Prédica: 1 João 4.7-21
Leituras: Salmo 22.25-31 e João 15.1-8
Autora: Anelise Lengler Abentroth
Data Litúrgica: 5º domingo da Páscoa
Data da Pregação: 03/05/2015
Proclamar Libertação - Volume: XXXIX
Viver da fonte do amor é viver comunidade
1. Introdução
Os textos são indicados para o período pós-pascal. Esse período faz parte do grande ciclo da Páscoa e vai até Pentecostes. Nele celebramos a fé e o testemunho da comunidade de discípulos e discípulas de nosso Senhor Ressuscitado. Para tal, os relatos bíblicos acima querem nos ajudar.
Há um aspecto que perpassa os três textos e que considero essencial para os nossos dias: não somos pessoas cristãs de forma isolada. A fé em Deus não é algo que podemos vivenciar individualmente, sem consequências éticas bem concretas. Vejamos!
O Salmo 22.25-31 fala do testemunho dos que sofrem por causa dos orgulhosos que os dominam. A promessa e o louvor giram em torno do que Deus faz e que lhes sacia a fome. Esse louvor acontece na reunião do povo, na liturgia da comunidade e no ensino em suas casas até para os filhos e filhas que ainda não nasceram.
No Evangelho de João 15.1-8 aparece uma sequência lógica: Jesus é a videira, a comunidade são os ramos dessa videira. Ligados, unidos à videira, os frutos serão produzidos. Ramos que são cortados, separados, secam e nada produzem. É da videira que provém a seiva, a força para que surjam os frutos. E a glória de Deus é conhecida pelos frutos que são produzidos nesse conjunto.
Na vivência comunitária, os frutos da videira manifestam-se, pois o amor que vem da seiva não é algo apenas espiritual ou um sentimento genérico. Ele tem manifestações éticas bem concretas, pois o agir de Deus sempre é transformador e relacional. E isso não é tão simples assim.
2. Exegese
Do ponto de vista formal, na Primeira Carta de João faltam quase todas as características de uma carta: não há saudação nem conclusão. O escrito mais parece uma carta de exortação a comunidades que estavam com algumas dificuldades. Uma delas parece ser a influência de pessoas hereges que tinham uma cristologia docética (4.2s), não levavam a sério a corporalidade e não observavam os mandamentos (2.3s;5.2s). Por consequência, não davam importância ao amor fraterno (4.8,20).
Conforme Lohse (p. 203), o autor da carta não é mencionado, mas deve tratar-se de alguém de grande prestígio entre as comunidades. Há uma grande proximidade entre a Primeira Carta de João e o Evangelho de João, especialmente da forma como é tratado o tema do amor fraterno em 1 João 4.20 e João 13.34s. Conzelmann afirma que 1 João “quase poderia ser denominada uma carta pastoral joanina”, na qual o viver e o agir fraterno da igreja são acentuados de forma insistente.
A época de redação e o lugar poderiam indicar a Ásia Menor no começo do século II. Provavelmente não muito tempo depois do Evangelho de João, pois quem escreve afirma que viram e testemunharam o envio de Deus do salvador ao mundo (4.14).
O texto possui uma clara estrutura argumentativa.
V. 7-10 – De forma carinhosa, o autor propõe amor fraterno entre as pessoas que são nascidas de Deus, filhos e filhas de Deus. Pois quem conhece o amor é nascido de Deus e o conhece. O amor tornou-se visível quando Deus enviou o seu Filho ao mundo para termos vida por meio dele, para sermos pessoas perdoadas.
V. 11-16 – Se Deus nos ama a tal ponto de nos perdoar, então podemos amar uns aos outros. E se amamos, Deus está conosco e seu amor realiza-se em nós (torna-se perfeito). É o Espírito de Deus que nós recebemos que nos dá a certeza de que Deus vive unido conosco. Quando alguém confessa que Jesus é Filho de Deus, Deus vive nele e ele em Deus. E nós reconhecemos o amor que Deus tem por nós e acreditamos nesse amor. Porque Deus é amor. Quem vive no amor vive unido/unida com (permanece em) ele e Deus com ele/ela.
V. 17-18 – E se vivemos unidos/unidas com Deus, então temos confiança (coragem) no dia do juízo. Porque a nossa vida é como a de Cristo. No amor não há medo. O amor perfeito afasta (lança fora) o medo. Pois o medo traz castigo. Quem sente medo ainda não está no perfeito amor.
V. 19-20 – Amamos porque Deus nos amou primeiro. Se alguém disser (testemunhar) que ama a Deus que não vê, mas não ama a seu irmão ou a sua irmã que vê, é mentiroso. Porque não dá para amar a quem não vemos se não somos capazes de amar a quem vemos. Esse é o mandamento de Cristo: Quem ama a Deus, que ame a seu/sua irmão/irmã.
