Prédica: João 1.(1-9)10-18
Leituras: JEREMIAS 31.7-14 e EFÉSIOS 1.3-14
Autor: Flávio Schmitt
Data Litúrgica: 2º Domingo após Natal
Data da Pregação: 05/01/2014
Proclamar Libertação - Volume: XXXVIII
1. Introdução
O texto de João 1.1-18 já foi abordado em outros auxílios homiléticos. Nas edições de número XIX, XXV, XXXI e XXXVII, o auxílio limita-se aos v.1-14 do evangelho. As edições de PL XXIII e XXIX tomam o texto todo (Jo 1.1-18) como uma unidade. A edição XXXIII do PL, embora considere os v. 1-9, confere ênfase aos v.10-18. Além disso, as edições de número XIX, XXV e XXXI relacionam os v. 6-8 com os v. 19-28, em que é dado destaque ao testemunho do evangelista sobre João Batista.
Todo esse volume de material já publicado em edições anteriores mostra o quanto a passagem bíblica indicada para pregação no segundo domingo após o Natal tem um lugar destacado na liturgia da comunidade cristã. Não há dúvida de que, nesses primeiros dezoito versículos do Evangelho de João, estão presentes algumas das verdades fundamentais da fé cristã, confirmada por meio de confissões de fé (Credo Apostólico), fundamentos teológicos (Criação, Encarnação, Trindade, Lei, Graça) e testemunhos históricos (João Batista). Cumpre à pregação resgatar e anunciar essas diferentes dimensões do texto.
2. Exegese
A presença de João 1.(1-9)10-18 nessa data litúrgica, juntamente com a passagem do profeta Jeremias (Jr 31.7-14) e a perícope da Carta aos Efésios (1.3-14), aponta para a chave hermenêutica a ser observada na leitura e interpretação do evangelho. Enquanto a passagem de Jeremias fala da alegria pelo retorno dos exilados e pela transformação a ser operada pela ação de Deus na vida dos que sofrem, a Carta aos Efésios aponta para a questão da preexistência e predestinação para a glória na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, em quem somos transformados em novas criaturas.
As pesquisas no Evangelho de João têm girado em torno do processo de composição do evangelho e da identidade ou natureza das comunidades joaninas. No que diz respeito à primeira questão, há várias teorias acerca do processo de construção que resulta em nosso atual evangelho. Brown apresenta três etapas diferentes. Vidal distingue quatro momentos distintos. Em ambos está presente a compreensão de que o prólogo do Evangelho de João é uma introdução ao evangelho, seguida pelo “livro dos sinais“ (1.19-12.50), e a toda a literatura joanina. Sua origem está relacionada com as tensões e conflitos da comunidade joanina com outras tradições religiosas, especialmente as de matriz gnóstica. Nesse sentido, o prólogo seria resultado do encontro do momento vivido pela comunidade joanina e sua compreensão do papel desempenhado por Jesus no momento da redação final do evangelho.
O que está em jogo no prólogo de João é a identidade de Jesus. No estágio em que se encontra, a comunidade joanina formula sua compreensão de Jesus recorrendo a uma terminologia, discurso e linguagem diferentes daqueles transmitidos pelos sinóticos.
No discurso da comunidade, Jesus é apresentado em categorias que se tornaram normativas para a doutrina e tradição da igreja. Numa clara perspectiva pós-pascal, Jesus reúne em sua pessoa as dimensões que, na doutrina da Trindade, estão reservadas também ao Pai e ao Espírito Santo. No entanto, o que o prólogo procura destacar é a encarnação de Jesus. Encarnação é o modo de revelar-se de Deus em Jesus. Em Jesus, revelação torna-se encarnação.
Da mesma forma como alguns autores identificam a imagem veterotestamentária da Sabedoria personificada (Ec 24 e Sb 9) como pano de fundo da narração, também se poderia cogitar a possibilidade do “Hino da Pérola“ ocupar esse lugar. Nesse texto gnóstico, presente no livro apócrifo “Os Atos de Tomé“, é contada a história de um príncipe que é enviado para uma missão, durante a qual ninguém o reconhece, e depois retorna ao reino do pai.
