Foi na cruz, foi na cruz, que, a tremer, percebi, meu pecado castigado em Jesus. Foi ali, pela fé, onde os olhos abri e hoje, salvo, me alegro em sua luz. É uma música maravilhosa. Foi na cruz é um dos meus hinos preferidos. É daqueles hinos antigos que possuem uma letra muito rica e abençoada. Ao mesmo tempo, é uma raridade. Hoje as músicas cristãs – chamadas de gospel – falam de poder, curas, milagres, grandes feitos, grandes obras, afrontamento aos inimigos, que Deus vai nos colocar no palco para os inimigos nos assistirem, que a vitória terá sabor de mel, assim por diante. Porém, é raro encontrar músicas hoje em dia que falem da cruz, da entrega e do sacrifício de Jesus na cruz, da sua salvação por amor. Não estou dizendo que não existam, mas são raras.
Há hoje uma grande negação do sofrimento. As pessoas hoje são orientadas a demonstrar que estão bem o tempo todo. Aprendemos a esconder os nossos sentimentos. Aprendemos que a faixada é mais importante do que aquilo que está dentro do coração. A doutrina hoje é a doutrina do bem-estar, da autoajuda, das mensagens motivacionais, do você pode, você consegue, assim por diante. Inclusive muito do cristianismo tem sido reduzido a uma mensagem que acaricia o ego ao invés de falar diretamente ao coração. Pecado, morte, inferno que sempre foram palavras-chave na pregação cristã sumiram das pregações em nosso tempo. O negócio agora é ser motivacional, para cima, movimentar multidões. Acredito que estas coisas podem até ter alguma importância para muitas pessoas, pois Deus usa diferentes formas para alcançar o coração humano. Porém, e quando não passa disso? E quando não estamos bem? E quando nos sentimos pesados, angustiados, desesperados? E quando estamos diante de uma tragédia?
Estamos hoje iniciando a série de Pregações chamada Quaresma: o Raio-X de nós mesmos. A quaresma é este período do calendário litúrgico aonde vamos além da faixada, além das aparências. A quaresma nos convida a interioridade, a olharmos para dentro, a focarmos nas profundezas do nosso coração. A quaresma nos convida a fazermos um Raio-X da nossa vida e a nos prepararmos, pois Jesus já está caminhando para a cruz e ressurreição. Quaresma é tempo de caminhada com Jesus.
Jesus anuncia a sua morte e ressurreição. Jesus já está sinalizando como o plano de Deus será realizado. Jesus revela os planos de Deus para a crucificação e ressurreição. Na quaresma, caminhamos com Jesus com ele já nos dizendo o que irá acontecer. Já sabemos onde iremos chegar. Já sabemos o final da caminhada. Caminhamos com o Senhor e ele vai nos falando dos planos de Deus para a sua vida. No fim, virá a cruz e a ressurreição. Não há como ser diferente. Não há como mudar a história. É o que acontecerá! Assim como os discípulos, nós caminhamos com Jesus já sabendo disso. No fim, virá a cruz e a ressurreição.
Entre os discípulos estava Pedro. No último culto, quando encerramos a Série João 3.16, falamos bastante sobre a fé de Pedro. Caso não tenha visto, procure o vídeo no Facebook ou no YouTube para dar uma conferida. Aquilo que foi dito no culto passado é muito importante para entendermos a pregação do dia de hoje. Pedro tem uma história incrível. É alguém que caminhou com Jesus por três anos, mas que teve uma fé verdadeira e que transformou a sua vida somente após a ressurreição de Jesus.
Em Marcos 8, ainda temos o Pedro egoísta, revolucionário e que não havia compreendido tão bem os planos de Deus. Pedro queria o progresso. Pedro queria que Jesus inaugurasse um grande reino terreno. Na cabeça de Pedro, Jesus seria o Rei que iria derrubar o poder do Império Romano e se tornar mais poderoso que o imperador Romano. Jesus seria o governante de todas as nações e Pedro e os discípulos governariam com ele no palácio. Este era o imaginário de Pedro que caminhava com Jesus, mas não tinha entendido é nada.
Pedro é um negacionista. Pedro nega a realidade. Pedro não quer a tragédia, pelo menos não do seu lado. Pedro quer enxergar tudo com otimismo cometendo o perigo de confundir seu otimismo com a própria fé. Pedro não quer a fraqueza, o sofrimento a dor. Pedro quer apenas as coisas boas, positivas e maravilhosas do reino que ele está imaginando. Pedro quer o poder, a glória, a honra. Pedro quer ser o herói, o protagonista do novo Reino de Deus. Pedro só quer vitória, bem-estar, eliminar os inimigos.
