Quaresma - Tríduo Pascal - Tempo Pascal



ID: 2656

Marcos 16.12-18

Auxílio Homilético

12/04/2015

Prédica: Marcos 16.12-18
Leituras: Salmo 133 e 1 João 1.1-2.2
Autor: Everton Ricardo Bootz
Data Litúrgica: 2º domingo da Páscoa
Data da Pregação: 12/04/2015
Proclamar Libertação - Volume: XXXIX

1. Introdução

O texto do Salmo 133 descreve uma vida comunitária idealizada, em que não há desavenças nem dúvidas. Seria como uma vida familiar (v. 1), prazerosa (v. 2); uma vida como deveria ser (v. 3a). Se assim fora, seria sintoma de uma vida abençoada por Deus. O texto do Salmo, por conseguinte, insinua como deveria ser a vida comunitária dos discípulos, que será denunciada por Jesus como indevida no texto de Marcos. Por consequência, o texto também espelha como deve ser a nossa vida em comunidade.

O texto de 1 João 1.1-2.2 exige igualmente uma relação comunitária de confiança mútua como pressuposto de uma vida satisfatória (v. 3s). A união fraterna [com Cristo] produz clareza (v. 5,7); a contrario sensu, uma vida de palavras e ações não fraternais denuncia uma comunhão em escuridão (v. 6,8,10). A possibilidade de sintonizarmos nossa vida com a luz ou com a escuridão passa pela confissão (1.9, 2.1-2). Ou seja, o pecado distancia-nos uns dos outros, for- mando uma vida comunitária desestruturada, de traição; por outro lado, se confessarmos esse pecado (social), purificando-nos da mentira e da traição, então há possibilidade de uma vida comunitária benfazeja.

O texto de Marcos 16.12-18 descreve uma vida comunitária dos discípulos desestruturada, a ponto do próprio Jesus ter de intervir, manifestando-se em meio à comunidade reunida para fazê-los tomar tento de suas atitudes não condignas (v. 14). Jesus repreende-os por não ter fé (confiança em Deus) e por não ter fé uns nos outros (confiança mútua, v. 13). Eis as bases de uma vida comunitária adequada e suficiente.

2. Exegese

Como sabido, o final de Marcos não fazia parte de seu escrito original (KÜMMEL, p. 117). A ausência de 16.9-20 em manuscritos antigos, o emprego linguístico diferenciado, entre outras características textuais (estilo) e históricas, provam que esse final não é original. A exegese está inclinada a acreditar que Marcos quis terminar seu evangelho em 16.8.

De onde proveio o final, então? O texto de Marcos 16.9-20 é um mosaico de material oriundo principalmente do Evangelho de Lucas (EISELEN, p. 1020s), assim como de fontes não canônicas. Os v. 9 a 11 resumem o texto de Lucas 24.1-12 (sobre a visita de Maria Madalena ao sepulcro, domingo pela manhã), enquanto que os v. 12 e 13 de Marcos resumem o texto sobre os caminhantes de Emaús, texto subsequente em Lucas (24.13-35). Logo depois, temos a aparição de Jesus em meio aos discípulos, em Mc 16.14, breve referência ao texto de Lc 24.36-49. Os v. 15 e 16 são oriundos do Evangelho de Mateus 28.19-20, onde Jesus envia seus discípulos a todo o mundo.

Temos assim esta configuração:

Acréscimo  Fonte provável   
Maria Madalena  Mc 16.9-11  Lc 24.1-12
Caminhantes de Emaús  Mc 16.12-13  Lc 24.13-35
Manifestação de Jesus
em meio à reunião dos discípulos 
 Mc 16.14  Lc 24.36-49
Envio  Mc 16.15-16  Mt 28.19-20

O acréscimo textual é posterior ao texto do Evangelho de Marcos. Esse é considerado do ano 70, enquanto aquele, do segundo século, pois o Evangelho de Mateus é considerado posterior ao de Marcos (mais ou menos no final dos anos 70) e o Evangelho de Lucas, também posterior ao de Marcos, dos anos 80. Se quem o acrescentou conhecia o Evangelho de Mateus e o de Lucas, isso signiica que a origem de nosso texto é posterior aos dos anos 90; alguns exegetas consideram-no ainda mais tardio, de meados do segundo século (150 d.C.).

