Celebração


ID: 2651

O gospel estoura no Brasil

01/12/1999

O gospel estoura no Brasil

• Paulo Hebmüller •

Antigamente, o termo gospel (literalmente, ¨Evangelho¨) identificava apenas um gênero cultivado ao longo da história por aqueles maravilhosos corais de negros americanos. Hoje, a palavrinha é usada para diferenciar as boas e velhas denominações ¨música sacra¨ ou ¨música cristã¨. Talvez porque ¨música sacra¨ pareça coisa de velho, e quem compra CD é, na maioria, a gurizada; talvez porque qualquer palavra em inglês soe ¨melhor¨ e mais chique do que aquelas da nossa espezinhada língua portuguesa.

Li na revista Vinde uma entrevista de Carlinhos Félix, ex-líder do grupo ¨Rebanhão¨ e um dos mais famosos e requisitados artistas gospel, ou cristãos, do momento. Ele disse o seguinte: ¨A música está pobre de letra e de arranjo. É sempre aquele andamento, aquele ritmo, sempre aquela 'levada', não tem a diversificação de ritmos que tinha antigamente. Hoje as músicas estão todas numa linha só¨. Em carta publicada na edição seguinte, argumentou que se referia à música em geral, e não particularmente ao gospel.

Do LP ao CD

O Carlinhos tem muito a ver com a modernização dos ritmos na música cristã do Brasil. Ela começou no final dos anos 60, início dos 70. Primeiro, por influência de missionários americanos, os grupos utilizavam versões em português de canções importadas. Em 1979, o ¨Vencedores por Cristo¨ (grupo que trabalha em diversas frentes, em especial com evangelização a partir da música, atuante até hoje com diferentes formações) mudou seu estilo e lançou um disco que virou marco: ¨De vento em popa¨ contém provavelmente as primeiras canções cristãs gravadas com ritmos, letras e instrumentos genuinamente brasileiros. Mais tarde, surgiu o ¨Rebanhão¨, banda que marcou época com suas letras mais diretas, cheias de gírias, solos de guitarra e ¨cara¨ de jovem da cidade. A chiadeira, claro, foi geral, com pastores tradicionais proibindo a presença do grupo em seus templos.

De lá para cá, a coisa mudou muito, acompanhando a substituição das simpáticas vitrolas pelos informáticos CD players. Se música sacra inicialmente lembra coral, hinário e comunidade circunspecta, o gospel é o ¨liberou geral¨. Cabe tudo nesse caldeirão: das baladas melosas ao rap contestador, do sertanejo ao pagode (tem um grupo chamado ¨PraGod¨), do choro ao ranger de dentes. Aí se incluem bandas heavy metal (que se autodenominam white metal, algo como ¨rock pesado, mas cristão, entende?¨) e shows com efeitos hollywoodianos. Tem para todos os gostos, todos os estilos, todos os templos, todos os ginásios e — o mais importante — todos os mercados.

Apego ao dinheiro

O gospel hoje, como tudo neste nosso planeta neoliberal, é business, e dos grandes. Segundo a revista Vinde publicou em março de 99, o segmento já responde por 30% do mercado musical no país. O que significa isso? Dados de 1996 da Associação Brasileira dos Produtores de Discos (ABPD) informam que foram vendidas quase 95 milhões de unidades — entre CDs, cassetes e até LPs — naquele ano. O Brasil é o sexto maior mercado mundial da indústria fonográfica, à frente de Canadá e Austrália, por exemplo. Um movimento de US$ 1,4 bilhão anuais. 30% disso dá US$ 420 milhões.

Difícil de acreditar numa participação tão grande? Também acho, mas acabei descobrindo que uma certa Cassiane, cantora surgida na Assembleia de Deus, já ganhou dois discos de ouro da ABPD (cada um equivale a 100 mil cópias vendidas). Muita gente boa da música popular não consegue ganhar nenhum. Nunca ouviu falar da Cassiane? Eu também não. E não esqueça do padre Marcelo Rossi. Seu CD ¨Músicas para louvar ao Senhor¨, lançado em 98 por uma das maiores multinacionais do setor, vendeu algo como 4 milhões de unidades. Nenhum título de nenhum artista nacional ou estrangeiro jamais havia alcançado essa marca. Não esqueça também que redes de lojas como as Americanas já colocam CDs gospel nas prateleiras, ao lado dos sertanejos bregas e dos pagodeiros.

