Prédica: Mateus 5.21-37
Leituras: Deuteronômio 30.15-20 e 1 Coríntios 3.1-9
Autoria: Kurt Rieck
Data Litúrgica: 6° Domingo após Epifania
Data da Pregação: 16/02/2020
Proclamar Libertação - Volume: XLIV
Além do óbvio
1. Introdução
Palavras nos movem. O texto de Deuteronômio 30.15-20 exerce enorme impacto sobre o povo de Deus. Um projeto de vida é proposto: obedecer aos mandamentos do Senhor. Por vezes bem e mal vêm entrelaçados. Joio e trigo crescem juntos. Mesmo que queiramos fazer o bem, acabamos fazendo o mal. Essa escolha não é apenas uma escolha religiosa, é uma opção de vida ou morte. Os mandamentos organizam os relacionamentos e propõem a vida.
O apóstolo Paulo, em 1 Coríntios 3.1-9, lida com o antagonismo que existe no ser humano entre o que é carnal e o que é espiritual. É fundamental entender o que determina o agir de uma pessoa. Há uma infantilidade predominante que dificulta as relações comunitárias. Há uma maturidade espiritual esperada que se apropria de padrões divinos. No agir de Deus, o seu reino vai tomando forma e nós tomando parte.
E as palavras de Jesus anunciadas no contundente sermão do monte se achegam e nos falam. Quem reuniu toda essa gente para ouvi-lo falar? Seria um acontecimento semelhante a um grande fórum, que trouxe o mais renomado dos palestrantes? O que ele disse ontem? O que ele tem a nos dizer hoje? Há muito a ser dito, a ponto de faltar linhas para analisar tantos detalhes.
2. Exegese
O texto em estudo pertence ao primeiro dos cinco discursos de Jesus encontrados no Evangelho de Mateus: o sermão do monte. Dirigimos nosso olhar sobre a homilia acerca das leis de Moisés. Os mestres da Lei e os escribas julgavam que Jesus pregava contra os dez mandamentos. E isso que no versículo 17 ele claramente afirma: Não pensem que eu vim para acabar com a Lei de Moisés ou com os ensinamentos dos Profetas. Não vim para acabar com eles, mas para dar o seu sentido completo. E no versículo 20 encontramos a chave hermenêutica: Se vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, não entrareis no reino dos céus. “Com isso Jesus anuncia que a justiça é pressuposto da vontade salvífica de Deus” (MARKUS, 2013, p. 97).
Encontramos uma abordagem comum ao falar dos mandamentos. Ouviste o que foi dito (v. 21, 27, 33, 38 e 43). Poucos sabiam ler. Textos escritos do Antigo Testamento tinham sua reprodução limitada. As pessoas conheciam as Escrituras Sagradas, pois elas eram lidas nas sinagogas e ensinadas pelos escribas. Na sequência segue a mesma abordagem: Eu porém vos digo (v. 22, 28, 34). Jesus chama para si a responsabilidade pelo que irá ensinar. Ele traz luz sobre temas que são colocados em segundo plano. Essa autoridade soa estranha aos mestres da Lei. Palavras semelhantes encontramos em Marcos 1.22 e Mateus 7.28 e 29. Vejamos no detalhe três ditos de Jesus.
Do homicídio (v. 21 a 26): Não matarás (Êx 20.13 e Dt 5.17)
Homicídio é o ato (voluntário ou involuntário) de assassinar outro ser humano. Jesus afirma que matar é mais do que tirar a vida física de uma pessoa. Matar é também:
a) Irar-se com seu irmão (ficar com raiva, encolerizar-se). A presença da ira indica a falta de amor. Mas quem nunca se irou?
b) Insultar o seu irmão (você não vale nada, néscio). A palavra hebraica aqui utilizada é raca. É um som que, dependendo da pronúncia, indica ódio.
c) Chamar seu irmão de tolo (idiota) dentro de uma perspectiva moral. Equivale a manchar seu bom nome e reputação.
A condenação para tais atos é estar sujeito a julgamento e ser jogado no inferno, local denominado de Geena, um vale ao sul de Jerusalém onde era jogado o lixo da cidade, animais e criminosos mortos, que queimava ininterruptamente. “[...] lugar onde se destruíam mediante o fogo todas as coisas inúteis e falsas. É por isto que se converteu em sinônimo de poder destruidor de Deus, o inferno” (BARCLAY, 1973, p. 152).
Assim, o mandamento não se restringe em não matar o seu semelhante, mas impede até de pensar em matar alguém. Impede de cultivar qualquer sentimento agressivo contra outra pessoa. Essa atitude requer maturidade cristã.