V. 1-3 – O prólogo começa tratando da transcendência de Jesus. Não se trata de uma transcendência transcendental, mas de uma transcendência imanente. A linguagem empregada (no princípio, logos, e o tornar-se) logo revela os limites da linguagem para expressar o que Jesus de fato é: Filho Único de Deus encarnado. Jesus é a palavra, o discurso e a linguagem de Deus. Ele é o logos.
V. 4-5 – Estes versículos inauguram uma nova linguagem. Enquanto os três primeiros versículos estão preocupados com a matriz divina de Jesus, agora entram em cena as metáforas luz e vida para contrastar com trevas e incompreensão. Jesus é a luz do mundo, luz dos homens (Jo 8.12, 9.5, 14.4). Jesus é a vida (Jo 10.11, 14.6). A palavra “luz“ aparece 74 vezes no Novo Testamento. Desse total, 34 vezes na literatura joanina, sendo 24 vezes no Evangelho de João. Nos sinóticos, aparece somente 15 vezes (Mateus: sete vezes; Lucas: sete vezes; e Marcos: uma vez). Da mesma forma, a palavra luz tem um papel de destaque no evangelho. Cabe ao logos comunicar vida e luz.
V. 6-8,15 – Agora João Batista é chamado à cena. Ele é a testemunha histórica de que Jesus existiu. Ao abrir esse parêntese para inserir a figura de João Batista no hino, o prólogo quer mostrar que João é a primeira testemunha da luz (v. 6-8). No entanto, o aparecimento da luz não é garantia de sua aceitação e reconhecimento. João Batista, como enviado de Deus, desfruta no Evangelho de João do mesmo grau de dignidade que Jesus e o Paráclito desfrutam (3.17,34; 5.38; 14.26; 15.26;16.7). A finalidade do testemunho de João é para que todos creiam (v. 7). Esse é também o sentido da menção de João Batista no v.15. Ao contrário dos sinóticos, onde João Batista é o precursor, nesse evangelho João é a testemunha. Nesse sentido, João Batista, ao testemunhar a existência de Jesus, torna-se avalista da existência do logos.
V. 9-14 – A partir do v. 9, o logos é ambientado no mundo. O mundo e o ser humano foram criados por meio dele (v. 9-10). O v. 11 introduz uma tensão no texto, a saber: a rejeição do logos. Enquanto a tradição sinótica irá narrar uma série de situações, normalmente encenadas no Natal, que denunciam a rejeição de Jesus por parte dos seus, João simplesmente diz “e os seus não o receberam“. No entanto, é no v. 12 que reside a ênfase do texto. Aos que creem deu o poder de ser filhos de Deus. Essa inserção na família de Deus representa um dos elos fundamentais para a comunidade joanina. Não se trata da família consanguínea, como descreve o v.13, mas da família de fé. O v. 14 tem a função de amarrar os diferentes aspectos desenvolvidos no texto até aqui. A razão de ser do logos é ser Emanuel – Deus conosco. É sua presença entre nós que revela sua glória.
V. 16-18 – Os v. 16-17 tematizam a questão da lei e da graça. Talvez tenhamos aqui resquícios da tensão entre judeus e cristãos na comunidade joanina. Assim como Paulo em Romanos (9-11), o prólogo faz menção do papel da Lei, dada por Moisés, e da graça, revelada por Jesus, no conhecimento do Pai. Para ver o Pai, é preciso conhecer a graça e a verdade reveladas por Jesus Cristo. De agora em diante, conhecer o Pai significa conhecer seu Filho Unigênito (v. 18).
3. Pregação
A proposta de recorte do texto (Jo 1.[1-9]10-18) abre várias possibilidades para a pregação. Um ponto importante para a pregação é o momento litúrgico vivido pela comunidade. A comunidade precisa ser lembrada de que ela se encontra depois do Natal e do Ano Novo. Em geral, esse momento do calendário ocidental é marcado pela vivência de emoções mais intensas, seja pela perspectiva do novo que o ano anuncia, seja pelos resultados, positivos ou negativos, do ano que findou. Essa contextualização da pregação pode ser decisiva na ênfase a ser dada no texto de pregação.
