Prédica: Salmo 22.1-12,17-20
Leituras: João 19.16-30 e Hebreus 4.14-16; 5.7-9
Autor: Heinz Ehlert
Data Litúrgica: Sexta-feira da Paixão
Data da Pregação: 25/03/2005
Proclamar Libertação - Volume: XXX
1. Observação preliminar
Admito que a proposta de perícope para a prédica considere a contagem dos versículos conforme a Bíblia Hebraica e não segundo a edição da Sociedade Bíblica, versão de Almeida (que no mais tomo como base de texto). Esta última tem como nota preliminar o que na Bíblia Hebraica é contado como v. 1.
Vários autores de auxílios homiléticos, a que tive acesso, preferem estudar o Salmo inteiro (v. 1-32) e não apenas o trecho em pauta. Faz sentido. Mesmo assim, restringir-me-ei ao trecho indicado no presente auxílio.
Convém destacar que o trecho já foi estudado em Proclamar Libertação vol. XVIII. Recomendo, a quem tiver acesso, inteirar-se do que lá foi apresentado, uma vez que enfatiza diferentes maneiras de interpretação.
2. Considerações exegéticas
A própria perícope, segundo delimitação adotada, apresenta uma divisão em duas partes: v. 1-12 e v. 17-20.
A primeira parte, por sua vez, pode ser estruturada em três subtrechos:
a) v. 2-6: Primeira lamentação e lembrança do agir de Deus no passado do povo;
b) v. 7-11: Segunda lamentação e correspondente lembrança do agir de Deus na própria vida do salmista;
c) v. 12: Súplica pela proximidade de Deus.
Também a segunda parte permite uma subdivisão:
a) v. 17-19: Terceira lamentação – os adversários;
b) v. 20: Súplica por socorro.
A seguir, a análise dos versículos dentro dessa subdivisão.
O v. 1 é apenas uma instrução ao mestre cântico. Bem por isso na versão de Almeida não é considerada pertencente ao texto.
v. 2-6: Ao iniciar, o salmista grita a sua lamentação a Deus. Do fundo da alma lança para fora todo o desespero. Formula a pergunta: “Por que me desamparaste?”, que parece conter uma acusação. Não há razão palpável para uma auto-incriminação. Então: Por quê? Está diante de um enigma. Ainda assim: “Deus meu!”. Nenhuma salvação em vista. Pois o seu Deus está longe. Solta o bramido, clama dia e noite – e nada!
“Contudo tu és santo.” É assim como canta a comunidade de fé. Aqui começa a mudança de posição e atitude. Agregado à comunidade na lembrança de seu louvor, vai, aos poucos, encaminhar a virada: muda a posição; o seu olhar, que estava fixo em si, no seu desespero, volta-se a Deus. Ele é o Senhor, soberano. Não deve satisfação.
Mas, graças à lembrança da tradição do seu povo, consegue divisar uma saída: “Nossos pais confiaram em ti; confiaram e tu os livraste!”. Pode-se pensar em tantas situações da história de Israel, mas especialmente no êxodo.
Foi um milagre. Não é isto que busca?
v. 7-11: Imediatamente toda a atenção se volta outra vez ao sofrimento individual. Sente-se como verme. Isto porque os inimigos, sem que sejam identificados concretamente (“opróbrio dos homens e desprezado do povo”), zombam dele. Constatam que ele confiou no Senhor. E agora está desse jeito? Então a fé não valeu nada!
Mas, no momento seguinte, recorre outra vez à memória. Só que desta vez é sua história pessoal. Tem existência pela vontade de Deus (não pediu para nascer). Foi também preservado pela graça de Deus. Sugere também que por ato voluntário se entregou a Deus. Esta lembrança lhe dá nova coragem – para suplicar.
v. 12: Eis a súplica: “Não te distancies de mim!”. É o que mais atormentava: O Deus distante. Grita por socorro. A tribulação está próxima e ninguém que pudesse acudir. Expressa confiança em Deus somente.
