Prédica: Lucas 23.33-49
Leituras: Oseias 5.15b-6.6 e Hebreus 4.14-16; 5.7-9
Autor: Martin Norberto Dreher
Data Litúrgica: Sexta-Feira da Paixão
Data da Pregação: 29/03/2013
Proclamar Libertação - Volume: XXXVII
1. Introdução
Sexta-feira da Paixão é dia de confissão de fé. Somos perguntados sobre onde depositamos nossa fé e nossa esperança. Somos perguntados se cremos em um Deus real ou em um Deus feito à nossa imagem e semelhança. Somos perguntados por nossa relação com o primeiro mandamento do Decálogo. Quem e como é nosso Deus? Temos outros deuses ou temos o Deus que se revelou em vida, paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo? Tememos e amamos a Deus assim como Ele é? Deixamos que Deus seja Deus? Aguentamos o anúncio de que Deus tem o rosto do crucificado e que é reconhecido em suas chagas?
Somente quando fazemos essa última confissão é que estamos falando do Deus cristão. Só assim poderemos dizer as coisas como elas são: Que Deus é Deus, que eu sou criatura; que Ele é Deus, eu um pecador; que Ele salva o pecador, não o justo; que a cruz condena e julga o mundo que só nele pode encontrar salvação; que seu amor é juízo e salvação.
2. Exegese
V. 33 – Ao valer-se da expressão kranion (caveira) em vez da expressão hebraica Golgotha, Lucas lembra-nos que em Jerusalém havia sítios para os quais eram utilizadas duas designações. Não é possível afirmar com segurança o sentido da designação. Com a formulação “bem como aos malfeitores”, Lucas pressupõe que seus leitores, ou leitor (Teófilo), conheçam essa tradição. Ao ser colocado entre os malfeitores, Jesus é considerado o pior deles.
V. 34 – As palavras de Jesus estão ausentes em uma série de manuscritos importantes. Será que eles as eliminaram porque, aparentemente, estavam em contradição com as palavras de juízo (v. 28-31)? Não creio. Deve tratar-se de esquecimento do copista, repetido por todos aqueles que o copiaram. Repartir as vestes e sorteá-las é uma tradição romana.
V. 35 – Diferentemente dos outros evangelhos, o “povo” não participa da zombaria. Observo a utilização do verbo “salvar” neste e nos próximos versículos. Observe-o também o pregador!
V. 36 – “Vinagre” de vinho era utilizado como refrigerante entre os soldados. Para o leitor fica a pergunta: O refrigério busca mitigar a sede do condenado ou quer revitalizá-lo para que seja mais violentamente atingido pelo escárnio?
V. 38 – A inscrição acima da cabeça de Jesus é uma formulação romana que expressa desprezo em relação aos judeus. Certamente é autêntica. A referência que deve ter sido escrita em três idiomas só aparece em pergaminhos de menor importância.
V. 42 – Em Marcos e Mateus, os dois malfeitores debocham de Jesus; em Lucas, apenas um. Os manuscritos apresentam diversas variantes. Como interpretar as palavras do malfeitor? Talvez: “Quando vieres para instalar teu Reino”?
V. 44 – A sexta hora corresponde ao meio-dia. Os sinais no céu e as palavras do v. 45 apontam para a importância dessa morte para o mundo e para a igreja.
V. 46 – A tradição na qual Lucas se baseia sabe que o brado final de Jesus é uma oração. A oração noturna era feita por volta da hora nona. Ela é proferida acrescida do vocativo pater (pai), sempre de novo utilizado por Jesus (cf. Sl 31.5 e 6).
V. 47 – Primeiro Pilatos (v. 4,14,22), agora o oficial apresenta-se como testemunha da inocência de Jesus. Jesus convence malfeitor e executor.
3. Meditação
Lucas conhece a história da paixão segundo Marcos, mas lhe acrescenta algo mais. Desse algo mais fazem parte os versículos 46, 48 e 49 em nossa perícope. Esses versículos nos permitem dizer como Lucas entendeu a paixão de Jesus. A comunidade conhece a história da paixão como harmonia das tradições dos diversos evangelistas. Como a cena da crucificação é conhecida da comunidade, cabe ao pregador destacar a leitura de Lucas.
Lucas menciona três ditos do crucificado. Neles encontramos o cerne de nossa perícope. Podemos perguntar se Lucas tomou a liberdade de divagar. Podemos perguntar se ele inclui elementos da tradição da qual os demais evangelistas não dispunham. Podemos constatar que Lucas depende, em muitos aspectos, de Marcos. No entanto, omite o brado de Jesus, que sente abandono de Deus (Sl 22.2). Além disso, reformula o último brado de Jesus (cf. Mc 15.37). Qual a intenção de Lucas?