Importante ressaltar que não é possível inverter a afirmação “Deus é amor” por “o amor é Deus”, pois assim estaríamos afirmando que, quando amamos, fazemos ou somos Deus. Gottfried Brakemeier diz: “O autor da carta não substitui a palavra ‘Deus’ pela palavra ‘amor’. Ele fala, muito antes, do amor de Deus (4.9), do amor que procede de Deus (4.7), do amor que o Pai nos deu (3.1). Deus não é produto da ação humana. Ele é a fonte do amor... os cristãos viram
Jesus Cristo (1 Jo 1.1ss;4.14) e nele viram o amor de Deus” (p. 138).
Sendo assim, creio que é necessário olhar mais atentamente para essa palavrinha tão usada, badalada e deturpada, o amor, na compreensão bíblica. Primeiramente, é preciso perceber que o que hoje compreendemos por amor no mundo antigo era definido por mais palavras. No mundo grego, havia três palavras com sentidos específicos, que no passar dos tempos foram traduzidas por amor. A primeira é eran, que designa o amor desejo, o amor erótico, o amor “possessivo”.
A segunda é ilein, que significa o amor desinteressado, amigo, que se preocupa com o próximo, a pátria, a natureza etc. A terceira é agapan, muito mais abrangente e rara. Pois é desse que nosso texto fala.
No contexto bíblico, esse verbo contém características específicas. No AT são pelo menos três:
• É o amor de Deus que se expressa em suas intervenções históricas, que sempre são em favor do seu povo. É amor ativo que tem como alvo uma comunidade, um grupo de pessoas. Esse amor não é momentâneo ou passageiro, mas duradouro, que permanece de geração em geração.
• É amor eletivo, que escolhe, que elege e é criador. Deus escolheu e criou o povo que resolveu amar (Dt 7.7s; 4.37; Jr 12.7s; Is 54.5-8).
• É amor misericordioso, que salva, corrige, socorre e perdoa (Dt 23.5; Is 43.25; Is 63.9). Deus ama gratuita e soberanamente seu povo e todas as pessoas.
O NT retoma essas três dimensões e as desenvolve:
• A revelação do amor de Deus deu-se em Jesus Cristo. Essa vinda inaugurou o reino de Deus. Esse reino inaugura um tempo de misericórdia, onde o arrependimento é possível por causa desse amor de Deus manifesto na cruz de Cristo. Nos escritos joaninos e especificamente em nosso texto, percebe-se a ênfase de que Deus não somente “deu” o seu Filho amado no sentido de que o entregou à morte (1 Jo 4.9), como se isso fosse apenas um fato do passado, mas revela o amor presente no viver em Cristo no cotidiano.
• O amor de Deus continua sendo eletivo e criador. Ele elegeu Jesus, seu “único ilho”, e lhe deu uma missão especial. O amor entre o Pai e o Filho é a base cristológica de João. Há uma sintonia perfeita entre aquilo que Deus quer e o que Jesus faz.
• O amor manifesto por Deus em Jesus é de misericórdia e perdoador. Não são fatos e acontecimentos do passado apenas, é realidade permanente da qual vive a igreja, mesmo sem conhecê-lo plenamente. Esse conhecer ou reconhecer o amor manifesto são a raiz e o fundamento da vida cristã e, ao mesmo tempo, sua meta e cumprimento no viver ético e amoroso, sem medo e sem exigir perfeição.
Assim expressa J. J. von Allmen: “Seja qual for a primeira impressão, a Primeira Epístola de João está preocupada sobretudo com vida concreta e comunitária; lembra aos cristãos que o amor, como Cristo compreendia, não é efusão da alma nem perfeição interior, mas é serviço fraternal: ‘aquele que ama a Deus, ame também a seu irmão’ (1Jo 4.21)” (p. 31).
3. Meditação
O amor lança fora o medo. O que isso tem a ver com o dizer de que amamos a Deus de forma abstrata e perfeita e não conseguimos amar a quem está ao nosso lado por não ser perfeito/perfeita?
O escritor Brené Brown escreveu que o medo de errar está ligado a nossos instintos primitivos de preservação. Devemos muito a ele, pois nos defende de muitas coisas. Porém o medo em altas doses nos envenena. Muitas pessoas passam a sua vida sentindo-se indignas, imperfeitas, devedoras. Sentem uma dor maior do que a dor original. Cobram-se incansavelmente, e quanto maior a dor, menos falam. Quanto menos falam, maior a dor. Poderíamos chamá-las de perfeccionistas. Veem na perfeição o único meio seguro de proteger-se das críticas, dos constrangimentos e de serem amadas. Existem pessoas assim em seu meio, em sua comunidade, em sua família?
