando a hospitalidade.

Nas romarias dos trabalhadores e das trabalhadoras sem-terra, que percorriam grandes distâncias no contexto das mobilizações em favor da Reforma Agrária na década de 1980, essas multidões de caminhantes eram hospedadas pelas comunidades cristãs localizadas próximas ao roteiro da caminhada, providenciando alimentação e repouso.

Se a igreja cristã nasceu no momento em que a xenofobia foi superada na relação entre judeus e gentios, que passaram a conviver pacificamente no seu dia a dia apesar de todas as suas diferenças, cabe resgatar o conceito de hospitalidade para as comunidades cristãs da atualidade, que também são frutos da mensagem da ressurreição de Cristo.

Como fazê-lo na prédica desta Páscoa? A pregadora e o pregador terão a sensibilidade de levar em conta o contexto específico de cada comunidade, o momento histórico em que estamos vivendo de pós-pandemia e de polarização política, e terão a sabedoria de apresentar para a comunidade os desafios que ela tem condições de assimilar e suportar neste momento. Importa não transformar o culto de Páscoa em cobranças que deixarão as pessoas ouvintes com sentimento de culpa e impotência. Cabe exercitar o empoderamento da comunidade para que ela, positivamente, e com o sentimento da alegria que provém da superação de barreiras (como está sugerido nas leituras do AT e NT) possa vislumbrar pequenas e grandes vitórias sobre nosso jeito xenofóbico de viver e de ser comunidade. Importa incentivar a comunidade a colocar-se a caminho de uma vida comunitária genuinamente cristã, no sentido de como o apóstolo Pedro ensina: aberta ao estranho. Pois a mensagem da ressurreição de Cristo é força geradora de comunidades que têm a característica genuína da hospitalidade.

4. Imagens para a prédica

Na intenção de contribuir para a moldagem da prédica, apresento dois fatos. O primeiro pode servir para nos mostrar onde, em geral, estamos com a nossa xenofobia e pode nos desafiar a renunciar a uma identidade de grupo excludente. O outro pode servir para nos mostrar a possibilidade de superação do nosso medo do estranho e mostrar a possibilidade de exercício da hospitalidade.

Em certa comunidade da IECLB, um jovem colaborador estava incumbido do trabalho com os confirmandos e as confirmandas. Nos sábados de manhã, reunia-se com o grupo no salão comunitário, ensinava, cantava, brincava, fazia dinâmicas, de modo que os encontros se tornavam bem animados. As janelas do salão davam para a rua. Na rua geralmente estavam alguns adolescentes que cuidavam dos carros estacionados. Esses, atraídos pelos sons dos cantos e das brincadeiras, postavam-se curiosos nas janelas para observar o que ali acontecia. O jovem colaborador começou a convidá-los para entrar e participar das atividades. Não se passaram muitas semanas até que o colaborador foi chamado pela diretoria da comunidade para lhe dizer o seguinte: “Não vamos misturar as coisas; você está encarregado de trabalhar com as nossas crianças; vamos deixar o pessoal da rua fora disso”.

Na cidade de Gravatá, Pernambuco, nasceu uma nova comunidade da IECLB. Ela é fruto da mensagem da ressurreição de Cristo, mensagem essa tornada concreta por meio de um projeto diaconal-missionário de iniciativa da diaconisa Gerda Nied, desenvolvido a partir do ano de 1996. O projeto envolvia principalmente crianças e mulheres. O endereço da comunidade é a favela do bairro Riacho do Mel. Os membros da nova comunidade são habitantes dessa favela. Sobre o culto de Páscoa do ano de 1997 a irmã Gerda escreve: “Tivemos um momento de celebração significativo e uma festa alegre, que igual o povo de Riacho do Mel nunca havia presenciado” (NIED, 2017, p. 167). Num outro encontro, a Maria Joseja subiu numa cadeira e declarou aos presentes: “Já me sinto uma luterana” (p. 173). Outras pessoas manifestaram o mesmo sentimento e alguém declarou: “Para nós nasceu o sol” (p. 173). Após um culto de Natal na favela, as pessoas reunidas criaram uma versão adaptada de um hino da IECLB: “Aqui nós temos lugar, nós temos lugar aqui. Aqui nós somos felizes, não vamos sair daqui” (p. 182). Irmã Gerda também relata: “Maria Joseja, Ana das Graças e Risomar são as primeiras três que manifestaram o desejo de participar da igreja luterana. Num ato solene, durante o culto, são acolhidas como membros e, como sinal visível da sua filiação, recebem uma Bíblia” (p. 180).

Bibliografia

HOORNAERT, Eduardo. Formação do Catolicismo Brasileiro, 1550-1800. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1978.
NIED Gerda. Apesar de tudo abraçar a vida. 2. ed. rev. e ampl. São Leopoldo: Sinodal, 2017.
STEGEMANN, Ekkehard W.; STEGEMANN, Wolfgang. O nascimento do cristianismo. Estudos Teológicos, v. 40, n. 3, p. 74-90, 2000. p. 78ss.


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Autor(a): Rodolfo Gaede Neto
Âmbito: IECLB
Área: Celebração / Nível: Celebração - Ano Eclesiástico / Subnível: Celebração - Ano Eclesiástico - Ciclo da Páscoa
Área: Governança / Nível: Governança - Rede de Recursos / Subnível: Governança-Rede de Recursos-Auxílios Homiléticos-Proclamar Libertação
Natureza do Domingo: Páscoa
Perfil do Domingo: Domingo da Páscoa
Testamento: Novo / Livro: Atos / Capitulo: 10 / Versículo Inicial: 34 / Versículo Final: 43
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 2021 / Volume: 46
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 68587

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