Prédica: Mateus 27.33-50
Leituras: Isaías 50.4-7 e 2 Coríntios 5.19-21
Autoria: Luiz Carlos Ramos
Data Litúrgica: Sexta-Feira da Paixão
Data da Pregação: 07/04/2023
Proclamar Libertação - Volume: XLVII
A morte de Deus
1. Introdução
A Sexta-Feira da Paixão é a mais solene e consternada efeméride do calendário cristão. Não fosse a compreensão de que esse fatídico dia se inscreve no âmago da história da redenção, seria praticamente insuportável recordar, que dirá, celebrar essa data.
O texto de Mateus 27.33-50, indicado para essa solenidade, narra o período que compreende o ato da crucificação até o momento da morte de Jesus na cruz.
A leitura selecionada do AT para este dia se encontra em Isaías 50.4-7. Ela reforça a interpretação que haveria de ficar consagrada pela tradição cristã de que Jesus era o escolhido, o Messias, que haveria de cumprir a vontade de Deus, ainda que para isso tivesse que enfrentar indizível afronta e humilhação.
E a leitura complementar de 2 Coríntios 5.19-21 sugere que toda dor e sofrimento impingidos a Jesus fizeram parte do grande propósito de Deus, a saber, que Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo (v. 19).
Essa interpretação expiatória e sacrificialista tem sido alvo de profundas e, ao meu ver, pertinentes críticas. Afinal, é óbvio que Jesus não “morreu”, ele foi morto! E por que o mataram? Foi por que Deus quis? Lendo os relatos evangélicos, fica claro que a morte de Jesus resulta de sua proclamação e encarnação do reinado (império) de Deus. Os valores desse novo mundo anunciado e vivenciado por Jesus conflitam e desafiam frontalmente a hierarquia político‑econômica e religiosa do seu tempo. No dizer de Warren Carter, “Jesus morre por causa do seu compromisso com a ordem de mundo diferente de Deus, presente e futura” (Carter, 2002, p. 617).
2. Exegese
Voltemos, portanto, um renovado olhar para o texto de Mateus 27.33-50.
Tenhamos em mente que a perícope em questão se inscreve na narrativa da paixão que já vem desde o capítulo 26 e que, no capítulo 27, compõe a seguinte sequência (cf. Carter, 2002, p. 643):
17.1-2: Jesus é entregue a Pilatos
27.3-10: O dinheiro de Judas
27.11-26 O “processo” de Jesus Perante Pilatos
27.27-44: Jesus é crucificado
27.45-56: Jesus morre
27.57-66: O sepultamento de Jesus
Jesus é crucificado
Comecemos considerando a unidade que narra a crucificação de Jesus (17.27-44).
O v. 33 aponta o lugar da crucificação: um local cujo nome macabro (Gólgota) já confere o clima tétrico do que está para se passar ali. Gólgota, do aramaico, significa “lugar da caveira” e passou para o acervo das figuras de linguagem como “lugar de suplício”. A morte por crucifixão estava entre as mais cruéis e dolorosas formas de castigo e de aplicação da pena capital. Trata-se de uma execução crudelíssima, precedida de indizíveis torturas físicas, morais e psicológicas, reservada apenas para não cidadãos e pessoas de pouco status, tais como os escravos e para os insurgentes políticos.
O clima macabro é adensado com a menção do oferecimento ao crucificado de vinho misturado com fel, no v. 34. Trata-se de uma referência a um salmo de lamentação (Sl 69.21). Jesus se recusa a beber aquela bebida amarga que era mais veneno do que analgésico.
Do alto da cruz, Jesus assiste seus algozes tirando a sorte para ver qual deles ficaria com suas vestes (v. 35). Outra referência a um salmo de lamentação (Sl 22.18). Essa é mais uma evidência de que os condenados eram crucificados nus como parte da humilhação moral imposta por uma sociedade calcada em rígidos códigos de honra-e-vergonha. A nudez, na Bíblia, é sempre associada à vergonha.
A pretensa sentença condenatória está publicada por cima da sua cabeça [...] ESTE É JESUS, O REI DOS JUDEUS (v. 37). Tal tabuleta soa como um escárnio: que rei é esse que em lugar de estar assentado em um trono está pregado em uma cruz? Soa também como um aviso: esse é o destino reservado a qualquer um que se arvore a confrontar o poderio de Roma.
Nos v. 38-43 são apontadas três categorias de pessoas que, muito diferentes de súditos leais que honram o seu rei, se põem a zombar e escarnecer do “Rei crucificado”: os ladrões, os transeuntes e as autoridades religiosas.
O v. 38 menciona os dois “ladrões” que foram crucificados, um de cada lado de Jesus, e, depois, o v. 44 descreve como esses vociferavam contra ele os mesmos impropérios tais como os demais.
