Prédica: Mateus 26.57-75
Leituras: Isaías 50.4-9 e Filipenses 2.5-11
Autor: Eduardo Gross
Data Litúrgica: Domingo da Paixão (Ramos)
Data da Pregação: 28/03/1999
Proclamar Libertação - Volume: XXIV
Tema:
1. Considerações sinóticas e detalhes importantes
Olhando o texto principal previsto em conexão com os paralelos nos demais evangelistas, nota-se uma convergência forte entre Mateus e Marcos. Lucas mostra distinções marcantes em relação aos outros dois sinóticos. João, conforme sua característica, apresenta uma narrativa bastante própria.
No sentido de ressaltar as características de Mateus na apresentação desta narrativa, é interessante expor as distinções principais presentes no seu texto em relação ao de Marcos — pressupondo-se a teoria de que Marcos, no mínimo numa forma primitiva, é uma das fontes de Mateus. Também são feitas algumas observações referentes a Lucas e João em relação a pontos interessantes.
No v. 57 Mateus simplesmente nomeia o sumo sacerdote Cai(a)fás, deixado sem nome por Marcos (para João, é diante de Anás que Jesus é levado primeiro). É importante notar que em torno de Jesus se reúnem todas as autoridades religiosas.
No v. 58 a finalidade da presença de Pedro no interrogatório é ver o fim — que fim? O fim do interrogatório? O fim do drama presente? Ou o próprio fim de Jesus, a sua morte? Interessante é a ênfase no fato de que Pedro fica de longe e fora do lugar do interrogatório (João ressalta isto muito mais; Pedro ali só pode chegar perto por causa da familiaridade do “outro discípulo” com o sumo sacerdote).
Os acontecimentos narrados nos vv. 59-62, que tratam das testemunhas que foram trazidas, faltam em Lucas. Talvez Lucas não tenha interesse em mostrar as minúcias do processo jurídico judaico. Mateus, pelo contrário, mesmo seguindo Marcos de perto, acrescenta alguns detalhes relativos ao processo. No v. 59 Mateus já inicia apontando a armação do processo dizendo que as autoridades procuravam desde o início um falso testemunho — enquanto que Marcos afirma somente, que queriam um testemunho — para condenar a Jesus. A impressão que dá a comparação é que em Marcos as autoridades procuravam um testemunho coerente, mas não o conseguiram porque as testemunhas diziam coisas desencontradas. Em Mateus, as próprias autoridades procuram um testemunho falso, e a questão da incoerência das testemunhas nem é mencionada. No v. 60, no entanto. Mateus ressalta que foram trazidas duas pessoas, conforme era a exigência da lei. Deste modo a armação tem uma aparência de legitimidade. (Estaria Mateus com isso dizendo que o erro das autoridades religiosas de Israel era a falsificação da interpretação da lei, em vez de seu cumprimento? Cf. Sermão da Montanha...)
O v. 61 apresenta uma pequena sutileza que também é reveladora. Para Marcos, as testemunhas dizem que Jesus afirmou positivamente que destruiria o templo e o reconstruiria. Para Mateus, as testemunhas dizem que Jesus reivindicou o poder de destruí-lo e reconstruí-lo. Marcos, além disso, é mais minucioso aqui, distinguindo entre um templo feito por mãos humanas e outro não. Será que Mateus não faz tal distinção entre um templo divino e um construído pelo trabalho humano? Em todo caso, o testemunho das pessoas é mais sóbrio em Mateus, e parece ter coloração mais apocalíptica em Marcos.
No v. 63 o paralelo se restabelece entre os três evangelistas. Mateus novamente traz mais minúcias jurídicas, ao apresentar o sumo sacerdote conjurando em nome de Deus. O texto não diz por que Jesus silencia diante das acusações; será que ele não quer fazer parte de um jogo marcado?
A resposta de Jesus à pergunta sobre se ele é o Cristo, no v. 64, é diferente em todos os evangelistas. Enquanto para Marcos Jesus é categórico (Eu sou!), em Mateus está uma fórmula indireta (Tu dizes...). Lucas é o mais oblíquo dos sinóticos com a afirmação teológica: Mesmo se eu disser, vocês não vão crer de qualquer modo....
Mas os três sinóticos concordam na referência que se faz no v. 64 à glória do Filho do homem, sentado à direita de Deus (do poder, na linguagem respeitosamente indireta de Mateus e Marcos), e de sua vinda nas nuvens. Particularmente quanto ao texto de Mateus é interessante observar que a pergunta do sumo sacerdote é sobre quem Jesus é, mas este responde dizendo que se verá o Filho do homem vindo em nuvens. O texto não apresenta uma identidade imediata entre Jesus e o Filho do homem! Isto parece ser uma proposta que deve ser ratificada ou não pelo ouvinte de Jesus, respectivamente pelo leitor do Evangelho.