Pedro era de fato uma pedra dura e teimosa. Porém, Jesus não deixou de o chamar. Jesus chama Pedro porque sabe que Deus pode trocar o coração de pedra e colocar no lugar um coração de carne. Pedro demorará para ser transformado, mas não há ser humano que possa resistir à graça de Deus. Até mesmo aquela pedra dura e teimosa será transformada em um paciente e amoroso pastor de ovelhas.
Quando Jesus fala da crucificação, Pedro fica assustado. O texto bíblico nos diz que Jesus havia falado da cruz claramente (v. 32). Jesus não queria deixar dúvidas nas mentes dos discípulos. Ele falou claramente dos planos de Deus. Porém, o que Pedro fez? Pedro negou a cruz! Pedro não compreendeu o lugar da cruz na História da Salvação de Deus. Pedro negou a tragédia da cruz. Ele só queria enxergar coisas boas e positivas. A cruz em sua tragédia, dor e sofrimento, não fazia parte desta visão. Pedro não negou a Jesus apenas três vezes antes do galo cantar. Aqui Pedro já negou a Jesus. Aqui Pedro já demonstrou que sua visão do Evangelho estava distorcida! É interessante que mesmo alguém que caminha pessoalmente com Jesus pode ter uma visão distorcida do Evangelho.
O que, então, Jesus respondeu a Pedro? Jesus lhe dirige palavras duras: “Saia da minha frente, Satanás! Porque você não leva em consideração as coisas de Deus, e sim as dos homens.” Irmãos e irmãs, que repreensão. Eu imagino que Pedro, mesmo sendo uma pedra, deve ter dado um pulo para trás. Imagina ser chamado pelo próprio Senhor Jesus de Satanás! O Pedro que queria apenas coisas positivas e bonitinhas na sua imaginação de reino de Deus agora é confrontado em público e chamado de Satanás! Por que Jesus diz isso a Pedro? Porque ali estava, de fato, o próprio Satanás usando a Pedro para convencer Jesus a não ir para a cruz. O inimigo não queria que Jesus fosse à cruz, pois ele seria completamente vencido nela. Ele faria de tudo para impedir a crucificação de Jesus. Ocorreram as três tentações no deserto e agora Satanás tenta a Jesus novamente através de Pedro.
Irmãos e irmãs, aquilo que nega a cruz é obra satânica. Deus morreu na cruz para nos salvar de nossos pecados e nos conceder vida eterna! A cruz estava nos planos de Deus desde a eternidade. A cruz não foi um erro de percurso, mas o plano de Deus para salvar o mundo, como vimos na serie João 3.16. Deus age na loucura da cruz para trazer salvação ao ser humano pecador. Ele troca conosco: toma o nosso pecado para si e nos dá o seu amor. A essência do cristianismo está no seu centro que é o Cristo crucificado e ressuscitado. A cruz não elimina a ressurreição e a ressurreição não elimina a cruz. Quando contemplamos Jesus na cruz, deveríamos sentir todo o seu amor por nós. Foi por você e por mim que ele foi para a cruz. Aquilo que nega a cruz é obra diabólica e a qual deveríamos dizer Saia da minha frente, Satanás!
Amados irmãos, amadas irmãs, O negacionismo é satânico. Pode ser comparado aos falsos profetas do Antigo Testamento que diziam que tudo iria ficar bem quando, na verdade, não iria. A essência do falso profetismo era dizer ao povo de Israel que tudo iria ficar bem, que não precisariam se preocupar pois tudo ficaria bem. Iludiam o povo de Deus com mentiras e armadilhas. Ao invés de denunciarem os reis e as autoridades, apenas elogiavam os reis e as autoridades para se beneficiarem a si mesmos com honra e poder. Diziam palavras que Deus não havia colocado em suas bocas. Os verdadeiros profetas denunciavam isso. Os verdadeiros profetas – como Isaías, Jeremias, etc – afirmavam que não iria ficar tudo bem, mas viria o tempo do castigo. Os verdadeiros profetas não eram ouvidos, mas rejeitados, embora dissessem a verdade.
Apenas para exemplificar, em 1 Reis 22 temos 400 profetas que afirmam que Acabe era o escolhido de Deus. 400 profetas elogiam a Acabe. 400 profetas estão aos pés de Acabe. Porém, conforme o Antigo Testamento, Acabe foi o pior rei que reinou em Israel. Trouxe a idolatria para o meio do povo. Foi um dos mais rejeitados por Deus, mas 400 profetas afirmam que ele era o escolhido de Deus. Profetizavam falsamente. Porém, havia também Micaías. Micaías era o único profeta a ir contra o Rei Acabe e a desconfiar das suas ações. 1 Reis 22 testemunha que 400 profetas aprovavam o rei Acabe, mas Micaías ia na contramão e falava contra o rei. 400 profetas mentirosos e Micaías sozinho testemunhando da verdade! Por quê? Porque havia uma grande negação da realidade, assim como Pedro nega que Jesus precise ir para a cruz!
