Prédica: Romanos 5.1-11
Leituras: Êxodo 1.1-7 e João 4.5-42
Autoria: Léo Zeno Konzen
Data Litúrgica: 3° Domingo na Quaresma
Data da Pregação: 12/03/2023
Proclamar Libertação - Volume: XLVII
“Senhor, dá-me dessa água!”
1. Introdução
Quaresma é um tempo especial, uma espécie de retiro de preparação para a Páscoa. Tempo de afinar nossa identificação com Cristo, que caminha rumo à vivência do mistério de sua paixão, morte e ressurreição, o mistério pascal, centro de nossa fé cristã. Tempo de beber da água que brota da rocha da qual bebeu o povo de Israel a caminho da terra prometida (Êxodo 17.1-7). Tempo de pedirmos como fez a samaritana: Dá-me desta água, para que eu não tenha mais sede e não precise mais voltar para buscar água (João 4.5-42).
O 3º Domingo da Quaresma nos coloca em contato mais próximo com aquilo que aguardamos, pela graça de Deus, vivenciar na Páscoa do Senhor e na renovação de nosso batismo. Somos convidados a experimentar a paz que nos vem pela fé em Cristo Jesus. Mais ainda: mergulhamos na capacidade que a água viva de Cristo nos oferece para sermos capazes de nos orgulhar não só na esperança que visualizamos no horizonte, mas também das tribulações, sabedores que somos de seus bons frutos.
2. Exegese
O texto de referência para a prédica deste domingo é Romanos 5.1-11. Bem estruturada, essa carta apresenta partes bastante definidas:
a) uma introdução que contém uma espécie de “credo primitivo” e a formulação da “tese” da justificação pela fé (1.1-17);
b) a argumentação da “tese”, que inicia com a apresentação da condição de pecadores de todos, pagãos e judeus (1.18 – 4.25);
c) a vida nova, conforme o Espírito, que brota da ação graciosa de Deus, por meio de Jesus Cristo, que acolhemos pela fé e que transforma radicalmente a condição de pecadores (5 – 8); no início dessa parte encontra-se nosso texto de referência;
d) a esperança de que a vocação dos não judeus ajudará os judeus a entrarem também na dinâmica da graça e, assim, alcancem a salvação (9 – 11); e) orientações práticas para a vida cristã, a vida no Espírito, e saudações e notícias pessoais (12 – 16).
Essa estruturação da Carta aos Romanos é, obviamente, uma das possíveis, pois há outras com lógicas um pouco distintas. A carta, com efeito, foi muito estudada e diversas perspectivas de leitura estão disponíveis na rica bibliografia sobre a mesma. É desnecessário dizer que esse texto bíblico ocupa um lugar muito especial na história das igrejas da Reforma do século XVI, e serviu também de “teste” (com ampla aprovação, diga-se de passagem) para uma tradução ecumênica da Bíblia, uma feliz realidade hoje.
A perícope em questão apresenta uma interessante evolução de ideias: começa relacionando os capítulos anteriores com a paz com Deus que a justificação trouxe, lembrando que temos acesso a essa paz pela fé (5.1-2); fala que nos gloriamos e orgulhamos nessa graça e da esperança da salvação final e também da participação nas tribulações e dos seus frutos benéficos (5.2-5); explicita, a seguir, a grandeza e a profundidade do amor de Deus que, em Cristo, morreu por nós quando não tínhamos nenhum mérito, porque ainda vivíamos na condição de pecadores (5.6-8); conclui afirmando nossa nova condição de justificados e reconciliados, com a consequente certeza de que seremos salvos (5.9-11).
Nesse texto, o autor não menciona os dois grandes grupos que estavam em questão nos capítulos anteriores, ou seja, os judeus e os “pagãos”. Isso porque já ficou evidenciado que ambos se encontravam na mesma condição de pecadores e foram, igualmente, amados e agora estão justificados pela graça de Deus, bastando acolher essa salvação mediante a fé e caminhar correspondendo ao inefável amor de Deus, em meio a tribulações e na firme esperança da salvação definitiva.