v. 17-19: Terceira lamentação. Agora descreve os inimigos como “cães” e “malfeitores”. E a agressão é até física. Imagine-se: traspassaram mãos e pés! A pessoa é atingida por inteiro. Dói tudo, física, psíquica e emocionalmente. “Eles me estão olhando...” Tornou-se um espetáculo para os inimigos. O v. 19 chama atenção de modo especial. Como no v.17, esse versículo, que se refere às vestes e à túnica dos quais se apoderam como se fossem de um condenado, lembra forçosamente a paixão de Cristo (cf. Mt 27.35; Mc 15.24; Lc 23.34; Jo 19.24). No atual contexto soa até bastante estranho. Faltam pormenores para se ter uma idéia do que teria acontecido. Seja como for, o trecho termina com nova súplica.
v. 20: Nova súplica: “Tu, porém, não te afastes de mim; força minha, apressa-te em socorrer-me”. Diante dos inimigos poderosos, só Deus, a sua força, pode ajudar. Aí terminam solidão e fraqueza.
3. Meditação
A experiência do sofrimento é comum a todos os mortais. Desde o nascimento até a morte nos acompanha. Faz parte da vida. O sofrimento faz chorar, gritar. Acontece com o bebê, a criança, o adolescente, o adulto, o ancião e ainda com o moribundo. Tanto mais insuportável parece quando não tem explicação. Por quê? Assim gritava o salmista, assim bradou Jesus.
Compreender, enquadrar o sofrimento, conseguir-lhe um sentido seria o caminho para superá-lo. E isto, por sua vez, está intimamente ligado ao sentido da vida. Qual o sentido que vemos em nossa existência?
O crente do AT como o do NT não concebem um sentido em sua vida sem Deus, separado de Deus. Por isso também não conseguem enquadrar o sofrimento, conviver com ele longe de Deus. Deus como senhor da vida e como senhor da história. Da história pessoal, da história da humanidade, do universo.
O Salmo 22, como um dos salmos de lamentação, expressa isso de maneira singular. Sugere que seja possível à criatura humana relacionada com Deus, portanto ao “piedoso”, gritar a sua angústia, o sentimento de abandono, de perdição, ao perguntar pelo porquê. É capaz de, em rebeldia, lançar uma acusação contra esse Deus senhor da vida, da história, do universo, sem se afastar definitivamente dele.
Parece expressar o mais profundo sofrimento que o ser humano pode passar: ser abandonado por Deus! É a pior solidão que pode sobrevir. Não dá para comparar com nada. É a mais horrível perda. Infinitamente pior do que perder pais, irmãos, cônjuge, filhos, amigos...
Neste sentido está muito próximo dos sofrimentos narrados no livro de Jó, um homem que andara reto perante Deus e ainda assim se viu cair nas profundezas do sofrimento.
O salmista fica agarrado a esse Deus, recordando a história passada. Ela está aí: a do seu povo e a da própria vida. Deus é ao mesmo tempo criador e pai amoroso. Por isso a palavra de ordem só pode ser: Agarrar-se a ele e não soltar!
Jesus, ao orar na cruz, clamando as palavras iniciais desse salmo, evidenciou toda a sua humanidade/fragilidade. Foi verdadeiro homem!
Mas, igual ao salmista, também Jesus não ficou só no grito de desespero. No fim exclamou: “Está consumado” (Jo 19.30). O evangelista acrescenta que logo “rendeu o espírito”. Segundo Lucas, Jesus teria declarado isto: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23.46). Ou seja: Entregou-se confiante na mão do Pai.
Para o cristão segue disso que ele tem tanto mais motivo para permanecer firme em Deus, mesmo em toda a tribulação e sofrimento, até a hora derradeira. Uma vez, porque o próprio Filho de Deus passou por isso (Hb 4), mas, de outra parte, em vista de toda a história da salvação (redenção) em Cristo.
Recordar e sempre ensaiar isso, especialmente a oração com irmãos na fé, no seio da comunidade, é alentador. O culto é a oportunidade, além de outros encontros da comunidade eclesial. Serve para a prática da oração e ajuda na superação do sofrimento. Tirar os olhos da própria desesperança para voltá-los a Deus. Suportar o sofrimento e adquirir a paz.