A negação da verdadeira realidade é uma obra diabólica que nega a tragédia e que quer enxergar Deus apenas nas coisas poderosas e nas forças extraordinárias. É uma fé antibíblica que nega a tragédia como se ela não existisse. Pedro assumiu esse negacionismo ao negar a tragédia da cruz. Pedro queria uma libertação pela cobiça de poder que colocaria Jesus em um trono terreno e não em uma cruz. Já a libertação da cruz é o Deus que abre mão do poder, faz-se fraco e sofre com os fracos em sua tragédia e desespero diante da iminência da própria morte. Quem nega a tragédia ou a enfeita com frases de efeito está servindo a Satanás! O verdadeiro cristão olha para a tragédia com os olhos de Deus e faz o possível para que haja vida digna mesmo em meio à angústia e sofrimento. Aos negacionistas, Jesus diz: Saia da minha frente, Satanás!
Os verdadeiros profetas do Antigo Testamento anunciavam a necessidade de um castigo para o povo. Os falsos profetas, porém, anunciavam que tudo ficaria bem. Mentirosos! Covardes! Sepulcros caiados! A história provou quem estava certo quando o reino de Israel foi arrastado a força para a Assíria e o reino de Judá para a Babilônia.
Da mesma forma, Jesus é o profeta por excelência. Como profeta, ele está anunciando algo que não soa bem aos ouvidos dos discípulos, especialmente dos ouvidos de Pedro. Jesus anuncia a cruz! Jesus testemunha da cruz! Pedro, porém, nega a cruz! Como diz a música? “Bem ouvia falar dessa graça sem par que nos deu um Salvador em Jesus. Mas eu surdo me fiz, converter-me não quis ao Senhor que por mim morreu na cruz.” Pedro se torna o falso profeta que quer evitar a crucificação. Mas Jesus lhe respondeu: “Saia da minha frente, Satanás!
Amados irmãos, amadas irmãs,
qual caminho nós queremos seguir? O caminho da glória ou o caminho da cruz? O caminho da cobiça ou o caminho da abnegação? O caminho do poder ou o caminho da fraqueza?
Após repreender Pedro, Jesus fala do negar-se a si mesmo, tomar a sua cruz e segui-lo. Esta é a parte mais difícil não apenas para os discípulos, mas também para nós. Negar-se a si mesmo é uma das coisas mais desafiadoras que se pode propor a um ser humano. Deixar de fazer a própria vontade para fazer a vontade de outros é algo que se choca diretamente com o nosso instinto. Negar a si mesmo, tomar a cruz e seguir a Jesus é a parte mais difícil, mas não é impossível.
Ser cristão não significa que a vida será apenas de pancadas, mas não significa que será apenas de maravilhas. Somos instáveis. Em um momento estamos bem e em outro estamos de luto. Em um dia estamos trabalhando e em outro não podemos trabalhar. Em um dia estamos felizes e em outro estamos tristes. É isso que é a vida humana. É isso que é ser humano. É assumir quem somos. Não precisa estar tudo bem o tempo todo. Não precisamos viver para ter uma imagem que agrada aos outros. Não é isso o que importa. Tomar a cruz e seguir a Jesus significa saber que às vezes a cruz é mais leve e outras vezes ela é mais pesada, mas que Jesus carrega a cruz conosco. Não carregamos a cruz sozinhos. Ele carrega a cruz conosco. A vida cristã não é perfeita, mas é consoladora: alguém carrega a cruz conosco! Não estou sozinho. Sou amado e Deus me faz companhia. É por isso que ele morreu. Deus passou por tudo aquilo que faz parte de uma vida humana, inclusive a morte. Até mesmo na dor da morte temos a presença de Deus que carrega a cruz conosco!
A questão é o caminho que queremos seguir. O caminho de Pedro antes da conversão ou o caminho da cruz. O caminho de Pedro até então era um caminho definido pela cobiça: Pedro estava marcado pelo egoísmo, pelo endeusamento de si mesmo, pelo narcisismo, pela fome de poder, pela notoriedade e reputação; já o caminho da cruz é o caminho da humildade, da abnegação, do saber-se falho e pecador, da fome de amor e daquilo que preserva a vida! “De que adianta uma pessoa ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?” (v. 36). A palavra alma aqui é no grego psiqué. É a mesma palavra de onde vem o termo psicologia, por exemplo. O que Jesus está dizendo é: “De que adianta uma pessoa ganhar o mundo inteiro e perder a sua mente, a sua vida?”
