A palavra “quaresma” tem sua origem na palavra latina quadragesima, e aponta para os quarenta dias que antecedem a Páscoa (descontando-se os domingos). Nos primeiros três séculos do Cristianismo, o jejum e o tempo de reflexão eram de aproximadamente três semanas. Somente com o Concílio Ecumênico de Nicéia (325 d.C.), passaram-se a se adotar os quarenta dias. Com o tempo de jejum, oração e reflexão, nós nos preparamos para a grande festa da Páscoa, marco fundamental do Cristianismo, como apontado pelo apóstolo Paulo em 1Co 15. 14: “E, se Cristo não ressuscitou, logo é vã a nossa pregação, e também é vã a vossa fé”.
Na idade média, a igreja adotava dura disciplina no período, proibindo que os fiéis se alimentassem de animais vertebrados e seus derivados (nem carne, nem peixe, nem ovos ou leite) e, assim, os cristãos tinham como única preocupação a preparação para a ressurreição de Cristo.
Para a igreja de Roma, era tempo de indulgências, sacrifícios e mortificação. Lutero se levantou contra essa forma de intermediação da igreja entre os fiéis e Deus, inclusive contra a forma pela qual o cristão deveria se relacionar com a Trindade na Quaresma.
Para Lutero, essa forma de meditação proposta pela Igreja não conduz à libertação que Cristo inaugura com sua ressurreição, pois “algumas pessoas meditam o sofrimento de Cristo indignando-se contra os judeus, cantando a canção do pobre Judas e censurando-o pelo que fez, e se limitam a isso, da mesma forma como estão acostumadas a acusar outras pessoas e a condenar e denegrir seus adversários. Isto com certeza não significa meditar o sofrimento de Cristo, e sim a maldade de Judas”. (Obras selecionadas vol. 1 p.250)
Tentar compreender a paixão de Cristo de maneira racional é impossível. Assim como esse Deus encarnado em Jesus aceitar livremente seu sofrimento, sua morte e sua ressurreição, por amor à criação não pode ser entendido pela razão. O caminho proposto pelas mortificações e abstinências pode até produzir a sensação de compreensão, pela via emocional, da Quaresma, mas não faz sentido se não estiver acompanhada de uma verdadeira profissão de fé cristã. Para Lutero, “quem considerar o sofrimento de Deus por um dia, por uma hora ou mesmo apenas por um quarto de hora, afirmamos abertamente que procede melhor do que se jejuar um ano inteiro, orar o Saltério todos os dias ou mesmo ouvir uma centena de missas; pois essa meditação transforma a pessoa em seu ser quase da mesma forma como o Batismo opera o renascimento.” (Obras Selecionadas vol 1. p.253)
Não existe possibilidade humana de compreender o sofrimento de Cristo. Nem nessa vida, nem na eternidade. Assim como não consegue o cristão não se assustar com tamanho sofrimento. Mas não foi para que nós sofrêssemos que Cristo aceitou a paixão e, sim, para que fôssemos, através da ressurreição, libertados de todo o sofrimento e de todo o pecado. E nesse amor, temos motivos de sobra para nossas meditações.
Refletir a Quaresma é exercer o batismo. No batismo, somos convidados a trazer Cristo para dentro de nossas vidas, vivendo o amor de Deus, compreendendo nossas falhas e perdoando. Aqui temos o “mote” do que pode ser uma reflexão quaresmal.
Buscar, não de maneira racional, usando o jejum, a abstinência como única maneira de se aproximar do Cristo, mas refletir sobre o sofrimento de Cristo, não pela ótica do agressor, e, sim, pelo amor de Deus, que entregou seu próprio filho para a salvação da criação. Pensado dessa maneira, o jejum e a abstinência não passam a ser o objetivo da Quaresma, e, sim, um dos meios que colaboram com a meditação.
A Quaresma nos prepara para a Páscoa. Prepara-nos para receber como herança a ressurreição, através de Cristo. Somos libertados da morte através de uma morte libertadora em sua ressurreição. Nunca compreenderemos totalmente esse significado se utilizarmos apenas as ferramentas da razão. Refletir a Quaresma é exercer nosso batismo e praticar a nossa fé. Somos eternos devedores de Cristo, que pela sua graça nos acolhe, perdoa nossos pecados e reconcilia-nos com Deus.
Esse tempo quaresmal é um momento de rever nossos caminhos, renovar a fé e exercer nosso batismo. É tempo de metanoia, de conversão, de ampliar os horizontes e de sentir que Deus nos perdoa e nos reconcilia com Ele, com o próximo e com a criação.
Quem sou?
Paulo Sérgio Macedo dos Santos, teólogo, mestrando em Ciências da Religião, casado com Selma, pai do Matheus e da Maria Clara. Gosta de teatro e música. Torcedor do Santos Futebol Clube. Membro da paróquia do ABCD, onde colaborou com a JE, e atualmente colabora no presbitério e nos cultos.