Esse dado cronológico pode ser relevante quando consideramos que a mensagem do texto acrescido pode ter seu sentido melhor compreendido a partir de seu contexto histórico. Pois será a partir da nona década que os judeus e cristãos serão especificamente perseguidos pelo Império Romano. A perseguição será deflagrada pelo imperador Domiciano (DURANT, p. 289ss) ao se considerar um deus e exigir adoração de seus súditos. Os judeus e os cristãos vão se recusar a adorá-lo, e, a partir de 93, Domiciano vai mandar executar aqueles que se recusarem a oferecer sacrifício diante de seus altares, onde se localizavam as imagens do imperador.

Muitos cristãos pereceram, determinados por sua fé a ter somente Cristo como seu único Kyrios. Tornaram-se mártires. Não podiam adorar outro senão “o” Senhor Jesus. Mas muitos negavam a fé com medo da morte: morte de si e de toda a família. Nesse contexto, surgem textos cristãos inspirando a determinação das comunidades para posicionar-se firmes na fé, não temendo a reação do imperador. Para auxiliar esse posicionamento, recomendava-se amparo na confiança fraterna (comunhão semanal). O aconchego dos irmãos fortalecia o vínculo da fé. O Evangelho de João e o livro de Apocalipse são exemplos de textos motivado- res. Lembram da fidelidade de Cristo para com eles, de seu amor por eles, amor que o levou ao sacrifício, à morte na cruz. Agora, em meio a tempos difíceis, Cristo (através de seu corpo, a reunião dos irmãos) pede o mesmo. O texto de Marcos 16.9-20, onde se situa o texto para este domingo, pertence a esse contexto social. Foi acrescido com o fito de alertar os leitores da época de Domiciano, não mais os ouvintes da década de 70. Para tempos distintos, mensagens distintas. Como o evangelho dificilmente poderia ser alterado, achou-se melhor aditá-lo.

A partir de 96, com a morte de Domiciano, o cristianismo começa a crescer (DURANT, p. 596ss). Esse crescimento não terá reversão, culminando na necessidade de ser considerado, 200 anos depois, a religião oficial do Império Romano. Os textos que alertavam para a importância da fé em Deus e para uma vida comum-unitária foram importantes para a resistência e, consequentemente, para esse crescimento vertiginoso, a despeito das perseguições que se mantiveram aqui e ali. O elemento de comunismo penetrou nas reuniões (eklēsiai) cristãs, transformando as refeições em momento de amor fraternal e compartilhamento, normalmente aos sábados à noite. A comunhão de irmãos (eklēsia) e a partilha da Santa Ceia (corpo de Cristo) fortaleceram as pessoas em sua decisão de manter-se íntegras à fé de seus pais.

Essas duas características estão presentes em nosso texto: o pedido do autor para que as pessoas mantivessem a fé em Cristo e a fé uns nos outros. Somente assim, os momentos de crise, tais como os dos discípulos após a morte de seu mestre e a perseguição iminente dos mesmos ou como os de Domiciano, poderiam ser superados. Eis o contexto de nosso acréscimo; eis a sua mensagem eclesial.