Os vv. 65-68 apresentam novamente um quadro mais detalhado em Mateus e Marcos, ressaltando-se o ato simbólico de rasgar as vestes leito pelo sumo sacerdote. A Lucas isto parece pouco importante, de modo que para ele as palavras do sumo sacerdote são assumidas por todas as autoridades em conjunto. Em todo caso, há concordância geral no fato de que a acusação a Jesus é de blasfêmia (embora Lucas não cite esta palavra). No v. 66 aparece a referência à morte: mas, enquanto Mateus parece reconhecer que a efetivação da pena não é possível só a partir das autoridades religiosas, em Marcos é dito explicitamente que Jesus foi condenado ali. Os vv. 67-68 apresentam a humilhação de Jesus, mas também com uma diferença sutil. Em Mateus se pede de forma mais irônica que Jesus profetize algo muito concreto: quem está batendo nele; enquanto que em Marcos a ordem dos torturadores é simplesmente que ele profetize.
()s vv. 69-75 apresentam a situação de Pedro durante o interrogatório (em Lucas esta cena é apresentada antes). No v. 70, a negação de Pedro recebe uma ênfase ao se afirmar que ela é feita não só à serva que interroga, mas diante de todos — há, pois, muitas testemunhas. Em Mateus e Marcos, Pedro diz não saber do que a mulher está falando, em Lucas a afirmação já desde o início é mais forte, dizendo que ele não conhece Jesus. Enquanto que em Marcos a mesma serva insiste mais tarde, em Mateus é outra que reafirma a participação de Pedro (há, pois, mais testemunhas da negação). No v. 72 aparece o caráter formal da negação de Pedro: ele jura que não conhece o homem. Juramentos e anátemas são repetidos de novo em Mateus, em Marcos só aparecem quando o grupo acusa Pedro de participação no movimento de Jesus.
O v. 75 apresenta o mais interessante paralelo entre Mateus e Lucas — justamente porque suas narrativas normalmente são bastante distintas: nos dois evangelhos o chorar de Pedro é caracterizado como amargamente.
2. Considerações teológicas
Estamos diante de um texto que revela o grande problema central do cristianismo: a cristologia. Quem é Jesus? A pergunta do sumo sacerdote ao próprio Jesus é a pergunta que as primeiras comunidades cristãs tinham de responder. Esta também era a pergunta com que cada crente individual tinha de lidar, para poder responder com fé diante da reivindicação de verdade bem particular da mensagem cristã frente a outros credos. Para não negar a Cristo, como fez Pedro, cada pessoa tinha de poder afirmar sua divindade.
A narrativa do interrogatório de Jesus, por si mesma, não apresenta uma resposta simples a essa questão complexa. Jesus mesmo não responde quem ele é — pelo menos não na narrativa de Mateus, que serve de base para a reflexão do domingo. Ela não apresenta tal resposta simples porque Jesus é aqui retratado de forma a ressaltar a sua humanidade. Ninguém aqui confessa que Jesus é o Cristo ou o Filho de Deus. O próprio discípulo que está mais próximo dele neste momento o nega pública e seguidamente. As únicas pessoas que falam algo do poder de Jesus são testemunhas falsas, preparadas para conseguir a condenação que as autoridades religiosas desejam. Mais ainda do que a humanidade de Jesus, o texto revela a situação desumana a que ele é rebaixado — é batido, humilhado, sua personalidade profética é caricaturizada.
Desta forma, o texto mostra como a negação de Pedro, embora apresentada com toda a dramaticidade que caracteriza o exemplo do que não deve ser feito por quem quer ser seguidor ou seguidora de Jesus Cristo, não é um ato isolado na história. A situação do momento vivido por Pedro é também a situação da comunidade no momento da redação do Evangelho, no clima desfavorável ao cristianismo do Império Romano especialmente em meio aos confrontos com o judaísmo, como é o caso na comunidade de Mateus. Ela é ainda a situação tia pessoa que quer ser cristã hoje, diante das muitas propostas existenciais e religiosas oferecidas. Confessar que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, o Verbo encarnado — isto pode ser fácil na teoria (embora nem tanto) e nas horas boas (embora nem sempre); mas é muito difícil quando se está diante da perseguição ou outras formas de consequências pessoalmente desvantajosas.
A tradição luterana tem enfatizado que a revelação não acontece em glória, mas, pelo contrário, se mostra na cruz. O texto previsto aponta também para isto. A afirmação da identidade entre o Jesus interrogado, batido e humilhado e o Filho do homem com poder, posto à direita de Deus, é uma afirmação que exige fé. Não está imediatamente à vista. Essa fé assume um caráter de compromisso pessoal, o compromisso de se sustentar publicamente a participação no movimento de Jesus, apesar das consequências possivelmente desvantajosas. Contra qualquer tentativa de glorificação do ato de fé, contra a pretensão de que a fé é uma resposta ufanista ou emocional a algum grande milagre, alguma cura, alguma manifestação de prosperidade individual, contra a ideia de que a fé se manifesta numa conversão pública após uma pregação sentimentalista — contra tudo isto está o exemplo da fé sob a cruz demonstrada por Pedro: mesmo que a palavra fé não apareça escrita, ela aqui está representada pictoricamente. Pedro chorou amargamente: é o retrato da fé despojada, da fé arrependida, da fé sincera, da fé colocada sob o símbolo da cruz.
