Prédica: Gênesis 22.1-13
Autor: Peter Weigand
Data Litúrgica: Domingo Judica
Data da Pregação: 05/04/1981
Proclamar Libertação - Volume VI
l - O texto
Temos aí uma lenda antiga, que circulava isoladamente, antes que o Eloísta a colocasse, como uma narração teológica, no contexto atual, sem ligá-la por demais aos textos adjacentes. Essa lenda continua, pois, um tanto isolada dentro do Livro de Gênesis. Há quem a interprete como uma reação aos holocaustos de crianças, praticados pelos cananeus, ou como uma explicação da transição desse costume para o sacrifício de animais. A lenda diria, então, que o Deus de Israel não queria saber de tal prática. Parece-me, porém, que tal interpretação não basta para explicar uma lenda tão difícil e estranha! Entendo que a conclusão de von Rad (p. 194) dá a explicação mais razoável: a lenda quer sublinhar a importância da obediência a Deus, do temor a Deus, até as últimas consequências. Na prova por que passa Abraão se evidencia que a promessa vinculada a Isaque (serás um grande povo) só podia ser entendida como uma dádiva. Ela ainda pertence a Deus, e onde não houve a consciência disso, o relacionamento do homem com Deus realmente não está mais em ordem. Mais importante, porém, é o seguinte: os ouvintes desta história, que constituíam o povo de Israel, sentiam-se incorporados nela atra-vés de Isaque; compreendiam, pois, assim, que sua existência tinha sido oferecida a Deus e por ele devolvida. Isto significa que a vida, a existência de Israel se baseia unicamente na vontade de Deus, que lhe deu vida. Os israelitas também tomam consciência de que esse temor a Deus, essa obediência exigida (v.12: agora sei que temes a Deus) caracteriza a sua relação com Deus. Essa obediência só tem significado quando cumprida na sua totalidade; e isto, para que Deus possa ser experimentado na sua totalidade, como aquele que dirige e dá promessas ao seu povo. Sob este aspecto, a lenda do sacrifício de Isaque adquire um caráter pedagógico exemplar, no tocante ao relacionamento (que hoje chamamos fé) entre homens e Deus. Exemplar, pelo seguinte: nossa história é absolutamente fora do comum no Antigo Testamento, e o lugar do encontro de Abraão com Deus não ganha sequer um nome fixo. Assim sendo, a história não está presa a lugar geográfico nenhum e também não pode ser interpretada como lenda legitimadora de certo culto em determinado lugar (Betel, por exemplo); fica evidente o caráter geral e abrangente de seu significado.
Resta lembrar que Gn 22.1-13 é uma obra literária de grande maestria. A maneira de o autor levar o leitor, aos poucos, até o ponto culminante, é realmente formidável. A narração, sem usar de muitas palavras, faz transparecer de forma sutil a tensão psíquica entre o pai, Abraão, e o filho, Isaque.
Não se pode dizer mais nada de certo sobre a autoria. Trata-se, sem dúvida de uma história que remonta à antiga tradição das tribos israelitas, tendo sido trabalhada posteriormente pelo Eloísta. Data e lugar do seu surgimento não são mais determináveis.
Escopo: Deus, exige obediência total, até o ponto de se sacrificar o que de mais querido há na vida, e só assim pode ser conhecido como Deus que dá vida.
II - Meditação: Sempre se acha um carneiro ingênuo!'
Meus pensamentos sobre este texto se fixam no carneiro que Abraão encontrou ao lado do altar erguido por ele. O patriarca nos é apresentado como pai que quase não tem emoções diante deste seu filho, há tanto tempo pedido e esperado. A não ser pela evasiva do v.8, Abraão não podia prever o desfecho feliz dos acontecimentos. Mas nós podemos. Observando as histórias bíblicas, vemos que sempre aparece um carneiro, uma última chance que evita o final calamitoso (Noé, Jó, Jonas, a ressurreição de Cristo).
Tomou-se quase impossível ser provado por Deus, assim como Abraão o foi, porque contamos de antemão com essa última chance que Deus sempre oferece. A imagem do Deus bondoso e misericordioso é predominante na nossa fé. Aparentemente, ninguém arrisca mais um tal sacrifício, até as últimas consequências, porque antecipadamente já se conta com a alternativa salvadora que Deus oferece e que aparece, na nossa história, em forma de um carneiro.