O termo grego lestes, embora convencionalmente traduzido por “ladrão”, era empregado para se referir a bandidos ou, antes, a terroristas armados que defendiam a derrubada do sistema por vias violentas. Jesus, notório pacifista, enfaticamente contrário ao porte de armas e manifesto defensor da resistência não violenta que era, encontra-se aqui equiparado a esses bandidos. Em que pese a diferença substancial quanto ao método, Jesus se enquadra, sim, na categoria dos oponentes do império.
O segundo grupo, formado pelos que iam passando, o ridicularizava meneando a cabeça (v. 39). Essa atitude é considerada blasfema porque acusa o Filho de Deus de ser uma fraude: se és Filho de Deus, e desce da cruz! (v. 40). Ecos distorcidos e deturpados também do Salmo 22.
O terceiro grupo de escarnecedores é formado pelos principais sacerdotes, com os escribas e anciãos (v. 41). Aqui aparecem algumas categorias teológicas relevantes: salvação – Salvou os outros, a si mesmo não pode salvar-se; fé/crença – Desça da cruz, e creremos nele (v. 42); cristologia – Confiou em Deus; pois venha livrá-lo agora, se, de fato, lhe quer bem; porque disse: Sou Filho de Deus (v. 43).
Os eventos futuros se encarregarão de confirmar justamente o que os líderes religiosos tentavam negar a respeito de Jesus: ele é, de fato e de verdade, o Salvador; ele é, de fato e de verdade, aquele em quem devemos crer; porque ele é, de fato e de verdade, o Filho de Deus.
A morte de Jesus
Atentemos, agora, ao relato de Mateus acerca dos derradeiros momentos de Jesus na cruz (27.45-56).
Os risos e as zombarias seriam abruptamente interrompidos pelo que estava para acontecer.
De repente, as trevas cobriram a terra... e perdurou do meio-dia até às três da tarde. Escuridão, nesse contexto, pode ter diferentes sentidos simbólicos, como uma alusão ao caos primordial, à opressão e à tirania imperial, ao exílio, à injustiça e ao julgamento final (cf. Carter, 2002, p. 659). Escuridão também pode sugerir aqui a tristeza profunda que toma conta da criação e do Criador diante das consequências tenebrosas resultantes da ideologia perversa que infectou mortalmente a humanidade.
Do coração das trevas ouve-se um grito excruciante: “Eli, Eli, lamá sabactâni?” Expressão do mais profundo e aterrorizante abandono, ainda ressoando o Salmo 22: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” (v. 46).
Não bastasse o servo sofredor ver-se abandonado pelos discípulos e pelas multidões que por tanto tempo o acompanharam, agora se sente desabitado do próprio Deus.
Os poucos que permaneciam junto às cruzes, ouvindo aquele urro, ficaram perplexos. Não conseguiam entender se invocava Elias, o venerável profeta veterotestamentário, ou dizia alguma outra coisa (v. 47). Decidem então deixá-lo à sua própria sorte, agonizando e delirando, à espera, quem sabe, de que Elias viesse salvá-lo (v. 49).
Nos estertores, outros lhe oferecem, como último gesto de misericórdia (?), uma esponja embebida em vinagre, fixada na ponta de um caniço, para que sorvesse o líquido que, quem sabe, pudesse lhe trazer algum alívio (v. 48). Seguiu-se, então, outro grito lancinante e aterrador. Era Jesus entregando o espírito (v. 50).
Depois disso, o silêncio profundo...
3. Meditação
Hoje é Sexta-Feira Santa e recordamos, consternados, aquela outra sexta--feira na qual as trevas cobriram a terra. Quando o cosmos se uniu no lamento desconsolado e chorou a dor mais dolorosa de todas, a do sofredor que do alto da sua dor contempla o seu abandono: abandonado pelos seus, abandonado por todos, abandonado pelo próprio Deus.
Humilhado, ultrajado, envergonhado... exposto à execração pública, lá está alguém que ousou enfrentar o poderoso império do ódio com as singelas armas do amor. Nu e desamparado, ali jaz, pregado à cruz, o servo sofredor, homem de dores, aquele que compreendeu o que é padecer, como poucos, talvez, como ninguém.
No Gólgota, lugar de suplício e tormentos indescritíveis, o que se ouve, a princípio, são risos zombeteiros e sarcásticos de gente que foi possuída de tal forma pela ideologia da morte, que a veem como motivo de zombaria e matéria para piadas. Que bandidos milicianos truculentos se burlem de um torturado é assustador, mas até esperado. Que soldados, torturadores profissionais, façam piada com os torturados não surpreende. Mas é difícil engolir que religiosos, homens de fé, frequentadores de igreja, façam o mesmo.
As risadinhas, pilhérias e gargalhadas, de repente, são interrompidas pelo mais terrível grito que jamais se ouviu. Do alto da cruz, o torturado rasga a escuridão da dor, traspassa as trevas da cumplicidade dos comensais da morte, para, num brado lancinante, entregar seu espírito.
O único eleito de Deus também é o único preterido, abandonado (como teologava Karl Barth).