Louvar ou agitar?

Uma das justificativas para batizar de ¨movimento gospel¨ essa onda surgida nos anos 90 é a tentativa de ¨abrir a mídia para a música cristã contemporânea¨. Falando em mídia e em gente bonita, Aline Barros, uma morena que tranquilamente poderia virar modelo, está chegando lá. Cantora gospel que vende aos borbotões, ela já participou até do programa da Xuxa na Globo e mereceu citação com foto em matéria da Veja sobre fenômenos musicais ¨paralelos¨ ao mercado tradicional (não vai aqui, por favor, nenhum juízo de valor sobre o trabalho da moça, até porque nunca parei para ouvi-lo. Importa sim a informação sobre os espaços conquistados).

Se é verdade que algumas coisas mudaram para melhor (diminuiu muito o amadorismo das produções, por exemplo), há quem não ache a nova realidade tão bonita assim. Muita gente séria e idônea segue produzindo material de qualidade, infelizmente com menor espaço na mídia e nas prateleiras tanto de livrarias evangélicas quanto de supermercados. Há algum tempo foi criada a AMC, Associação dos Músicos Cristãos — note que usam o ¨velho¨ termo ¨cristãos¨ e não gospel. Ela tem se preocupado com várias coisas, desde o boicote nas rádios e festivais a artistas não vinculados às grandes gravadoras até a verdadeira inspiração evangélica dos grupos e de sua música.

Cito apenas duas das muitas questões importantes levantadas pela AMC: temos que fazer o que é bom ou o que está na moda? Temos que louvar, trazer a presença de Deus aos cultos e apresentações ou somente ¨agitar a galera¨?

E nós?

A todas estas, caberia perguntar: como vai a nossa IECLB nesse terreno? Confesso que estou meio por fora do movimento atual, mas até há alguns anos tínhamos vários festivais ocorrendo regularmente: FEC, Femuca, Musisacra, etc. Havia bons trabalhos na linha de grupos vocais e corais tradicionais. Em compensação, quase nada em termos de bandas de formato e inspiração jovem, de perfil e ¨conteúdo¨ urbanos, que façam arranjos contemporâneos de qualidade e letras boas para a reflexão da moçada.

Nada contra os vetustos corais e os solenes trombones, mas não podemos nos limitar a ficar cantando hinos mais antigos que os 500 anos do Brasil. Essa gurizada de 29 grau e universidade, com perfil urbano ou próximo aos grandes centros, com grana no bolso, conectada na internet, na TV a cabo e em qualquer coisa que contenha as letras USA, já está suficientemente pouco estimulada para se sentir à vontade em nossos templos pré-modernos. Não precisamos fazer mais força para afastá-la. Uma das coisas que pode atraí-la é uma música que tenha registro em seu cérebro. E, de preferência, música de qualidade, que não esse gospel pasteurizado.

Hoje em dia, gravar e lançar um CD está ao alcance de praticamente qualquer um que se disponha a fazê-lo. Como no tempo dos bons e velhos LPs de vinil, ainda engatinhamos. Aqui e ali surge esporadicamente um lançamento, mas ainda somos tímidos nessa área. É preciso arriscar, lançar, batalhar, produzir. Só a quantidade e a experiência na produção levarão à qualidade.

Parece que ainda estamos discutindo se ¨como¨, ¨enquanto¨ ou, pra piorar, ¨a nível de¨ IECLB, devemos ¨nos inserir dentro desse contexto¨. Está mais do que na hora de dar o nosso recado, mostrar a cara, ir aonde o povo está e soltar a voz nas estradas. Afinal, quem sabe é capaz de fazer a hora, e não esperá-la acontecer, como diz aquela música que não é gospel, mas também já virou hino.


O autor é jornalista e reside em Valinhos, SP


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Autor(a): Paulo Hebmüller
Âmbito: IECLB
Área: Celebração / Nível: Celebração - Música
Título da publicação: Anuário Evangélico - 2000 / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1999
Natureza do Texto: Artigo
ID: 33078

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