Tal circunstância cria uma mentalidade que inverte as coisas. Na história, o carneiro foi a oferta que aconteceu após uma clara demonstração de obediência por parte de Abraão. Nós, no entanto, gostamos de, logo de saída, procurar tais carneiros, tais alternativas que evitem o sacrifício de coisas, ideias, pessoas mais queridas — e, com isso, também evitamos provas de obediência a Deus. Esse empenho de evitar as últimas consequências pessoais é uma característica de nosso tempo. Procuramos um carneiro ingénuo que possa ser sacrificado para alcançarmos certo objetivo e não perdermos o que de mais querido temos. Seguem alguns exemplos de tais carneiros ingénuos que sempre se acha.
Escravos: Nas grandes fazendas, os bons negócios e o lucro farto só podiam ser alcançados (objetivo), tendo à disposição mão de obra barata e abundante. As famílias dos proprietários dominantes consideravam-se dignas demais para tal trabalho. Contudo, queriam enriquecer para adquirir poder e explorar as classes dependentes. Por isso, trouxeram cativos os negros, para serem sacrificados pelo lucro da família do fazendeiro.
Índios: O objetivo de conquistar e explorar as terras do Brasil só pôde ser alcançado pelo sacrifício das tribos indígenas. Eles, que são os verdadeiros donos da terra, impedem que a terra toda seja atingida (o mais querido) e explorada com fins lucrativos. São eles os carneiros ingênuos, sacrificados ao progresso e à civilização.
Mão-de-obra: O sistema capitalista tem como objetivo evidente elevar o lucro ao máximo. Para chegar lá, precisa de mão de obra barata. Como esta não existe nos países industrializados, explora-se-a nas nações do terceiro mundo. Ninguém na Europa arriscaria sua saúde, sua felicidade, sua vida, por um salário mínimo como o que temos por aqui. Quem é sacrificado, então, são os operários do Brasil, por exemplo, para que os países da Europa possam manter o seu crescimento económico.
Poder - soldados: Uma das coisas mais queridas é o poder. Para manterem tal poder, os que o detêm não se arriscam a sacrificar-se a si próprios. Sacrificado é o soldado raso; ele é que serve de carneiro ingênuo. Justamente ele, que considera sua maior felicidade ter uma família e o suficiente para viver, precisa matar e arriscar-se a ser morto, para garantir a influência, o poder, os interesses de poucas pessoas ou de um sistema que jamais o beneficiaria.
Itaipu: O objetivo é conseguir energia elétrica a qualquer preço. Para tanto, milhares de colonos são sacrificados, expulsos de suas terras. Se as águas atingissem propriedades daqueles que decidiram tal projeto, seus interesses seriam imediatamente atendidos. No entanto, como se trata do pequeno agricultor, do elemento mais fraco no sistema económico, ele pode ser sacrificado, como carneiro ingênuo.
Tais exemplos poderiam ser ampliados, sem levar fim. Mas a mesma observação se aplica também à nossa esfera individual e emocional. Ninguém de nós está disposto a largar o que lhe é querido e, por isso, vivemos procurando um carneiro ingênuo.
Falamos de ecologia e da poluição industrial, mas quando se exige que o lixo doméstico seja colocado em sacos plásticos, reclamamos das restrições à liberdade particular. Clamamos por mais justiça; pelo fim das filas no INPS, por exemplo. Mas quando nós mesmos precisamos de um médico, não queremos saber de espera e, como pacientes particulares ou conhecidos do médico, achamos que devemos ser tratados de forma especial. Ninguém está disposto a fazer os mesmos sacrifícios que todos fazem, ainda que pequenos.
Nosso egoísmo é grato a Deus, por ter inventado o sacrifício de outros, como carneiros ingênuos, o sacrifício de Cristo em nosso lugar. Parece-me bastante sedutora essa tal história de Gn 22. Leva-nos a pensar assim: Deus vai dar um jeito, Deus encontrará uma alternativa, algum carneiro ingênuo para evitar as últimas consequências.
No entanto, o Eloísta quer chamar nossa atenção justamente para o contrário. Quem quiser levar Deus e sua vontade a sério, quem quiser que este mundo se torne melhor, em direção ao reino de Deus, precisa de uma obediência, de uma fé engajada que esteja disposta a sacrificar o que há de mais querido, sabendo que, afinal, também isso provém de Deus, Criador e Pai!