Jesus faz as pessoas pensarem num ato litúrgico: a oferta no altar de Deus. Esse ato nos remete ao primeiro altar, à primeira oferta e ao primeiro homicídio relatado no livro de Gênesis, capítulo 4. Um ato que tinha a intenção de ser sagrado torna-se motivo de assassinato. Homicídio e oferta a Deus são antagônicos. Também em Gênesis 9, quando Deus faz uma aliança com Noé, centenas de anos antes da história de Moisés, está dito: Se alguém derramar o sangue de uma pessoa, o sangue dele será derramado por outra pessoa; porque Deus fez o ser humano segundo a sua imagem (v. 6 NA). A lei de talião, encontrada nesse versículo, predomina no Antigo Testamento e segue regendo a humanidade. Jesus aponta para outra ordem, a lei do amor incondicional (Mt 5.43 e 19.19). Se toda vida pertence a Deus, a vida humana igualmente lhe pertence.
Enquanto se está a caminho, há tempo para fazer acordos. Melhor não precisar buscar um juiz, pois a consequência poderá ser nefasta. Esse último bloco nos aponta para uma falta gravíssima, que com trato adequado, por mais difícil que possa parecer, ainda será melhor do que não desejar resolvê-lo. Pagar da prisão é bem mais complicado. Se ao juiz couber fazer juízo da sua culpa, os danos poderão ser ainda maiores. Melhor é não fugir da responsabilidade, reconhecer a dívida e buscar uma solução com o credor.
Do adultério (v. 27 a 32): Não adulterarás (Êx 20.14 e Dt 5.18)
Adultério é a traição que se efetiva quando alguém tem relações sexuais com outra pessoa com a qual não está casada. É a violação da fidelidade conjugal.
Jesus vai além. Não basta não cometer o adultério. É necessário não haver o desejo de adulterar. Os pensamentos são tão importantes quanto os atos. As pessoas serão julgadas pelos seus desejos. “Se houver intenção de cometer adultério, é adultério” (CHAMPLIN, 1982, p. 312). A palavra grega skandalon significa “o que faz tropeçar”. Jesus afirma que é melhor fazer uma intervenção cirúrgica nas partes do corpo que fazem tropeçar do que ser jogado no inferno. Tudo o que faz pecar deve ser eliminado. Se há em nós algum hábito, algum prazer, algum relacionamento que pode nos fazer pecar, esse deve ser extirpado de nossa vida, à semelhança de uma cirurgia.
Ao homem se dava facilmente a possibilidade de repudiar sua mulher. Elas eram dependentes financeiramente de seus esposos. O divórcio colocava as mulheres numa situação de extrema dificuldade. A carta de divórcio dizia assim: “Esta é a minha carta de divórcio, carta de despedida e documentação de tua liberdade, para que possas retornar a casar-te com o homem que queiras” (BARCLAY, 1973, p. 163).
Mas Jesus reitera que o matrimônio é um vínculo que não deve ser rompido, exceto em caso de adultério, pois esse é quebra de confiança. O contexto cultural em que Jesus vivia era influenciado pela promíscua cultura grega, que, por sua vez, influenciou a cultura romana. A pregação de Jesus foi marcada pelo agape (amor), em que o exercício do amor incondicional é a base dos relacionamentos. Havendo agape no matrimônio, não há adultério e muito menos divórcio. Essa boa nova fez com que muitas mulheres aderissem ao chamado de Jesus.
Dos juramentos (v. 33-37): Não tomarás o nome do Senhor, teu Deus, em vão [...] (Êx 20.7 e Dt 5.11 RA); Não façam juramentos falsos pelo meu nome (Lv 19.12 NA)
Vemos motivos pelos quais se jurava: céu, terra, Jerusalém e a própria cabeça. Céu está associado à pessoa de Deus que age no transcendente. A terra expressa o poder de Deus revelado na grandiosidade do imanente. Jurar por Jerusalém era uma maneira indireta de jurar pelo nome de Deus. A cabeça lembra o ser humano feito à imagem de Deus. Em todas as variantes é o nome de Deus que está posto como avalista. Nada justifica fazer uso de tais subterfúgios para garantir palavras ditas. As falas, os relacionamentos se tornam autênticos quando a simplicidade do sim e do não é dita com verdade.
Jesus constata que as pessoas não cumpriam os juramentos e as promessas que faziam em nome de Deus. Quanta hipocrisia e quanta falsidade as regem! A ordem é clara: não jureis. A ordem recebe uma palavra a mais: não jureis falso. A ordem se consolida: diga simplesmente sim ou não. Basta ser verdadeiro e dizer sim ou não.
3. Meditação
Jesus lembra aos judeus aquilo que eles já sabiam. Nós igualmente somos lembrados daquilo que também sabemos. Os mandamentos, em sua essência, são claros e objetivos, mas no decorrer da história foram reinterpretados e, em muitas situações, desvirtuados do seu significado original. Palavras resgatam parâmetros para uma vida favorável. Vale lembrar o que o Catecismo Maior e o Catecismo Menor refletem sobre esses temas.