Há autores que pensam que Lucas quer apresentar Jesus como o protomártir. Outros afirmam que Lucas tem uma intenção apologética. Pode ser. Penso, contudo, que Lucas pretende acentuar o caráter salvífico da crucificação, seu caráter evangélico. Lembro as muitas vezes em que o verbo sozein (salvar) aparece nas formulações de Lucas. De “salvar” fala o restante do texto, mesmo quando o verbo não aparece. “Salvar” parece-me ser um verbo-chave no restante do Evangelho de Lucas. O relato de Lucas na presente perícope é anúncio/pregação. O exegeta também não consegue mais distinguir entre fato e pregação. Os dois atos estão intimamente ligados. Penso que a intenção de Lucas pode ser resumida em três substantivos: perdão, esperança e conversão.
3.1 – No texto de Lucas, mesmo que ele omita radicalidades contidas em Marcos e em Mateus, ainda se evidencia o terrível do que foi feito com Jesus. Os evangelhos não são detalhistas no tocante à crucificação. Por isso a pregação deveria evitar ser detalhista. Nós seres humanos somos mestres em descrever o sofrimento de pessoas que detestamos: quanto maior nosso ódio, tanto mais intensas as cores com as quais descrevemos seu fim miserável, seu sofrimento intenso. Os séculos 20 e 21 têm sido mestres na descrição de sofrimentos. Quando Jesus se submete à tortura, sem opor resistência, solidariza-se com todos aqueles que, ao longo da história, se submeteram ao mesmo processo de ser torturados por outros. Os companheiros de Jesus não são ladrões (Marcos), mas “criminosos”. Ao acentuar que Jesus é crucificado entre os que “com razão” sofrem a tortura, Lucas destaca que “ele não fez nada de mau” (v. 41). Mesmo assim, Jesus encontra-se entre “criminosos” (22,37). Ao longo do evangelho, Lucas disse quem era esse Jesus que agora é crucificado. Não faz sentido, é injusto, loucura aquilo pelo que está passando: escárnio e opressão têm que ser suportados pelo santo. Toda a baixeza de que o ser humano é capaz volta-se contra o santíssimo. Jesus não foi torturado apenas pelos romanos. É grande o coro dos escarnecedores, e o povo fica olhando. Os soldados não são os únicos escarnecedores. O sozein (salvar) repete-se diversas vezes para ridicularizar o “salvador” da comunidade. Os “líderes” que deram início ao processo atingem o nervo da questão, pois ele é o Messias, é o eleito, é o Filho de Deus: que faça uso de suas prerrogativas e transforme-se de réu que é em juiz! Que evidencie o erro do judiciário! É verdade que eles não sabem quem é Jesus. Mas, mesmo que seja simplesmente ser humano, Deus não quer que se toque no ser humano, que ele seja torturado. Desde que Deus se irmanou com o ser humano, o que atinge o ser humano também atinge Deus. A Sexta-feira Santa desvenda o pecado do mundo. Esse é o centro de rotação desse acontecimento que decide sobre bondade ou maldade na história da humanidade. Jesus não está a serviço de si mesmo, como lhe é sugerido. Ele nos ajuda, nos serve. Não desce da cruz para assumir a função de juiz. Sofre e torna-se intercessor. Ali onde acontecem a confissão de culpa do criminoso e a absolvição por parte do sumo sacerdote, Ele implora pelos que são culpados por sua morte, pedindo que o Pai perdoe o pecado no qual culminam todos os pecados da humanidade. Só Ele está autorizado a fazer tal pedido (veja a Epístola aos Hebreus). O texto não nos diz nada acerca do alcance de sua intercessão. Quem são “eles” (v. 34) que não sabem o que fazem? Os legionários romanos sabem o que fazem. Os que “não sabem” são todos aqueles que são seres humanos. O “não saber” faz parte de nossa essência humana: somos desesperadamente monstruosos. Jesus não morreu contra o mundo pecador, mas por ele. A pregação da Sexta-feira Santa não pode se contentar em acusar o “mundo” que crucificou Jesus; devemos oferecer-lhe o perdão por Ele oferecido. Lucas sublinha essa situação magistralmente: no mesmo instante em que o mundo executa Jesus, no mesmo instante em que o mundo deveria terminar sob o juízo divino, nesse mesmo instante Jesus lhe oferece perdão. Essa é a grande transformação. Por isso o véu do templo se parte (v. 45); por isso há acesso a Deus.
3.2 – Só Lucas sabe do diálogo de Jesus com os criminosos. Mateus e Marcos nada sabem do fato de um deles haver confessado culpa e se dirigido a Jesus. Só afirmam que ambos teriam debochado de Jesus. Deixemos de lado essas observações. Centremo-nos em Lucas. O primeiro dos criminosos pensa como as elites que debocham de Jesus. Ataca, como elas, a messianidade de Jesus; disso se pode concluir que ambos são zelotes. Estão desapontados, pois, ao sugerir que Jesus faça uso de sua messianidade, talvez tenham a esperança de com ele sair da situação em que se encontram. Já vimos que Jesus não entendeu dessa forma sua messianidade. O criminoso escandaliza-se com a cruz, assim como os discípulos de Emaús: “Nossa esperança era que fosse ele quem iria libertar o povo de Israel” (Lc 24.21). Ele se escandaliza do mesmo modo que se escandaliza o membro tentado da comunidade: “Se Jesus é meu Salvador, deveria ...”. Desilusão e deboche estão muito próximos um do outro.
Veja-se, contudo, o outro criminoso: “Estamos debaixo da mesma condenação. Deveríamos temer a Deus”. Vale-se da confissão que cabia ao criminoso fazer ao sumo sacerdote antes de ser por esse absolvido. Só que o criminoso faz a confissão voltado para Jesus. Reconhece a messianidade de Jesus e expressa esperança: para além da morte, espera que, quando Jesus voltar, lembre-se dele. Assume culpa e espera perdão no fi nal dos tempos. E ... Jesus abre-lhe os portões do Reino. Promete-lhe “ainda hoje” lugar no paraíso, sem impor condições. Não deveríamos violentar/forçar o “ainda hoje” (cuide-se que a forma verbal é ése e não ei). A justificação por graça e fé não elimina dor, calor, sede, angústia, convulsões, cruz, mas anuncia, com certeza, que após a morte Deus preparou vida eterna em comunhão com Ele. Quem morre em Deus pode saber que o instante que segue seu último suspiro é despertar no “hoje” eterno. Essa é a esperança que se destina ao criminoso e a toda pessoa que se dirige a Jesus, como ele fez.
3.3 – Às 15h, os trombones do templo ressoam através de Jerusalém. O moribundo da cruz de Gólgota ouve-os e ora a oração que todo o povo de Israel profere nessa hora: “Em tuas mãos entrego o meu espírito”. O contexto não nos permite afirmar se foi proferida com tranquilidade ou se ainda é procura veemente por ajuda de Deus. Lucas é parcimonioso. Não busca por detalhes. Relata o acontecido: morre o justo (palavras do centurião). Os que haviam gritado “crucifica-o” e vieram para “olhar” (theorein) são convertidos enquanto olham. Lucas evangeliza. O que Jesus padece, faz e diz só pode ser percebido e apreendido quando meros espectadores descobrem que o que aconteceu no outeiro da Caveira aconteceu pro me, pro nobis – por mim, por nós.
4. Imagens para a prédica
No Rio Grande do Sul do ano de 2012, o Poder Judiciário determinou que fossem eliminados os crucifixos das salas desse mesmo poder sob a alegação de que se tratava de símbolo religioso cuja permanência nas salas era inadmissível, pois o Brasil é um Estado laico, onde impera separação de Igreja e Estado. Os crucifixos foram retirados. O Poder Judiciário não ordenou, no entanto, a eliminação de outro símbolo religioso: a imagem da deusa Justiça, herdada da religião grega. A iniciativa da solicitação encaminhada ao Poder Judiciário coube à organização formada por pessoas que se sentem vítimas da homofobia. A decisão do Judiciário peca por parcialidade e elimina dos tribunais a advertência da possibilidade de erro jurídico, como aconteceu com Jesus, optando pela cegueira da Justiça, que tanto pode significar imparcialidade como impunidade e condenação do justo. O encaminhamento feito pela organização permitiu a eliminação da única advertência existente para que não se repitam erros jurídicos. Menciono o fato com o pedido de que o/a pregador/a não caia na tentação de mencioná-lo como motivação para seu sermão de Sexta-feira da Paixão, pois as pessoas que frequentarem igrejas nesse dia não o fazem para tomar conhecimento de erros do Judiciário nem de interpretações equivocadas que ali acontecem. Atenha-se ao proposto por Lucas: Perdão, esperança, conversão.
Bibliografia
GRUNDMANN, Walter. Das Evangelium nach Lukas. Theologischer Handkommentar zum Neuen Testament. 8. ed. Berlim: Evangelische Verlagsanstalt, 1978.
VOIGT. Gottfried. Der rechte Weinstock. 2. ed. Berlim: Evangelische Verlagsanstalt, 1974.