Essas pessoas são incapazes de perceber que já afiaram o machado o suficiente e adotaram o seu limite como parâmetro para as outras pessoas. Dessa forma, é difícil para elas amarem os “imperfeitos”, pois suas metas em qualquer ação são tão elevadas, que mal conseguem deixar de estar sempre tensas e preocupadas. É difícil conviver com elas ou trabalhar a seu lado. Ao mesmo tempo em que não conseguem amar os imperfeitos, também não conseguem aceitar-se a si mesmas, pois creem que sua aceitação está baseada em algo externo, naquilo que conseguem realizar com perfeição. Dessa forma, tornam-se escravas e não conseguem sair de si mesmas, pois sua maior preocupação é: “O que as outras pessoas vão pensar?”
O que nos pode libertar de tamanha tirania? O amor que vem de Deus, que conhece a Deus e que o reconhece naquilo que ele fez em Jesus e ainda faz entre nós. Deus nos ama, pois ele é amor! E não nos ama porque somos pessoas perfeitas; ao contrário, ama-nos porque nos escolheu para ser seus filhos e filhas. Tomou sobre si os nossos erros e libertou-nos da culpa e do medo. Podemos amar, porque ele nos amou primeiro. Não agimos mais “para algo”, mas “por aquilo que já recebemos”. E podemos amar quem não é perfeito: os outros e a nós mesmos. Isso é libertador!
Amar a Deus é deixar-se mobilizar por seu amor manifesto, deixando de fazer de si mesmo o parâmetro em favor do serviço pessoal na comunidade, no conjunto de pessoas que estão ao nosso lado, sejam elas quem forem. É engaja- mento voluntário, obediente ao que Deus manifestou em Cristo e em seus mandamentos. Pois quem ama cumpre todos os mandamentos. Não é à toa que nosso texto termina com “o” mandamento de Cristo: Quem ama a Deus, que ame também a seu irmão! O amor, cuja fonte é Deus, não é sentimento ou aspiração de seres humanos sensíveis, espiritualizados ou que se julgam perfeitos. Antes é serviço concreto em favor e por causa das pessoas que sofrem. Eis o que Cristo fez durante toda a sua vida! Amar significa servir: serviço a Deus em obediência e reconhecimento a tudo o que ele nos fez e faz, servindo a quem carece de justiça, pão, dignidade, afeto.
4. Imagens para a prédica
Eu começaria a pregação propondo à comunidade um pequeno exercício. Pediria que cada um olhasse ao seu redor, para cada pessoa, e fizesse mentalmente a pergunta: Eu a amo? Se a resposta for “sim”, por quê? Se a resposta sincera for “não”, por quê? O que nos faz “escolher” pessoas para amar? Afinidades? Cor da pele? Condição social? Aparência? Conveniências? Então falaria dos significados da palavra amor no Antigo Testamento e no Novo Testamento. E então discorreria sobre o nosso medo de viver do amor que Deus nos dá. Terminaria convidando as pessoas para que se olhassem novamente e, se não houver Santa Ceia, convidaria para o abraço da paz. (Sendo fiel à exortação de 1 João, procuraria não generalizar, mas focar nas pessoas reais que ali estiverem, já que o texto foi dirigido aos conflitos existentes na comunidade.)
5. Subsídios litúrgicos
Barro potenciado?
E, no entanto, Senhor, tu és o nosso Pai, nós somos o barro e tu és o nosso oleiro, todos nós somos obras das tuas mãos (Is 64.7).
“Eu sou maior do que os outros, por isso sou o melhor”, disse um cântaro.
“Eu sou mais bonito do que os outros, por isso sou o melhor”, disse um segundo cântaro.
“Eu sou mais forte do que os outros, por isso sou o melhor”, disse um terceiro. “Eu sou mais antigo do que os outros, por isso sou o melhor”, disse um quarto. “Eu sou mais moderno do que os outros, por isso sou o melhor”, disse um quinto. “Eu tenho mais dinheiro dentro de mim do que os outros, por isso sou o melhor”, disse um sexto.
Um cântaro sábio e de boa aparência disse:
“Por que vocês são tão presunçosos e brigam entre si? Não fomos feitos do mesmo barro?
Não temos todos o mesmo valor? Só o oleiro, ele é o maior de todos.
Se nós cumprirmos as tarefas para as quais fomos feitos, Paz e alegria reinarão entre nós.”
Ó Senhor,
Tu és o divino oleiro.
Tua sabedoria é o disco da olaria. Tentações e sofrimentos são o fogo Que endurecem o barro cru.
Nós somos barro em tuas mãos. Transforma esse barro em cântaros Que sejam humildes, graciosos e úteis. Amém.
(Johnson Guanabaranam, “ Senhor, Renova-me”, Editora Sinodal, 1993)
Bibliografia
BRAKEMEIER, Gottfried. Proclamar Libertação V. São Leopoldo: Sinodal, 1979.
LOHSE, Eduard. Introdução ao Novo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 1972. VON ALLMEN, J.J. Vocabulário Bíblico. São Paulo: ASTE, 1972.
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