Entre as diferentes perspectivas apontadas pelo texto está sua relação com o nascimento de Jesus. Enquanto os sinóticos têm sua maneira própria de falar do nascimento de Jesus e de seu significado para a vida dos crentes, João destaca a encanação de seu modo, falando da origem divina de Jesus.
Dentro desse horizonte da encarnação, alguns aspectos podem ser acentuados. Por exemplo, a questão da rejeição. De modo algum, a pregação deveria tapar o sol com a peneira das luzes e foguetes das festividades que ficaram no passado. De fato, embora estejamos inseridos numa cultura cristã, a aceitação de Jesus, tal qual proposta pela comunidade joanina, deixa muito a desejar. Os sinais estão em toda parte.
Porém, assim como no próprio texto, talvez mais do que destacar a rejeição de Jesus por parte daqueles para quem foi enviado, a pregação pode destacar os aspectos que fazem a diferença para os que o recebem. O que, afinal, significa para nós hoje ser filhos de Deus? Uma frase difundida em vários formatos diz: “Não sou dono do mundo, mas filho do dono“. Embora a pregação deva precaver--se contra o perigo de entrar num discurso “autoajudista“ em relação a ser filho de Deus, a intimidade com a graça, a luz, a verdade e a vida pode e deve ser destacada. O que significa isso para dentro de nosso mundo em vista do ano-novo que a comunidade tem diante de si? Quais são os compromissos com os quais efetivamente a comunidade em geral e cada cristão em particular estão dispostos a nos comprometer como filhos de Deus?
Outra direção à pregação poderá ser dada a partir do papel desempenhado por João Batista no prólogo de João. Nessa perspectiva, o desafio será relacionar o papel de João como testemunha com o papel que a comunidade tem de testemunhar acerca do logos. Ao mencionar o nome de João Batista, o evangelista recorda a comunidade da vida e morte dessa testemunha. Muito mais do que ceder o nome para as festividades de São João, João Batista pagou com a própria vida, como tantos mártires depois dele, por causa de seu testemunho.
Embora a época litúrgica seja outra, o tema da Trindade também encontra importantes subsídios no texto de João. A tentativa de responder a pergunta “quem é Jesus?“ pela comunidade joanina deveria levar nossas comunidades a ter maior clareza sobre o evangelho que é anunciado por meio de sua vida. Se fôssemos reescrever o evangelho a partir do testemunho de muitas de nossas comunidades e das pessoas batizadas em geral, certamente ficaríamos surpresos com a boa-nova que estamos comunicando.
4.Subsídios litúrgicos
Versículo de entrada: Porque todos os que são guiados pelo Espírito de Deus são Filhos de Deus (Rm 8.14).
Oração do dia: Senhor, acolhe nossa presença diante de Ti como expressão de nossa vontade: Queremos ser teus filhos e filhas! Queremos receber a graça de participar da família da fé. Somos irmãos e irmãs por causa de Jesus. Permite que, reunidos em Teu nome, ouçamos a Tua palavra. Dá-nos Teu Santo Espírito para que sejamos verdadeiramente filhos de Deus hoje e por todos os dias de nossas vidas. Amém.
Oração final: Agradecer pela revelação de Deus em Jesus, por Jesus ser a linguagem de Deus para nossa vida e salvação, pelo evangelho, pela encarnação, por sermos filhos e filhas de Deus.
Intercessão: Pelos que “ainda não têm luz“, pelos que rejeitam Jesus, pelos que acolhem Jesus apenas nas festas (Natal) e vivem da “graça barata“, por todas as pessoas batizadas em nome de Jesus, pelas comunidades comprometidas com o evangelho, pelas igrejas que testemunham o reino de Deus. Interceder pelas testemunhas que permanecem fiéis ao chamado, não obstante as adversidades, desafios e incertezas. Interceder pelos que estão em dúvida, confusos e sem esperança.
Bibliografia
BROWN, Raymond Edward. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 2004.
VIDAL, Senen. Los escritos originales de la comunidade del discípulo “amigo” de Jesus: el Evangelio y las Cartas de Juan. Salamanca: Sígueme, 1997.
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