Uma vida de cobiças é uma vida perdida; já a vida que nega a si mesmo, toma a cruz e segue a Jesus é uma vida ganha. Ali onde está a cobiça, ali está a tentação de Satanás; ali onde está a marca da cruz, ali está a loucura da salvação de Deus. A nossa tentação é fazer a nossa vontade; o Evangelho, porém, é convite a fazer a vontade de Deus, mesmo que essa vontade leve a cruz. A questão não é as coisas que possuímos, mas que as coisas nos possuem! Repito: A questão não é as coisas que possuímos, mas que as coisas nos possuem! Não estamos aqui falando das posses, mas daquilo que nos domina. Podemos ter pouco e sermos dominados por aquilo.
Irmãos e irmãs, o convite de Deus é a tomar a cruz. É a aceitarmos a realidade como ela é, sem enfeites ou negando-a, mas aceitando-a como ela é em sua tragédia, dor e tristeza. Nós estamos vivendo uma tragédia. Todo o nosso Estado do Rio Grande do Sul entrou na bandeira preta. De muitos profissionais de saúde nós ouvimos que os hospitais estão um caos. Estamos no colapso ou perto do colapso. É uma tragédia horrível. É uma situação muito complicada. Diante dela, podemos agir como Jesus que nos diz para tomarmos a nossa cruz e segui-lo ou a fazermos como Pedro que deu voz a Satanás que nega que a tragédia seja esta de fato.
Sigamos o caminho de Jesus, aceitando a tragédia da realidade, deixando que ele nos abrace, conforte e ajude, pois estamos literalmente passando pelo vale da sombra da morte. Jesus morreu por nós. Ele aceitou ser o sacrifício. Em sua angústia e morte ele sofre com aqueles que perecem nos hospitais deste país e do mundo. Em sua angústia e sofrimento ele carrega também as nossas dores, o nosso desespero e a nossa angústia.
A sensação que eu tenho é como a de um soco. Eu estava tão esperançoso em relação à vacinação e que logo essa triste situação seria finalizada. Via uma luz no final do túnel. Tinha um pouco mais de esperança. E então veio o soco do momento em que estamos vivendo. De fato, isso serve para que tanto eu como todos nós não coloquemos a nossa esperança nas coisas deste mundo, mas apenas no Senhor, pois ele é uma rocha firme!
Não percamos a esperança, mas também não neguemos o que está acontecendo. Vamos nos cuidar. Vamos seguir a Jesus e preservar a vida. São cuidados mínimos, mas que podem fazer a diferença entre a vida e a morte tanto nossa como do nosso próximo. É uma cruz que precisamos tomar e carregarmos juntos. Mas não carregamos ela sozinhos. O Senhor Jesus a carrega conosco.
Estamos a caminho da sexta-feira da Paixão onde Jesus será crucificado em nosso favor para recebermos pleno perdão, graça e misericórdia. A quaresma nos convida a caminharmos com Jesus até a cruz onde ele mesmo se sacrificou por amor de nós, para aliviar a nossa carga. A cruz é inevitável. Ele irá para ela! E é dela que vem o conforto de Deus para o mundo inteiro.
Da cruz, Jesus estende os seus braços para o mundo. Da cruz, Deus abraça o mundo em seu luto não só pela doença do covid, mas todas as mortes. Da cruz, Deus estende suas mãos que convidam amorosamente ao arrependimento e conversão. Da cruz, Deus nos chama a uma nova vida que nega a cobiça, nega a si mesmo e toma a cruz. Da cruz, Deus nos chama a seguirmos a Jesus. Da cruz, Deus nos convida a olharmos ao nosso redor e a aceitarmos a realidade sem enfeites. Da cruz, Deus nos permite ouvir o seu próprio Filho como verdadeiro varão pendurado no madeiro e verdadeiro Profeta que demonstrou que Deus sofre com os fracos.
A loucura da cruz, porém, confunde as potências deste mundo. Aquele que é o Todo-Poderoso se faz fraco e morre de modo humilhante! Deus sangra na cruz! Deus se faz fraco e está com os fracos em sua tragédia e sofrimento. Deus não está nos que cobiçam o poder pelo poder; Deus não está naqueles que brigam antecipadamente pelo poder. Não! Deus está com os fracos que sufocam nas UTIs deste país. Ali Deus está sofrendo e sufocando.
Negamo-nos a nós mesmos, tomemos a nossa cruz e sigamos a Jesus. Amém.
2º DOMINGO NA QUARESMA | VIOLETA | CICLO DA PÁSCOA | ANO B
28/02/2021
Série de Pregações: Quaresma: O Raio-X de nós mesmos | Episódio 1
P. William Felipe Zacarias