A mensagem da ressurreição e da vida eterna, que é parte integrante do evangelho salvífico, é o consolo singular dos sofredores. Não há como não lembrá-la nesse contexto.
4. Indicações para a prédica
A própria data de Sexta-feira Santa, como também as leituras indicadas, tornam forçoso que uma prédica sobre esse texto se refira ao grito de Jesus, pregado na cruz.
Sugiro, pois, que para iniciar a prédica esse versículo (primeira lamentação) seja citado, declarando que esse foi o “grito” que ressoou naquela sexta-feira do alto do Gólgota. Então Jesus não ficou em silêncio o tempo todo. Mas o seu clamor foi uma oração de seu povo, justamente esse Salmo 22. O povo presente escutou só o começo. Para nós, porém, é significativo com vistas à compreensão do trecho recomendado para a pregação.
Em seguida, colocar a pergunta: O que esse salmo tão conhecido pela história da paixão nos ensina sobre o sofrimento humano?
Para desenvolver a pregação, podemos servir-nos das partes e suas subdivisões, que apontamos nas considerações exegéticas e na meditação.
Ao apontar para a seqüência de lamentação, lembrança de ajuda e súplica, encontradas no Salmo, podemos ressaltar como a oração do povo do AT nos orienta a lidar com o nosso sofrimento. O fato de Jesus ter orado justamente esse Salmo na cruz legitima essa maneira de lidar, perante Deus, com o sofrimento humano. Mostra também o que a leitura de Hebreus afirma: Jesus em tudo foi tentado à nossa semelhança, foi verdadeiro homem. Mas sobretudo ensina que, no pior sofrimento, isto é, sentir-se abandonado por Deus, ainda é permitido ao crente invocar, clamar a Deus, o Senhor, para pedir socorro. Jesus não pediu para ser tirado da cruz, nem isso aconteceu. Mas, no fim, quando exclamou “está consumado” (e “rendeu o espírito”, isto é, entregou a vida a Deus), demonstrou que foi, literalmente, consolado. Expressa a certeza de que está com Deus. Isto nos anima a seguir o seu exemplo e entregar-nos nas mãos de Deus em qualquer tribulação.
5. Subsídios litúrgicos
Confissão de pecados: Sendo Sexta-feira Santa e havendo celebração da Santa Ceia neste culto, é possível realizar, já nessa altura do culto, a confissão de pecados (comum), prevista para a liturgia da Eucaristia. Ou então formular uma confissão, onde lembramos e confessamos o sofrimento que causamos uns ao outros, a nossa omissão em consolar os sofredores, desanimados, enfermos e moribundos. Pedir perdão pelo sofrimento que causamos a Deus.
Oração de coleta: Pai celeste, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, invocamos-te para agradecer por tua palavra a teu povo, desde os tempos antigos. Ilumina-nos para compreender a mensagem a nós, contida em tua palavra, neste culto. Assiste-nos com teu Santo Espírito, para que seja estabelecida verdadeira comunhão entre nós, sob a tua palavra. Amém.
Oração final de intercessão: Solicitar aos presentes sugestões de oração ou desafiá-los a colocar os seus assuntos na oração comunitária. Agradecer pela comunidade unida (ou rogar pela unidade dos cristãos), pelos grupos existentes, rogando que sejam, sempre mais, grupos de apoio mútuo. Não esquecer de rogar pelo mundo contemporâneo e pelo sofrimento causado por conflitos armados, terrorismo e outras calamidades.
Bibliografia
MARTIN, Gerhard Marcel. Auxílio Homilético sobre Salmo 22.2-6,12,23-28. In: Textspuren. Stuttgart: Radius-Verlag GmbH, 1994.
WEISER, Artur. Die Psalmen I. In: Das Alte Testament Deutsch, Teilband 14, 4. ed. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1955.
WESTERMANN, Claus. Auxílio Homilético sobre Salmo 22. In: Calwer Predigt-Hilfen. Stuttgart: Calwer Verlag, 1962.