Judeus e pagãos, justificados e reconciliados com Deus, podem então conviver nas comunidades sem preconceitos e respeitando as diferenças entre os grupos. Talvez Paulo tenha mesmo tido como um dos objetivos na Carta aos Romanos essa respeitosa e agradecida convivência entre os membros de origens diferentes nas comunidades. Não há mais motivos para ares de superioridade ou discriminações, nem de ressentimentos entre judeus e gregos, entre homens e mulheres, entre escravo e livre, como o autor lembra na Carta aos Gálatas (3.28).
A paz com Deus é a nova condição dos justificados por Jesus Cristo. Paz é muito mais do que um estado de espírito; ela é o grande bem messiânico que inclui todas as dimensões da vida e da realidade, com base no amor transformador de Deus. Não se trata, portanto, de um bem apenas individual; nas palavras de Jesus, nos evangelhos, é o Reino de Deus acontecendo na realidade humana. A graça da paz nos vem por Jesus Cristo, mediante a fé, individual e comunitária. Por enquanto, nós a experimentamos presente na caminhada, já estamos estabelecidos nela, mas ainda de modo parcial, pois a aguardamos na esperança.
A paz definitiva já é motivo de nos gloriarmos, porque temos a certeza da mesma. Mas ela é ainda um tesouro escondido que envolve tribulações. Essas tribulações (sofrimentos decorrentes de renúncias, desprezos, calúnias, perseguições, violências e aparente ausência de Deus) também são motivos de um saudável orgulho e autoestima, porque produzem perseverança, fidelidade comprovada e esperança que não engana.
O motivo da esperança não é necessariamente uma conjuntura favorável que promete dias melhores, mas o amor de Deus que foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo. A esperança também não é vencida quando não vislumbramos no horizonte sucessos e progressos e quando nossa realidade social e política apresenta muitos sinais de morte. A base de nossa esperança é outra!
Sim, nossa esperança tem raízes no amor transformador de Deus que se manifestou na morte/ressurreição de Cristo. Ninguém tem maior amor do que aquele que se despoja da vida por aqueles a quem ama, ou, noutra tradução, Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos – diz Jesus no evangelho (Jo 15.13). E esse amor, sem merecimentos de nossa parte, se renova em todos os tempos da caminhada da humanidade.
Agora que já estamos justificados, tanto mais seremos acompanhados e amados por Deus! Vale lembrar a Primeira Carta de João, que afirma nossa condição de filhos e filhas como prova do amor de Deus (1Jo 3.1). E o diálogo de Nicodemos com Jesus, no qual este diz: Deus, com efeito, amou tanto o mundo que deu o seu Filho, o seu único, para que todo que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna (Jo 3.16). É nesse amor de Deus que nos orgulhamos e gloriamos. Nosso motivo de orgulho e de nos gloriarmos não somos nós com eventuais méritos nossos, mas o amor de Deus que nos colocou numa nova condição, a condição de reconciliados com ele.
O desafio é acolher pela fé essa nova condição e corresponder a ela por uma vida no Espírito.
3. Meditação
O sonho da paz no mundo continua sendo perturbado, também em nossos dias. Como é difícil criar e manter uma cultura de acolhida, respeito, solidariedade e mútua colaboração entre países, povos, tendências políticas, culturas, religiões. As guerras são as expressões maiores dessa cultura discriminatória e violenta. Mas não são as únicas.
A meritocracia, quando levada a extremos, também contribui para as divisões, na mentalidade e na prática, entre grupos humanos. Aos inteligentes, competentes e esforçados, tudo; aos demais, pouco ou nada. E pensa-se que isso é mais do que justo.
E, junto, vem uma “teologia” que se diz cristã, mas que é altamente questionável: a “teologia da retribuição”. Segunda essa visão das coisas: quem merece, recebe; quem não merece, que se dane. Quem dá muito para Deus, dele recebe até iates, carros de luxo e mansões; quem dá pouco, passa fome. Quanto cinismo!