Do homicídio
Transitando pelas histórias do Antigo Testamento, encontramos muitos relatos de homicídios, a exemplo de Samuel, Saul e Davi. Como explicar as carnificinas realizadas em nome de Deus? Desse mandamento decorrem reflexões de temas como guerra justa e pena de morte. O ser pecaminoso esquece essa lei que protege a vida.
Os homicídios são assim classificados: a) culposo – realizado sem a intenção de matar; b) doloso – aquele em que existe a intenção de matar; c) qualificado – em que há agravantes como: crueldade, premeditação, planejamento; d) privilegiado – cujas circunstâncias são atenuantes, sendo caracterizado, por isso, como menos grave. Dados atuais de índice de homicídio podem colaborar na ilustração da homilia.
A interpretação dada por Jesus nos leva ao que antecede o homicídio, mas que igualmente tem a força de matar uma pessoa:
a) Irar-se com seu irmão ou irmã (ficar com raiva). Pode haver a “ira justa”? Lutero a chama de “ira do amor, aquela que não deseja mal algum a ninguém, aquela que é simpática para com a pessoa, mas hostil para com o pecado” (LUTERO, 1982, p. 78).
b) Insultar o seu irmão ou irmã (você não vale nada). Bullying é o termo pós-moderno que expressa essa preocupação de Jesus. São palavras e atitudes contra outra pessoa que a destrói, mata, intimida, agride, agindo numa relação desigual de forças.
c) Chamar seu irmão ou sua irmã de tolo (idiota). Trata-se de atitudes que expressam desprezo para com seu semelhante.
Nossos relacionamentos são repletos de exemplos em que palavras provocam mortes. É fácil presenciar situações nas comunidades, nos grupos, nas diretorias, entre ministros e ministras, entre lideranças leigas e clérigos em que acontecem disputas e tensões que acabam em insultos. Tudo tão humano e devastador, regido pela lei do talião. Muita dor e muito sofrimento existem quando não temos a humildade de tratar pessoalmente as tensões, ou quando nos tornamos prepotentes. Entre nós não pode ser assim.
No ambiente sagrado da entrega de uma oferta, o que fazer quando a consciência faz lembrar uma desavença, ou uma atitude incorreta? Não é você que tem algo contra alguém. É alguém que tem algo contra você (v. 23). O olhar está para o outro. Deixa-se o rito sagrado de lado, pois o mais sagrado nesse momento é ir ao encontro daquela pessoa que tem uma queixa contra você. Isto se faz necessário: dar a meia volta, buscar humildemente o caminho do encontro, da reconciliação. Depois, com júbilo, mesmo chorando, retoma-se o caminho do altar para fazer a oferta que brota do coração agradecido.
Do adultério
A sexualidade humana está em pauta. Numa sociedade marcada pela falta de solidez, de princípios e regras, as pessoas se jogam ao prazer sexual, sem pesar as consequências de seus atos. Os meios de comunicação, que ditam a cultura, fazem um coro em favor do adultério. Como se posicionar frente a esta realidade?
No tempo de Jesus, os princípios culturais apregoados pelos gregos e romanos eram semelhantes ao liberalismo de hoje. Jesus reitera que a relação sexual é presente do criador para ser usufruído no casamento. Princípios fundamentam relacionamentos no reencontro de caminhos de paz e ordem.
A palavra “castidade” se faz implícita. Vem da palavra “casto”, proveniente do termo castus (latim), que significa “puro”. Essa prática, fora de moda, tem a força de se tornar a chave de uma contracultura. Como ilustração segue o link de uma reportagem referente a esse assunto:
Casamento marcado pela agape estará construído em solo firme. O casamento é uma aliança de amor recíproco e de confiança mútua, um pacto, uma decisão de amor. Somente a falta de amor é que poderá separar um casal.
Dos juramentos
Os mestres judeus afirmavam: “O mundo firmemente se apoia sobre três pilares: a justiça, a verdade e a paz”. “Há quatro tipos de pessoas que estão excluídas da presença de Deus: o burlador, o hipócrita, o mentiroso e aquele que faz circular calúnias ” (BARCLAY, 1973, p. 169).
Surge, em 2016, um slogan: Não é não. Trata-se de uma campanha publicitária desenvolvida por mulheres, no período de carnaval, para evitar o assédio masculino. As pessoas se passam com as outras. Um “não” não é suficiente.
E se pensarmos nas promessas feitas! Lembro as palestras pré-batismais. Expõem-se o significado do sacramento, sua relevância, o impacto para a vida familiar. Tudo compreendido. Tudo aceito. Na prática, para muitos, o sim se torna não. No ensino confirmatório, o mesmo quadro se repete. E quando da bênção matrimonial? São tantos sim ditos no altar e tantos não postos em prática!
