Quaresma - Tríduo Pascal - Tempo Pascal



ID: 2656

Números 21.4-9

Auxílio homilético

09/03/1997

Prédica: Números 21.4-9
Autor: Haroldo Reimer
Data Litúrgica: 4º Domingo da Quaresma
Data da Pregação: 09/03/1997
Proclamar Libertação - Volume:XXII

1. Introdução

Os três textos previstos para este 4a Domingo da Quaresma deveriam ser abordados em forma de conjunto, pois, na sua composição, eles constituem de fato uma unidade de complementação mútua.

O texto de pregação Nm 21.4-9 já foi tratado em dois números anteriores de Proclamar Libertação. No vol. VII, Edmundo Grübber fez um bom estudo do texto e estabeleceu a necessária releitura através do texto do Evangelho de João 3.14-21. No vol. XIII, Dario Schaeffer estudou o texto a partir do tema da libertação e da também necessária relação e leitura a partir das lutas populares. Vale a pena ler os dois estudos.

Nesses dois estudos mencionados, que seguem ainda a série de perícopes alemã, o texto estava previsto para o chamado Domingo Judica (= 5e Domingo da Quaresma). A partir do versículo do salmo que serve de lema para aquele domingo (Faze-me justiça — SI 43.1), a ênfase estava colocada em reconhecer o Deus que faz justiça na história. Na sugestão atual, i. é, para o 4Q Domingo da Quaresma, o tema do domingo, segundo a mesma tradição antiga dos nomes dos domingos da época da Paixão, é a alegria (Regozijai-vos [Is 66.10] — Domingo Laetare).


Junto com o atual lema do domingo: Se o grão de trigo não for lançado na terra e não morrer, ele continuará a ser apenas um grão. Mas, se morrer, dará muito trigo (Jo 12.24) pode-se, na liturgia inicial da palavra, dar ênfase à alegria pela libertação como alvo da ação de Deus na história e, concomitantemente, como tarefa desafiadora das pessoas. Neste caminho rumo a transformações e libertações, há dificuldades de caminhada. Na verdade, o processo é uma via árdua, que exige sacrifício e impõe provações e privações. Como estrela-guia, porém, está a libertação — da escravidão no Egito, do pecado e da morte em Jesus Cristo, das opressões e injustiças no tempo presente. O alvo é a liberdade, a terra que mana leite e mel, o muito trigo.

2. O Texto de Números 21.4-9

Números 21.4-9 é um texto inserido no contexto da peregrinação do povo de Israel pelo deserto. Tem semelhança com outros textos: Êx 16.2ss.; 17.3ss.; 32.1ss.; Nm 11.lss.; 14.2ss. Comum a esses textos é, por um lado, o fato de que o povo já está no processo de caminhada para fora da casa de servidão e rumo à liberdade. Por outro lado, nesses textos as dificuldades do processo fazem surgir murmurações contra as respectivas lideranças (contra Moisés, Arão e, de forma implícita, também contra o próprio Deus libertador). Estas podem ser interpretadas como falta de confiança em Deus, tentação, provocação e desprezo de Deus, e revolta contra ele e as lideranças. São, em todo caso, expressão de impaciência (cf. Nm 21.4).

Em geral, nessas circunstâncias de murmuração, Deus se compadece do povo e providencia o que é reclamado (cf. Êx 16.4,12; 17.6) Aqui, contudo, ele expressa a sua ira. A causa da ira divina está colocada no v. 5: O povo falou contra Deus.... Reclama-se da escassez de pão e água. Até o pão simples que têm é considerado pão vil (o termo em questão é hapax legomenon e significa ração fraca, pão de penúria [Bíblia de Jerusalém]). Pensa-se que o processo levará à morte e não à liberdade (cf. para que morramos neste deserto, v. 5). Motivos, pois, são: a mudança de percurso e consequente demora e a comida racionada. Aqui não se fala expressamente das panelas de carne do Egito nem de voltar ao Egito, mas como a realidade do presente só é vista como sendo dureza e racionamento, a ilusão de vida no Egito se torna opção (Dario Schaeffer, PL XIII, 160). Coloca-se em xeque, assim, todo o processo da libertação conduzida por Deus e pelas lideranças.