Não deixa de ser verdade que a gente colhe o que semeia. Mas isso não pode ser entendido apenas no plano individual, precisa ser considerado também no plano social e global.
É possível remar contra essa corrente? Como? O texto da Carta aos Romanos sobre o qual meditamos neste domingo pode socorrer-nos. Ele lembra a importância da fé em Cristo, mediante a qual estamos em paz com Deus. Judeus e gregos estão na mesma condição. Também hoje os grupos divididos entre si se encontram na mesma condição diante de Deus. A justificação e a consequente paz estão ao alcance de todos, não por seus merecimentos, mas porque Deus ama todos os seus filhos e filhas. A fé como aceitação e adesão ao modo de ser e de agir de Deus proporciona-nos o acesso à justificação e à paz com ele.
Somos portadores de uma mensagem de vida e de esperança. Já estamos na condição de reconciliados e vislumbramos a glória final, obra de Deus, que esperamos com firmeza e perseverança. O mundo precisa ver em nós essa condição e essa esperança. Somos testemunhas disso.
Nosso testemunho é desafiado pelas tribulações, pelas violências sofridas, pela indiferença que nos cerca. Precisamos, por isso, compreender que as dificuldades assumidas produzem perseverança, e esta faz crescer e comprovar a fidelidade, e a fidelidade provada produz a esperança. Esperança que não é sinônimo de conjuntura favorável, mas espiritualidade do amor e da presença de Deus em nossa caminhada.
Quaresma é tempo de beber das águas do amor de Deus que nos justifica e redime. É retornar ao deserto, onde o amor de Deus fez brotar água para os peregrinos sedentos e quase desanimados. É fazer-se samaritana que vê saciar sua sede no encontro com Jesus. Assim, saciados e alimentados, num processo de constantes renovações de nossa espiritualidade, avançaremos no testemunho da alegria do Evangelho e do respeito e da acolhida fraterna de nossos irmãos e irmãs, tornando-nos sinais do amor de Deus que experimentamos e no qual cremos com todo o nosso ser.
4. Imagens para a prédica
Pode-se aproveitar a imagem da água que Deus faz jorrar no deserto para o povo sedento e da água que Jesus oferece à samaritana. Tem-se, dessa forma, um vínculo entre as leituras bíblicas do domingo. O texto da Carta aos Romanos pode representar essa água que cura e mata a sede. O amor de Deus que nos justifica e redime, amor derramado em nossos corações pelo Espírito Santo, amor inaudito porque Cristo morreu por nós quando ainda éramos pecadores. É importante que abramos mais e mais nossa boca, neste tempo da Quaresma, para bebermos dessa água saudável.
Pessoas que dão a vida por outros, na maternidade, na defesa dos direitos dos mais frágeis, no serviço de preservação e restauração da natureza ou em outras tantas atividades de risco, também podem servir como imagens para falar do amor de Deus indescritível, manifestado em Cristo.
Inesquecível deve ser também a imagem da caminhada ou preparação para a Páscoa. Afinal, Quaresma é isso. Nessa caminhada, somos chamados à reeducação com base no amor de Deus que, afinal, celebraremos na paixão, morte, ressurreição/glorificação de Jesus e sua presença entre nós.
5. Subsídios litúrgicos
Pode-se criar uma simbologia. Por exemplo: uma grande bacia com água, uma pedra (rocha) dentro dela e uma cruz ornada com pano branco, plantada dentro dessa bacia. Facilmente se perceberá a relação dessa simbologia com o tema da justificação e remissão pelo amor de Deus, que é água a sustentar nossa caminhada.
Hinos que cantam a água viva, o amor transformador de Deus e nossa condição de filhos e filhas podem ajudar na vivência da unidade temática do culto.
Bibliografia
BÍBLIA. Tradução Ecumênica. São Paulo: Loyola, 1994.
BÍBLIA SAGRADA. Tradução oficial da CNBB. 3. ed. Brasília: CNBB, 2019.
PERROT, Charles. Epístola aos Romanos. São Paulo: Paulinas, 1993.
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