Vamos nos ver livres dos falsos juramentos!
4. Imagens para a prédica
Do homicídio
“Guerras surgem no espírito do homem. Assim, no espírito do homem, as obras para a defesa da paz devem ser erguidas” (PEISKER, 1975, p. 24).
Do adultério
Numa viajem, sentou-se ao meu lado uma jovem grávida, que se despedia, pela janela do ônibus, de um homem e de uma criança. O ônibus pôs-se a rodar. Assim que ela soube que eu era pastor, contou sua história. Lá fora estava seu noivo e seu filho. Estava indo para a casa dos pais, pois havia descoberto que seu noivo, com o qual mora há três anos, tinha um relacionamento com outra mulher casada. Infidelidade! Afirmava ela: Como posso acreditar nas suas declarações de amor? O noivo vinha de uma família desestruturada. Deixou-se levar pela paixão, sem conhecê-lo suficientemente. Estava indo para a casa dos pais buscar conselhos. Identificou-se como luterana. Lembrou o culto infantil, o ensino confirmatório, o grupo de jovens. Contou o quanto sentia falta da igreja. Precisava retomar aquele laço. Assim se dão inúmeras histórias nesta sociedade líquida.
Dos juramentos
“A justiça dos fariseus consiste em não jurar falso. O Senhor confirma essa justiça proibindo, além disso, fazer qualquer juramento que seja, o que é próprio do Reino dos Céus. Assim como é impossível ser dita qualquer mentira por quem permanece calado, também será impossível ser feito um juramento falso, quando não é feito juramento algum” (AGOSTINHO, 2017, p. 73).
5. Subsídios litúrgicos
Confissão de pecados
Acreditamos que sempre temos a razão. Senhor, como é fácil julgar os outros e ver neles o quão culpados são. Cristo, obrigado por receberes com uma palavra de perdão aqueles a quem o mundo despreza, mas que, no entanto, reconhecem a sua culpa. Cristo, também exortaste com severidade àqueles satisfeitos em si mesmos e que reprimem qualquer sentimento de culpa Tem piedade, de nós Senhor!
Proclamação da graça de Deus
Arrepender-se é reconhecer a culpa. É o senso de culpa que nos leva a Deus, que, por sua vez, nos revela o seu amor e o seu perdão. Bem-aventurados os limpos de coração, porque verão a Deus.
Oração do dia
Amado Deus, quero te dizer o quanto sou grato pelas tantas vezes que me tens carregado, que me tens animado, que me tens estendido a mão, justamente quando não sabia como continuar! Grato também que, diante de todas as minhas lamúrias e minhas queixas, dizes pacientemente: Eu te ouço! Sim, Deus, tu ouves a oração de todos nós. Ouves a nossa oração de gratidão. Ouves a nossa oração de intercessão. Ouves as nossas súplicas. Nesta manhã também estamos aqui para ouvir a tua palavra. Fala conosco, Senhor. Amém! (Adaptado das Senhas Diárias de 10.07.14, Gisela Kandler).
Bênção
Que o Senhor te acompanhe ao partires deste lugar.
Que vá à tua frente para iluminar o teu caminho.
Que caminhe ao teu lado para ser sempre teu amigo.
Que vá atrás de ti para te proteger de qualquer dano.
Que seus braços carinhosos estejam sobre ti
para te sustentar quando o caminho for duro e estiveres muito cansado.
E, sobretudo, que viva em teu coração
para te dar sua alegria e sua paz para sempre, no caminho da unidade.
Amém!
Bibliografia
AGOSTINHO, Santo. O Sermão da Montanha e Escritos sobre a Fé. São Paulo: Paulus, 2017. (Coleção Patrística, v. 36).
BARCLAY, William. El Nuevo Testamento, Mateo I. Buenos Aires: La Aurora, 1973. v. 13
CHAMPLIN, Russel Norman. O Novo Testamento Interpretado Versículo por Versículo. Guaratinguetá,SP: A Sociedade Religiosa A Voz Bíblica, 1982. v. 1.
LUTERO, M. O Sermão do Monte [1521]. In: STOTT, John. Contracultura cristã. ABU, 1982. p. 78
MARKUS, Cledes. Mateus 5.21-37. 6º Domingo após Epifania. In: HOEFELMANN, Verner (Coord.). Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2013. v. 38, p. 97
PEISKER, Carl Heinz (Hrsg.). Texte zur Predigt. Wuppertal: Brockhaus, 1975. v. 2, p. 24.
RIENECKER, Fritz. Das Evangelium des Matthäus. Darmstadt: Brockhaus Verlag Wuppertal, 1981.
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