O questionamento da libertação suscita a ira de Javé. Por isso, ao invés de atender a reclamação, Deus manda serpentes abrasadoras (v. 6). Estas mor¬dem o povo e, em consequência, um grande número do povo morre. A serpente tem, desde a Antiguidade, uma grande variedade simbológica. Aqui, as mortes provocadas por suas mordidas são, sem dúvida, algo ruim. Causam a morte! Em termos de atualização e de produção de sentido do texto, podemos concordar com Dario Schaeffer (PL XIII, 162): As cobras são a consequência lógica e óbvia da atuação dos que não querem o futuro da liberdade, mas se prendem ao passado opressor: o flagelo das cobras é hoje o flagelo do consumismo, do capitalismo — a miséria, a opressão, a pobreza. Isto mata.'' Poderíamos acrescentar outros pontos: a falta de solidariedade, o modernismo conservador, o neoliberalismo cativante, etc.

Em termos teológicos, a ira de Deus e o flagelo das serpentes abrasadoras são expressão de pecado. O próprio texto aponta nesta direção: (...) havemos pecado (...) (v. 7). Deus, na sua ira, por um instante se escondeu (cf. Is 54.8) e deixou livre curso para as consequências do pecado. A falia de confiança no projeto libertador de Deus chama o castigo. E a consciência do pecado leva ao arrependimento e à busca do perdão divino. Moisés deverá ser o intermediário. Moisés ocupa aqui uma função profético-sacerdotal (veja Êx 33; Am V.lss.). Sua tarefa litúrgica é tentar mudar a postura de Deus.

Javé, porém, não retira por completo o flagelo das serpentes. Antes, dá a Moisés a ordem de fazer uma serpente abrasadora e colocá-la sobre uma haste (v. 8). (...) e será que toda pessoa que a mirar viverá (v. 8). Isso é atestado mais uma vez no v. 9: Sendo alguém mordido por alguma serpente, se olhava para a de bronze, sarava. Aqui, a serpente assume outra simbologia, talvez mais próxima do símbolo da serpente associada à medicina (símbolo da classe médica). Em vários povos da Antiguidade, cultos ligados à serpente aparecem como um meio para afastar desgraças (na arqueologia veja-se o caso da serpente de bronze encontrada em Timna, ao norte do porto de Eilat).

Conforme as formulações do v. 8, a serpente de bronze sobre a haste tem uma dimensão mágico-ritual. Aqui estamos provavelmente diante de uma expressão da religiosidade popular israelita, talvez com aspectos emprestados/trazidos de povos vizinhos. O texto de Nm 21.4-9 há de ser uma espécie de texto legitimador de tal prática religiosa associada à serpente. Com algumas variações, o texto até poderia ser classificado como etiologia dessa prática cultual. O caráter mágico-ritual está em se olhar para a serpente de bronze e ser sarado da mordida. O próprio símbolo do flagelo é usado arquetipicamente para a superação da realidade referida. É o que de forma semelhante temos com o símbolo da cruz: ela simboliza o sofrimento e a morte, mas, ao mesmo tempo, a superação destes e a vitória sobre a morte.

Em termos históricos, a ordem divina para Moisés fazer a serpente de bronze é uma legitimação de algum culto ou cerimonial religioso entre os israelitas. E tal prática não ficou somente na esfera do privado e do familiar, mas ganhou espaço dentro do próprio templo de Jerusalém. Não temos muitas informações sobre o ritual litúrgico. Mas em 2 Rs 18.4 se fala que o povo queimava incenso para a serpente, que recebeu o nome de Neustã. É interessante observar que o termo hebraico empregado para adjetivar a serpente é saraf, o mesmo usado para designar os serafins alados que o profeta Isaías vê na sua visão vocacional provavelmente no templo em Jerusalém (cf. Is 6.2,6). No texto de l Rs 18.4 se fala que Ezequias (rei de Judá entre 716-687 a.C.), no contexto de sua reforma religiosa, removeu os altos, quebrou as colunas e deitou abaixo o poste-ídolo; e fez em pedaços a serpente de bronze que Moisés fizera (...).

Tal reforma foi um primeiro intento de purificar a religião judaica de empréstimos culturais e religiosidade popular, indo no sentido da adoração única a Javé, tão fortemente propugnada no Deuteronômio. Antes da reforma de Josias e talvez ainda após esta, reinava em Israel/Judá um clima religioso politeísta e multicultual. O fato de o texto afirmar que Moisés fez a serpente de bronze há de ser uma forma rebuscada de afirmar que foi um culto introduzido pelo pessoal ligado ao sacerdócio e ao templo (a criação de novas práticas religiosas associadas ao templo em geral deriva-se da criatividade de algum sacerdote; cf. Am 4.4s.; 5.21-23 [imitação da fala de sacerdote]; Êx 32; etc.). O texto de Nm 21.4-9 talvez nem seja tão antigo (mosaico) assim, mas somente lenha sido alocado no contexto da peregrinação no deserto para dar-lhe este caráter antigo-original e também para referir o elemento de que o deserto é um lugar perigoso, infestado de serpentes e também de serpentes aladas (cf. Dt 8.15; Is 30.6; 14.29).

No nível da interpretação e atualização talvez se deva ressaltar o aspecto de que a realidade do pecado, da murmuração e da ânsia de voltar para o Egito pica muitos. Mesmo os que estão engajados na luta por vezes são mordidos e voltam atrás. Mas há uma chance de cura. Ela está em mirar a serpente de bronze. Isso deve significar algo como relembrar o processo de luta, suas dificuldades e sofrimentos, mas também trazer à memória o poder que Deus tem de libertar e curar (cf. Êx 15.26: Eu sou o Senhor que te cura). O castigo da ira divina não leva todo o povo à perdição, mas uma parte. E para os contagiados ainda há uma possibilidade de salvar-se.

3. Releitura Cristológica

O texto do Evangelho de João 3.14-21, em especial os vv. 14-15, sabidamente relê o texto de Nm 21.4-9 em sentido cristológico: E do modo por que Moisés levantou a serpente no deserto, assim importa que o Filho do homem seja levantado, para que todo o que nele crê tenha a vida eterna. Aqui o levantar aponta claramente para a cruz como processo e consequência da caminhada de libertação, como meio que traz a morte, mas também como sinal da vida plena trazido por Deus em Jesus Cristo.

O evangelista João insiste na simbologia do ser levantado (cf. Jo 12.32). Ser levantado e atrair o olhar para cima é uma simbologia para a conversão a Deus e para a possibilidade de cura. O livro apócrifo de Sabedoria (16.6-12) refere-se à serpente da seguinte forma: (...) tinham um sinal de salvação para lhes recordar o mandamento da tua lei, e quem se voltava para ele era salvo, não em virtude do que via, mas graças a ti, o Salvador de todos (...) Não os curou nem erva nem unguento, mas a tua palavra, Senhor que a tudo cura! A Mishná, na interpretação da passagem de Nm 21.4-9, refere-se mais à posição do que à própria serpente: ela cura, porque obriga a elevar os olhos, a olhar para o alto, o que quer dizer: voltar-se para Deus, converter-se a ele (veja os Salmos 123; 121 [usado na liturgia inicial]) e nele buscar a fonte de salvação.

4. Apontamentos para a Pregação

Sugiro fazer alguma dinâmica no sentido de olhar para cima. Isso poderia ser feito no contexto da leitura conjunta do Salmo 121 ou do início do Salmo 123.

Essa dinâmica poderia ser retomada depois, por ocasião da reflexão sobre o texto. Aí deveria-se trabalhar o elemento da serpente na haste como analogia para a cruz levantada. E sempre ter em vista o processo conflitivo de murmuração, cansaço, sofrimento, presente em tantas peregrinações (movimentos sociais, grupos alternativos, setores da comunidade, etc.) em processo rumo à libertação de elementos que hoje levam à morte. O olhar para cima pode ajudar a manter o rumo e compreender a verdadeira fonte da libertação.


 


Autor(a): Haroldo Reimer
Âmbito: IECLB
Área: Celebração / Nível: Celebração - Ano Eclesiástico / Subnível: Celebração - Ano Eclesiástico - Ciclo da Páscoa
Área: Governança / Nível: Governança - Rede de Recursos / Subnível: Governança-Rede de Recursos-Auxílios Homiléticos-Proclamar Libertação
Natureza do Domingo: Quaresma
Perfil do Domingo: 4º Domingo na Quaresma
Testamento: Antigo / Livro: Números / Capitulo: 21 / Versículo Inicial: 4 / Versículo Final: 9
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1996 / Volume: 22
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 13163

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