3. Reflexão sobre o caráter litúrgico do dia
A indicação do texto do interrogatório de Jesus, junto com os demais textos que ressaltam a humilhação ou o esvaziamento de Deus na encarnação, mostra que a denominação de Domingo da Paixão fica ressaltada em relação à de Domingo de Ramos. Se as celebrações de Ramos mostram um certo caráter festivo — tanto pelo fato de haver o costume de pessoas trazerem ramos ou as igrejas serem enfeitadas com palmas quanto pelo fato de haver comunidades onde se celebra a confirmação —, o texto convida muito mais a uma meditação despojada e a uma confissão pessoal. Neste sentido, no caso de haver confirmações neste dia pode-se ressaltar esse caráter de compromisso apontado pela narrativa. Quanto à apresentação da leitura, seu caráter dramático favorece muito uma representação teatral — há diálogos, há duas cenas distintas e complementares, há efeitos cênicos (p. ex. a prisão e a condução de Jesus; o sumo sacerdote rasgando suas vestes; o galo cantando).
As representações encenadas da Paixão, aliás, são tradição antiga na Igreja, e também na tradição luterana:
A narrativa da Paixão do Evangelho de São Mateus já era declamada no séc. 4 durante a Semana Santa, provavelmente como um recitativo. Desde o séc. 12 os diferentes papéis eram divididos entre os atores. (...) Ao invés do latim. Lutem usou o alemão vernáculo e concedeu a parte do coro à congregação. Johann Walter, um amigo de Lutero, compôs a primeira Paixão Protestante Alemã de São Mateus em 1530. (Udo Unger, apresentação na contracapa do CD de Heinrich Schütz, St. Matthew Passio, MoviePlay do Brasil, série Digital Concerto.)
O costume de ler a Paixão dos evangelhos de São João e São Mateus remonta pelo menos ao séc. 5. Ler tavez, não seja o termo correto, uma vez que as palavras eram entoadas numa única nota com inflexões nos lugares de pontuação. (...) Enquanto isso [, após a Reforma], o oratório tinha se desenvolvido na Itália, inicialmente como um meio não-litúrgico de encorajar a devoção, mas mais tarde como um equivalente religioso da ópera. Oratórios durante a Paixão tinham tendência a ser reflexivos e abstratos, aludindo às narrativas bíblicas sem citá-las. Na Alemanha elas eram representadas na igreja, não como substitutos para as encenações tradicionais, mas como auxílios adicionais para a devoção. (Clifford Bartlett, texto explicativo acompanhando o conjunto de CDs Matthäus-Passion — Passio Domini Nostri Jesu Christi secundum evangelistam Matthaeum, p. 20-21, gravadora London.)
Importantes exemplos de composições recitativas sobre o texto do evangelista Mateus oriundas da tradição luterana reconhecidas pela crítica musical são as paixões de São Mateus compostas por Heinrich Schütz e Johann Sebastian Bach.
4. Elementos com vistas à pregação
* A plena humanidade de Jesus: o texto apresenta Jesus como ser humano, o sofrimento de um justo colocado num julgamento marcado — é o que o texto apresenta, independentemente do fundo histórico da questão; sugiro tematizar esse drama da falta de poder do próprio Jesus, reveladora do esvaziamento de Deus com a encarnação.
* A presença de Deus na ausência de Deus: o paralelo com o texto de Isaías mostra a confissão do fiel que crê na presença divina em sua vida apesar da aparência contrária da realidade circundante.
* O caráter conflituoso da fé: o choro de Pedro como confissão; o paralelo entre arrependimento e fé; a dificuldade, ou melhor, a impossibilidade humana da fé — a fé como dádiva do Espírito Santo (o galo como instrumento do Espírito, que desperta a lembrança da advertência de Jesus!).
* O perigo da religião: os primeiros que querem condenar Jesus são os poderes religiosos, são eles que entregam o servo de Deus aos poderes civis para executar a sentença (mais uma vez, independentemente do fundo histórico da questão); Pedro, a pedra fundamental da Igreja, é o exemplo da negação pública da fé.
* A esperança contra a esperança: aqui, só a promessa de Jesus de que se verá o Filho do homem com poder (v. 64) e o choro de Pedro demonstram esperança (v. 75). A esperança depende da graça divina, não das aparências. O canto das primeiras comunidades cristãs (Fp 2.5-11) demonstra essa esperança na confissão da divindade do servo de Deus sem poder.
Proclamar Libertação 24
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia