A carne, o jejum e a justiça!
Uma meditação sobre a quaresma
Concordo integralmente com a ativista social Esther Rivas: um sistema alimentar que produz pessoas obesas e famintas não pode estar certo. Parece óbvio, mas não é! Os meios de comunicação nacionais não se ocupam com outra coisa senão com a ação da polícia federal que indica que, de fato, a carne é fraca! Deveria ser óbvio, mas, ao que tudo indica, não era.
Há dias atrás (11.03.17) os principais jornais do Brasil noticiaram o alerta assustador da ONU: o mundo vive a maior crise humanitária desde a 2ª Guerra Mundial. Cerca de 20 milhões de pessoas no mundo passam fome em situação de emergência. No Brasil, segundo o IBGE (conforme dados divulgados em 2014), 7,2 milhões passam fome e 52 milhões experimentam alguma forma de insegurança alimentar.
Os jornais também dão conta de que teremos safra recorde de grãos este ano. Tornou-se lugar comum a afirmação de que o Brasil é, hoje, o primeiro exportador de proteína animal do mundo. Os programas de gastronomia infestam os canais de televisão, competindo com os programas religiosos. Produzimos riqueza na mesma proporção em que produzimos misérias: a miséria física da fome e a miséria moral de nossa existência cidadã. Fartamo-nos com a opulência da nossa produtividade e enfastiamo-nos com debates sobre cidadania e inclusão. Lc 12.20 é hoje uma pergunta para o Brasil?
Estudos dão conta de que a gordura é que atribui aquele sabor irresistível aos alimentos. A gordura é viciante (o Antigo Testamento parece ter consciência disso). Desenvolvemos uma máquina louca de produzir excessos gordurosos em nosso sistema econômico e há uma busca obsessiva para retirar a gordura que se acumula em nosso sangue. Trata-se de uma luta sem trégua entre o hedonismo da carne gorda e a ânsia por corpos “sarados”. Nos canais obscuros desta luta acumula-se o colesterol da corrupção. Sãos os “ossos” do consumo. São os pecados da carne! Dos excessos gordurosos, da obsessão pela saúde e do olhar suplicante das multidões famintas emerge a pergunta pela justiça. Esta noite pedirão nossa alma (Lc 12.20)!
De fato, os pecados da carne não deveriam ser novidade para a parcela cristã deste lado de baixo da linha do Equador. Entretanto, estamos em pleno período da quaresma, conforme o calendário litúrgico cristão. Lembrando, a quaresma é um tempo de quarenta dias que antecede a Páscoa. Assim, após o tempo de carnaval e dos excessos pantagruélicos da terça-feira gorda (o nome deriva-se do hábito de consumir pratos gordurosos nesta data), inicia-se um tempo de contenção. A característica da quaresma é a contrição, a mortificação e o jejum.
Algumas pessoas jejuam para agradar a Deus. Muitas pessoas jejuam por razões estéticas: querem “secar”. Outras jejuam porque não têm outra opção. O jejum quaresmal tornou-se uma prática corriqueira em nossos dias. Perdemos a noção do sentido do jejum. Caberia citar aqui o profeta Isaías (58.6 e 7) anunciando ao povo o verdadeiro jejum que agrada a Deus: “Não! Não é este o jejum que quero. (...). O jejum que me agrada é que vocês repartam a sua comida com os famintos (...).” Outros profetas, Oséias (cap. 6) e Zacarias (cap. 7), enfatizam: o que agrada a Deus é a misericórdia, a justiça. Parece óbvio, mas, às vezes, é preciso lembrar o óbvio.
Além da expectativa legítima de que devemos nos livrar da corrupção, seria recomendável manter uma expectativa igualmente legítima: livrar a sociedade brasileira da injustiça. Novamente, não é possível que um sistema produza, por um lado, tanto cereal e tanta proteína animal, que permite que umas poucas pessoas possam deleitar-se na gordura da corrupção e, por outro lado, condene milhões à crueldade da fome.
O Verbo Eterno (Cristo) “en-carnou-se” para enaltecer a carne, toda a carne sem distinções. Quando, porém, esquecemos isso, nos dividimos e julgamos que há corpos e carnes mais nobres: algumas para o deleite, outras para o trabalho; algumas para estética, outras para a fome; algumas para mando, outras para a obediência; algumas para a dignidade, outras para o preconceito; algumas para o lar, outras para o consumo; algumas para o respeito, outras para intolerância. Quando isso ocorre, a existência de muitas pessoas não é muito distinta da do enorme rebanho que pasta por este país e cujo número hoje excede o da população brasileira. Penitenciemo-nos, a quaresma supõe um justo jejum e não um jejum de justiça.
Valério G. Schaper
Prof. de Ética
Faculdades EST