3. Meditação

Tive o privilégio de conhecer a Índia quando participei de um programa de estudo da Federação Luterana Mundial – “Vida Espiritual em Comunidade” – entre 2000-2002. O estudo envolvia a visita a diferentes igrejas luteranas dos diferentes continentes. Quando da visita à Índia, tivemos a oportunidade de conhecer as três igrejas luteranas do país, inseridas na cultura e na política indianas. A percentagem do número de adeptos das diferentes religiões era intrigante: 80,3% era hindu, religião oficial da Índia; o islamismo perfazia 11%; então vinha o cristianismo com 3,8% (católicos e protestantes); e 5%, as demais religiões (budismo, jainismo, sikhismo). Era estranho conhecer um país moderno com uma religião oicial. No Brasil, a separação entre Igreja e Estado aconteceu no nascimento da República em 1889. Mas a Índia tem no hinduísmo sua religião oficial.

Isso encerra algumas implicações que até então desconhecia. Umas inusitadas, como por exemplo a entrada no país; para entrar no país, nós, os participantes do programa da Federação Luterana Mundial, tivemos que declarar o motivo da visita como turismo. Pois se disséssemos que estávamos realizando a viagem por motivo religioso, não receberíamos o visto de entrada. Outras implicações, contudo, eram mais dramáticas, como por exemplo, se um hindu quisesse renunciar à sua religião hindu (oficial), aceitando outra, teria de chegar diante de um juiz num fórum cível e assim o declarar. Nesse caso, perderia alguns privilégios que apenas um cidadão hindu tem: assistência à saúde, à escolaridade e à comida. Como o cristianismo cresce entre os dalits, povo à margem das castas sociais mais importantes, quando esses se convertem ao cristianismo, perdem tais direitos sociais. Por ser um povo de miseráveis, tais direitos são de suma importância para a sua sobrevivência.

Daí minha surpresa ao perceber que o crescimento do cristianismo ocorre na Índia a despeito da perda de direitos inestimáveis. E qual a razão desse descompasso? A mensagem do cristianismo é tremenda para a cultura hindu, estruturada em castas. Pois nessa estrutura sociocultural os dalits não são considerados, enquanto que todas as pessoas pertencentes às outras quatro castas são tidas como senhores. A mensagem cristã transmite a ideia de que os dalits são iguais às demais pessoas, pois somente Cristo é Senhor. Essa libertação cultural é tão arrebatadora para esse povo, que eles renunciam até a seus direitos mais fundamentais para receber em troca algo mais fundamental: a dignidade de ser reconhecido como irmão num mesmo patamar do outro irmão quando se dirige à comunidade (eklēsia).

É na comunidade cristã que o dalit e seus familiares encontram suporte para viver, pois a vivência comunitária partilha tudo entre todos, tal como nas comunidades primitivas. Ele pode perder direitos, de um lado, mas ganha direitos mais significativos, de outro. É como o grande contingente de salmão que logra desafiar a correnteza, nadando rio acima para a desova; ou como o barco que singra com a vela estufada de encontro ao vento. É na fé (libertadora) em Cristo, como único Senhor, e na fé (confiança) na comunidade, como meio social de apoio, que o cristianismo cresce entre os dalits. Um povo simples, humilde, mas que está redescobrindo sua importância diante de Deus a partir da mensagem redentora do cristianismo.

A fé em Cristo, segundo a mensagem do texto acrescido de Marcos 16.9- 18, é aplicável em tempo de adversidade. Nele estão presentes dois ingredientes fundamentais: a fé em Deus (fé boa) e a fé no outro (boa-fé). A fé de que a vida vale a pena a despeito da dor; e a fé de que a construção do reino de Deus aqui e agora, de que um outro mundo é possível. A fé em Cristo, como único Senhor de nossas vidas, e a fé de que o ser humano (o outro) pode transcender a si e a seus deuses pessoais. A fé que a vida comunitária pode ser mais do que simples reunião de pessoas; pode ser um espaço de apoio e de partilha; um espaço de amor fraterno; um espaço de coniança em meio a um mundo tão desconiado. Um espaço bom e agradável como azeite perfumado (Sl 133.1); um espaço de alegria, de união uns com os outros, pois só assim teremos a chance de conhecer a luz de Deus e ser um com ele (1Jo 1.3s).

