Prédica: Gênesis 3.1-24
Autor: Wilfrid Buchweitz
Data Litúrgica: Domingo Invocavit
Data da Pregação: 08/03/1981
Proclamar Libertação - Volume VI
I - Considerações introdutórias
Na primeira leitura do texto voltam à mente e ecoam nos ouvidos inúmeras perguntas de anos passados, desde que na infância a mãe pela primeira vez contou a história, depois a professora da escola dominical; mais tarde o trecho voltou no ensino confirmatório, na escola secundária, no grupo de Juventude Evangélica, na pregação dominical. Gn 3 é um dos textos obrigatórios na caminhada do cristão e da comunidade, oferecendo-se de tempos em tempos para reflexão e estudo. E ao mesmo tempo um dos textos da Bíblia que mais perguntas levanta. E as respostas muitas vezes são inúmeras, provisórias, até contraditórias.
Por que a serpente? Que significa a serpente? Que árvore era aquela no meio do jardim? Que fruto Eva e Adão comeram? Foi maçã? Se não tivessem comido, Adão e Eva não teriam morrido? O pecado de Adão e Eva foi pecado sexual? Que pecado foi? Que é pecado original? Trabalho é castigo? Que significa a árvore da vida? O v. 15 se refere a Cristo?
Estas são algumas das perguntas feitas principalmente por jovens, mas também por outros membros da comunidade, perguntas que constantemente voltam, também entre teólogos. O que fazer com tantas perguntas — e perguntas tão complexas e controvertidas — numa prédica de 20 minutos?
II — Considerações exegéticas
Também no aspecto literário o trecho apresenta dificuldades. Estudiosos são de opinião que a composição final do texto resulta da fusão de diversas histórias da tradição israelita, inclusive com o aproveitamento de elementos não israelitas, para articular uma passagem importante da história de Deus com os homens e dos homens com Deus. A fusão das diversas partes está de tal forma entrelaçada que os estudiosos reconhecem não ser possível separá-las.
O texto faz parte da tradição javística e em termos cronológicos sua redação é localizada no início da época dos reis. O redator sabe da aliança de Deus com Israel, conhece os grandes feitos de Javé para com seu povo, sofre com a infidelidade desse povo, tem consciência do perigo que ele corre frente à constante tentação do culto a Baal. Aqui está uma situação para a qual Gn 3 é importante. A vergonha, o medo, o sofrimento em Israel são consequência da infidelidade a Deus. Ao mesmo tempo a infidelidade a Deus por parte de Israel vai levar a nova vergonha, medo, sofrimento. Esta verdade vale para Israel em especial, mas vale também para todos os outros povos e para cada homem em particular.
Vendo Gn 3 junto com Gn 2, pode-se dizer o seguinte: Deus dá ao ser humano, também ao gênero humano, um determinado lugar na criação, com uma determinada relação com Deus e uma determinada relação com as outras criaturas. No momento em que o homem abandona este lugar, quer modificar sua relação com Deus, quer colocar-se no nível de Deus, ou quer colocar Deus a seu nível, neste momento o homem torna-se infiel a seu lugar e papel na criação e a seu Criador; e a consequência disso é vergonha, perda de paz entre homem e mulher, entre o homem e seus semelhantes em geral. Outra consequência é uma vida cheia de sofrimento.
O entregar-se à tentação — assoprada de fora, ou nascida dentro do coração humano, ou ambas as cousas, tanto faz — o entregar-se à tentação de querer ser igual a Deus, rompe a relação com Deus e provoca medo de Deus. Também rompe a relação com o próximo e provoca vergonha, e rompe a relação com todas as cousas da vida e provoca sofrimento. Ambicionar os olhos de Deus desequilibra integralmente a vida do homem e ele se sobrecarrega de culpa perante Deus, os homens e o mundo.
O enfoque acima é um enfoque global do texto. Não se preocupa com os detalhes que o texto levanta. Tais detalhes podem ser importantes e talvez mereçam ser estudados. Mas, por um lado, aqui não há espaço para isso; e, por outro lado, não entrar nos detalhes das perguntas acima, não nos impede de chegarmos ao centro do texto.