Deus, em Cristo, se vê face a face com a morte.
Naquele grito indizível, muitos haverão de ver concentrado todo o peso dos pecados do mundo, muitos haverão de identificar-se com a agonia da mais autêntica e incontestável condição humana.
Alguém que entregue assim o espírito, em tal estado de desolação e em total abandono, só pode ser divinamente humano. Aquele grito tão divinamente humano, ao mesmo tempo sublime e ínfero, fez cessar os risos, os gracejos, as zombarias... e o cosmos o ouviu, e a própria terra mergulhou no silêncio mais profundo, solene e reverente como jamais se viu.
Deus está morto!
O cosmos suspendeu a respiração, e assim permaneceu, aguardando... até que o silêncio mortal venha a ser quebrado pelo cântico novo da ressurreição.
4. Imagens para a prédica
O culto deste dia pressupõe reverente solenidade, culminando com um momento de silêncio profundo. Os gestos devem ser comedidos e as palavras, moderadas.
A música deve favorecer a introspecção e condizer com o tema.
Sugerimos que, durante a leitura do Evangelho de Mateus 27.33-50, quando for lido o v. 45 (Desde a hora sexta até à hora nona, houve trevas sobre toda a terra.), as luzes do templo sejam apagadas e permaneçam assim até o final da leitura (deve-se providenciar uma luz de púlpito, se não houver uma).
As luzes podem permanecer apagadas mesmo depois do final da leitura, durante um período em que se deve guardar profundo silêncio (sem fundo musical, sem comentários...). Sugerimos que o tempo de silêncio perdure por três minutos, numa alusão aos três dias que Jesus permaneceu sepultado.
Ao final dos três minutos de silêncio profundo, a oração que está transcrita logo abaixo nos subsídios litúrgicos poderá ser projetada e lida por toda a comunidade em uníssono. Caso a comunidade não possa projetar, mas tenha a liturgia impressa em mãos, então as luzes deverão ser acesas para que todos possam ler. Outra alternativa é escolher uma pessoa da comunidade para fazer a leitura em nome de todos os demais.
5. Subsídios litúrgicos
Oração para sexta-feira
[A seguir, trechos de uma oração escrita pelo Reverendo John Wesley em 1733, que deveria ser lida pelos metodistas sempre nas sextas-feiras (trad.: Luiz C. Ramos)]
[...] Ó Jesus, pobre e humilhado, desconhecido e desprezado, tem misericórdia de mim e permite que não me envergonhe de seguir-te. Ó Jesus, odiado, caluniado e perseguido, tem misericórdia de mim e não permitas que me envergonhe de acompanhar-te. Ó Jesus, traído e vendido a um preço vil, tem misericórdia de mim e concede-me estar satisfeito em ser como meu Mestre. Ó Jesus, blasfemado, acusado e condenado iniquamente, tem misericórdia de mim e ensina-me a suportar a oposição dos pecadores.
Ó Jesus, vestido com o hábito da reprovação e da vergonha, tem misericórdia de mim e permite que não busque minha própria glória. Ó Jesus, insultado, escarnecido e cuspido, tem misericórdia de mim e permite que corra com paciência a carreira que me está proposta. Ó Jesus, arrastado ao pelourinho, açoitado e banhado em sangue, tem misericórdia de mim e não me deixes desmaiar no extremo da provação. Ó Jesus, coroado com espinhos e insultado com zombarias. Ó Jesus, sobrecarregado com os nossos pecados e as maldições do povo. Ó Jesus, insultado, ultrajado, esbofeteado, pleno de injúrias, dores e humilhações. Ó Jesus, crucificado no lenho maldito, inclinando a cabeça, entregando o espírito, tem misericórdia de mim e conforma minha alma a teu santo, humilde e sofrente Espírito. Ó tu, que por amor a mim sofreste tamanhos padecimentos e humilhações, permite-me esvaziar-me de mim mesmo para que possa alegrar-me ao tomar tua cruz cada dia para seguir-te. Capacita-me também a suportar a dor, o desprezo e a vergonha e, se for tua vontade, a resistir até à morte.
[...] Ó Pai misericordioso, ouve minhas súplicas, pelo nome do teu Filho Jesus, e leva-nos, com todos aqueles que te hão agradado desde a fundação do mundo, à glória do reino do teu Filho. A quem contigo e o Santo Espírito, seja toda a glória pelos séculos dos séculos. “Pai nosso…”.
Bibliografia
BARCLAY, William. El Nuevo Testamento comentado por William Barclay: Mateo II (capítulos XI al XXVIII). Buenos Aires: La Aurora, 1973.
CROSSAN, John Dominic; BORG, Marcus J. A última semana: um relato detalhado dos dias finais de Jesus. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007.
WARREN, Carter. O Evangelho de São Mateus: Comentário sociopolítico e religioso a partir das margens. São Paulo: Paulus, 2002.
Voltar para índice do Proclamar Libertação 47