Abraão está disposto a sacrificar seu filho, do qual depende a realização da promessa de um grande futuro, como povo de Israel. Tinha esperado com tanta ansiedade por esse filho; mas, sabendo que era dádiva de Deus, estava disposto a sacrificá-lo. Abraão não contava com a alternativa do carneiro que Deus lhe oferece no final.
É assim que Abraão descobre quem é Deus: aquele que dá e quer vida. O patriarca recebe a vida do seu filho de novo - e agora, consciente de que é uma dádiva que provém de Deus. Sacrifica o carneiro para manter e salvar uma vida que Deus quer e não, por causa de intenções e interesses próprios.
As conclusões que este texto nos impõe são evidentes. O que aprendemos é que nos falta a disposição para sacrifícios próprios. Pelo sacrifício de Cristo e por pretendermos assumir e continuar sua obra na igreja, nossa intenção só poderia ser a de nos dispormos a sermos carneiros que se oferecem para que a vida seja mantida, vida que provenha de Deus. E isto, sofrendo, engajando-nos, desistindo de vantagens e privilégios, para que todos possam terminar como Isaque — vivos.
Nosso papel é o de sermos carneiros ingénuos, para assim mantermos um mundo que é de Deus. Concretamente, isto significa o seguinte: se uma economia marginaliza amplas camadas exploradas e oprimidas, precisamos aprender a nos identificar com elas, fazendo sacrifícios e desistindo de vantagens próprias, para que outros possam viver. Onde pessoas estão dispostas a se sacrificar pelo bem comum e pela vontade de Deus, lá descobrirão, como Abraão, que é assim que se obtém a vida. Lá se oferecem alternativas e os sacrifícios se tornam suportáveis em conjunto, preservando o que é o mais querido. Para chegar lá é preciso lutar, é preciso estar disposto ao sacrifício. Uma disponibilidade que não arrisca, não sabe ainda o que Deus quer. Uma comunidade incapaz de se arriscar pelo bem comum maior que Deus quer, não é um Isaque, portador da promessa de um grande e abençoado futuro, dada por Deus. Uma igreja que não se coloca ao lado dos que são usados como carneiros ingênuos, sacrificados a objetivos que não são da vida de Deus, não tem nada a ver com a igreja que Deus deseja, não se apoia em Abraão, do qual Deus disse: agora sei que temes a Deus.
III - A prédica
Em cada comunidade há exemplos de como pessoas contam com o sacrifício alheio, em vez de arriscarem alguma coisa. Pode-se pensar em: participar nos grupos, mensalidade (só as pessoas simples são criticadas, dos ricos não se fala porque são gente de destaque social, benfeitores, etc.), orçamento (lembrar-se das comunidades pobres, nas áreas de migração, em vez de investir todo o dinheiro no próprio patrimônio ou trabalho). É importante que não se faça disso uma nova lei no sentido de exigir que cada um se sacrifique até a própria morte. O sacrifício começa no detalhe e traz vida. O texto fala da mentalidade de uma fé obediente e exemplar e não, de um sacrifício exemplar. O ouvinte da prédica deve ser levado a perceber que realmente, muitas vezes, espera o sacrifício de outros para vantagens próprias e que a comunidade de Cristo, se de fato quer ser coerente, não pode aceitar isso. O ouvinte pode ser levado a ver na luta engajada e na tomada de posição algo que talvez não seja agradável à sociedade, mas é agradável diante de Deus. Nosso texto oferece a oportunidade de sentirmos e experimentarmos que a realidade de Deus de fato não é condizente com a realidade atual e que, por isso, cabe-nos perguntar de modo mais decidido se e onde estamos realmente dispostos ao sacrifício. Ou eu me acomodo, permitindo, indiferente, que outros assumam o sofrimento de carneiros ingénuos, ou eu participo do sofrimento, sacrifico o que me é querido e, assim, descubro realmente uma vida possível, que tem a promessa de Deus.
IV - Bibliografia
- JENNI, E./WESTERMANN, C. Theologisches Handwörterbuch zum Alten Testament. Vol. l e 2. München, 1971 e 1976.
- KAISER, O. Einleitung in das Alte Testament. Gütersloh, 1969.
- NOTH, M. Geschichte Israels. 6.ed. Göttingen, 1966.
- VON RAD, G. Das erste Buch Mose. In: Das Alte Testament Deutsch. Vol. 2/4. Göttingen, 1972.
- WESTERMANN, C. Tausend Jahre und ein Tag. Stuttgart, 1965.
- ZIMMERLI, W. Grundriss der alttestamentlichen Theologie. Mainz, 1972.