Ceder à tentação de querer colocar-se ao lado de Deus provoca um abismo entre o homem e Deus, e tem como consequência a ruptura da paz entre os homens, e entre os homens e o mundo. A partir de uma outra perspectiva isso significa: a falta de paz entre os homens, e entre os homens e o mundo, a vida cheia de sofrimento, são consequência da culpa do homem, pelo mau uso de sua liberdade para com Deus. Mas não se pode fazer essas colocações vendo-se apenas o homem individualmente. É preciso encarar o homem também coletivamente, a sociedade humana, o gênero humano. Muitas vezes o indivíduo sofre as consequências da culpa de outro indivíduo ou de toda uma coletividade.
Convém considerar que, depois de o homem provocar um abismo entre si e Deus, este não aceita naturalmente tal estado de coisas. Deus não vira as costas para o homem. No v. 9 Deus chama e procura pelo homem. Deus amaldiçoa a serpente e a terra, mas não amaldiçoa o homem. Deus faz vestimenta para Adão e Eva. Exegetas também têm dado atenção ao v. 15, que chamam de pré-evangelho por entenderem que ali se aponta para Jesus Cristo. Entendeu-se o descendente da mulher como prenúncio de Jesus Cristo e da história da salvação em Cristo.
Mesmo se esta exegese do v. 15 não convencer, nós, cristãos, não podemos deixar de ler a história sem a perspectiva do Novo Testamento. Em Cristo Deus cria a possibilidade de superar o abismo provocado por Adão. Em Cristo está diante de nós a realidade de uma nova vida e a possibilidade de superarmos as consequências do velho abismo, isto é, a vergonha entre os homens, o medo de Deus e o sofrimento humano.
III – Meditação
Que significa o texto, confrontado com nossa realidade? Que significa o texto, confrontado com minha situação de pastor?
Diz-se, às vezes, que o pastor é um pequeno rei. Isso significa que ele é colocado ou se coloca acima de seus semelhantes. Às vezes, também se diz que o pastor é um pequeno deus. Isso significa que ele é colocado ou se coloca ao lado de Deus ou no lugar de Deus. Mesmo que estas expressões não possam ser interpretadas ao pé da letra, existe, para o pastor, o perigo da auto-suficiência, o perigo de ocupar um lugar de mando em vez de ser instrumento de serviço. Também existe para o pastor o perigo de deixar de derivar seu ministério da Palavra e o perigo de lhe dar um conteúdo todo próprio, cheio de planos e atividades próprias, de construir um reino dele mesmo em vez de construir o reino de Deus. Muitas vezes o pastorado se torna instrumento de mando, em vez de instrumento de serviço. Muitas vezes o pastor usa o conhecimento do bem e do mal para sua própria conveniência e de acordo com sua própria interpretação, e não se preocupa suficientemente em compartilhar sua sabedoria com os membros da igreja, nem se preocupa suficientemente com uma linguagem ou pedagogia adequadas a uma boa comunicação de sua sabedoria.
Que é que o texto significa para nossas comunidades e sociedade?
Há muitas áreas onde o texto encaixa em nossas comunidades e sociedade. Aqui podemos citar apenas algumas.
Na área do conhecimento, das informações, o homem ampliou seus horizontes de maneira impressionante. Ele dispõe de quantidades imensas de todo o tipo de informações e aumenta-as constantemente. Às vezes, a ciência parece ter, ou parece estar a caminho de descobrir todas as respostas do mundo. É admirável a capacidade do homem de descobrir novos segredos. Mas quando se vê que as descobertas da ciência são usadas mais para destruir do que para construir, pode-se concluir que os homens quiseram se colocar no lugar de Deus, porque sempre que isso acontece as consequências são destruição e sofrimento.
A tentação em que o homem cai, de ter mais, de possuir mais, de possuir a qualquer preço, é outro sinal de que ele ultrapassa os seus limites. Cada acúmulo irresponsável de propriedade significa que um indivíduo, uma firma, uma nação enriquece à custa de outros. Ê sinal de que homens se comportam como deuses e a consequência, de uma ou de outra forma, é sofrimento. Salários altos demais, num lado, significam salários baixos demais, no outro lado. Terras extensas demais, num lado, significam terras insuficientes, no outro lado. Casas grandes demais, num lado, significam casas pequenas demais, no outro lado.