A mensagem pode terminar no parágrafo anterior, mas é possível dar continuidade e complementar essa parte com outro inal (a exemplo do autor do acréscimo a posteriori). Pode-se lembrar que, no texto de Marcos, Cristo critica veementemente a falta de fé dos discípulos e a falta de coniança entre os mesmos. Não poderia essa crítica ser repassada a nós e a nossas comunidades? Somos uma comunidade que conia uns nos outros? Temos a Jesus como nosso único Senhor (em confronto com as nossas prioridades)? Os dalits brasileiros encontram refúgio e apoio no interior de nossas igrejas?

4. Imagens para a prédica

Conta a história que, há mais de 2.000 anos, o filósofo grego Diógenes, de Sinope, andava pelas ruas de Atenas em pleno dia com uma lanterna acesa. Quando o interrogaram acerca da razão para tal atitude, ele respondeu: “Estou à procura de uma pessoa honesta”. Essa história pode ser relacionada ao texto de 1 João e interligada com a história dos dalits na Índia. A despeito de ser difícil encontrar pessoas fraternas no mundo vigente, podemos encontrá-las na vida comunitária. Ali há luz, que é Cristo.

5. Subsídios litúrgicos

Os textos fornecem versos passíveis de serem usados em diferentes partes da liturgia. Assim, sugerem-se tais subsídios litúrgicos:

a) Versículo de abertura:

“Como é bom e agradável que o povo de Deus viva unido como se todos fossem irmãos!” (Sl 133.1).

b) Absolvição dos pecados:

Querido Deus, somos uma comunidade que muitas vezes prefere viver na escuridão. Demonstramos desconfiança na convivência fraterna; outras vezes, somos traiçoeiros. É o pecado que se manifesta em nós e por meio de nós. Não queremos viver assim. Contudo não encontramos em nós força para a conversão diária. Confessamos-te essa fraqueza, pedindo pelo teu perdão, assim como tu o prometes dar em 1Jo 1.9. Amém!

c) Oração do dia:

Querido Deus, somos teu povo e tua comunidade. Preserva-nos da falta de fé em ti e da falta de confiança no próximo. Permanece unido a nós, para que possamos permanecer unidos a ti, como teu corpo, em puro amor fraternal (baseado no texto de 1 João 1 e 2).

Bibliografia

DURANT, Will. Caesar and Christ. New York: Simon and Schuster, 1944. EISELEN, Frederic Carl; LEWIS, Edwin; DOWNEY, David G. The Abingdon Bible Commentary. New York: Abingdon Press, 1929.
KÜMMEL, Werner Georg. Introdução ao Novo Testamento. 17. ed. São Paulo: Paulinas, 1982.


Voltar para índice do Proclamar Libertação 39


Autor(a): Everton Ricardo Bootz
Âmbito: IECLB
Área: Celebração / Nível: Celebração - Ano Eclesiástico / Subnível: Celebração - Ano Eclesiástico - Ciclo da Páscoa
Natureza do Domingo: Páscoa
Perfil do Domingo: 2º Domingo da Páscoa
Testamento: Novo / Livro: Marcos / Capitulo: 16 / Versículo Inicial: 12 / Versículo Final: 18
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 2014 / Volume: 39
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 34551

AÇÃO CONJUNTA
+
tema
vai_vem
pami
fe pecc

Como um perfume que se espalha por todos os lugares, somos usados por Deus para que Cristo seja conhecido por todas as pessoas.
2Coríntios 2.14
REDE DE RECURSOS
+
O Espírito Santo permanece com a santa congregação, ou cristandade, até o dia derradeiro. Por ela, nos busca e dela se serve para ensinar e pregar a Palavra, mediante a qual realiza e aumenta a santificação, para que, diariamente, cresça e se fortaleça na fé e em seus frutos, que ele produz.
Martim Lutero
© Copyright 2024 - Todos os Direitos Reservados - IECLB - Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil - Portal Luteranos - www.luteranos.com.br