Onde o homem se põe no lugar de Deus, a terra não produz mais nem cardos e abrolhos, porque vira deserto e não produz nada. Também pode ser que produza muito, mas o homem passa fome, porque o que produz não dá para comer. Ou o que ele planta para comer está envenenado e traz morte em lugar de vida.
Quem se põe no lugar de Deus, quem se faz deus, não precisa mais ouvir a Palavra de Deus, não ora mais a Deus, não dialoga mais com Deus, não intercede mais pelo próximo, não louva mais a Deus e não ama mais o próximo.
O texto está previsto para o Domingo Invocavit, isto é, para o primeiro domingo da época da Paixão. É a época em que Cristo inicia seu caminho em direção à cruz, o caminho de esvaziamento, do humilhar-se, do morrer, e depois vem a ressurreição. É o caminho que Jesus mostra e abre para nós, para o trilharmos também. Não é o caminho do querer ser igual a Deus, do não querer aceitar a condição de criatura — caminho que como consequência traz sofrimento a Deus, aos homens e até à natureza. Mas é o caminho do esvaziamento em direção a Jesus e ao próximo, o caminho que passa pela cruz e que por isto tem condições de evitar, aliviar, vencer o sofrimento, e que tem a promessa da ressurreição e da vida. É o caminho do novo Adão, que nasce a partir de Jesus Cristo, o caminho da vitória sobre a tentação, o caminho da nova criação.
IV – Prédica
É importante atentar para as dimensões do texto. Ë longo demais para simplesmente ser lido do púlpito. O pregador deve se sentir desafiado em sua criatividade a achar uma forma de colocar o texto de maneira acessível para a comunidade. Ele poderia fazer o seguinte: a) ler apenas alguns versículos principais; b) contar a história com suas próprias palavras; c) possibilitar à comunidade acompanhar a leitura em Bíblias ou em textos mimeografados; d) comunicar o texto no culto anterior e sugerir que a comunidade venha com o texto conhecido; e) achar ainda outra forma de comunicar o texto. De nenhuma maneira deve o texto ser simplesmente lido perante a comunidade. Ele é demasiado longo e carregado de conteúdo e perguntas.
Com vistas à estrutura da prédica poderiam ser observados, por exemplo, os seguintes passos:
a) caracterizar áreas em que, no âmbito de sua comunidade, picada, vila. cidade, o homem é tentado a se colocar no lugar de Deus;
b) analisar as consequências bem concretas deste pecado e culpa;
c) apontar para o caminho da Paixão, cruz e ressurreição, para vencer a tentação e / ou perdoar os pecados, e iniciar uma nova vida que inclui a preocupação de superar o sofrimento como consequência do pecado;
d) apontar para a Palavra de Deus e a oração, para permanecer atento e vigilante de maneira constante.
V – Bibliografia
- CALVIN, J. Genesis. In: - Auslegung der Heiligen Schrift. Vol. l. Nova Série. Neukirchen, 1956.
- FLESSEMANN-VAN LEER, E. Meditação sobre Gn 3.1-19. In: Göttinger Predigtmeditationen. Ano 60. Caderno 11. Göttingen, 1971.
- VON RAD, G. Das erste Buch Mose. In: Das Alte Testament Deutsch. Vol.2. 3.ed. Göttingen, 1953.
- ROSENBERGER, G. Meditação sobre Gn 2.8-9; 3.1-13 (14-15), 16-19. In: Deutsches Pfarrerblatt. Ano 75. Caderno 4. Kassel, 1975.
- SCHREINER, L. Meditação sobre Gn 3.1-19. In: Deutsches Pfarrerblatt. Ano 72. Caderno 4. Kassel, 1972.
- KOEHR, R. Meditação sobre Gn 1-19. In: Deutsches Pfarrerblatt. Ano 78. Caderno 3. Kassel, 1978.
Proclamar Libertação 6
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia