Prédica: Jeremias 1.4-10
Leituras: Lucas 4.21-30 e 1 Coríntios 13.1-13
Autoria: Norberto da Cunha Garin e Edgar Zanini Timm
Data Litúrgica: 4º Domingo após Epifania
Data da Pregação: 31/01/2022
Proclamar Libertação - Volume: XLVI
O desafio de responder à vocação de Deus
1. Introdução
A profecia teve lugar significativo em Israel. Entre os povos da antiguidade, foi o lugar onde mais persistiu como elemento de educação e de crítica política. Chama nela a atenção o seu grau de espiritualidade e de influência moral sobre o povo.
O rei Josias havia desenvolvido uma política que contemplava uma reforma religiosa em Israel. O culto a Javé se tornara uma figura central na vida do povo. Nesse contexto, o profeta Jeremias tinha seus seguidores.
Com a morte brusca de Josias, aconteceram alterações significativas na política. O profeta assumiu um papel profético crítico e, com isso, iniciaram-se as hostilizações contra a sua pessoa. Com a destruição de Israel como povo (586 a.C.), perdeu boa parte dos seus admiradores e se viu envolto em perseguições e ameaças de morte. Sua missão profética anuncia o juízo, que não é sua invenção, mas resultado da idolatria. Seu ministério, portanto, conviveu com estes dois extremos: a reconstrução e a derrocada de Israel. A pregação do profeta centrava-se na busca do caminho da graça mediante o exercício da justiça, pois a idolatria havia desmanchado a possibilidade de fé.
A perícope em análise é fruto de uma redação posterior, pós-exílica, que sinaliza a dureza da missão que lhe pesou sobre os ombros. O texto avança um pouco além da vocação do profeta, com preliminares da sua missão, quanto aos destinatários e ao início de sua pregação. Aponta para uma interlocução entre Javé e Jeremias que transcende o falar de Deus.
A leitura do evangelho remete à vocação de Jesus, que depois de anunciar a libertação proclamada por Isaías recebe elogios de conterrâneos, mas que logo a seguir recebe críticas e os presentes tentam levá-lo à morte. Há uma similaridade com o ministério de Jeremias, que de aplausos e seguidores passa a ser perseguido e preso. A perícope da epístola aponta para o resgate da graça divina fundada no amor, na esperança e na fé, sobretudo, como na profecia de Jeremias.
2. Considerações exegéticas
V. 4 – A expressão “e veio a palavra” (wayhî dəḇar) é utilizada no Antigo Testamento diversas vezes no contexto de chamados que Javé faz a seus enviados para alguma missão. Ao longo do livro de Jeremias, aparece diversas vezes sinalizando a presença constante de Javé no seu ministério profético; já “para mim” (’êlay) evidencia o destinatário do chamado com o sentido de que o chamado divino acontece “no” (‘ê-lay) profeta; esse versículo sinaliza a intenção divina de falar ao povo além dos canais oficiais (sacerdotes), portanto fora do meio religioso, o que tornou a tarefa profética mais pesada.
V. 5 – Algumas expressões fundamentais deste versículo: “Antes que eu te formasse no ventre” (ḇabbeṭen) se reporta à época da consagração por Javé. É expressão recorrente no Antigo Testamento (Jz 13.5 = Sansão; Is 49.1,5 = servo do Senhor). Sinaliza a maneira profunda como Javé estabelece a sua consagração. “Eu te conheci” (yəḏa‘tîḵā) demonstra a profundidade da relação íntima de Javé com o profeta, retratando uma concepção carregada de significados e de propósitos. Tem o sentido de predestinar. “Eu te santifiquei” (hiqdaštîḵā), segundo John Wesley (1703-1791), significa que Deus fala intimamente com Jeremias, diferentemente do que falou com outros profetas, visto que ele necessitava de um encorajamento especial por causa da sua pouca idade e dos enfrentamentos futuros. Indica a separação para um ministério. “Às nações” (laggōwyim): sua mensagem deveria transcender os limites de Jerusalém e de Israel, na medida em que as outras nações interferiam na forma de viver de Israel. Há uma intencionalidade de demonstrar aos povos contemporâneos o poder de Javé. O chamado do profeta aponta para um acontecimento extraordinário na sua vida.
V. 6 – A interjeição “Ah!” (‘ăhāh) aponta para a inconformidade de Jeremias, que sabia a dimensão de ser profeta e evidencia sua insegurança diante da missão. “Eis que não sei falar” (lō-yāḏa’tî dabbêr) parece constituir-se numa justificativa de omissão, como no caso de Moisés se recusando ir ao Faraó (Êx 4.10; 6.12). “Não passo de uma criança” (na‘ar ’ānōḵî) é uma expressão utilizada por Salomão diante da sua indicação para o reinado de Judá, alegando que é muito jovem (1Rs 3.7). No contexto da derrota dos midianitas, quando Gideão ordena que Jeter mate os inimigos, este não levanta a espada com a justificativa de que era muito jovem (Jz 8.20). Percebe-se que a justificativa de ser jovem referenda a tentativa de fugir de uma missão não é sem razão. Como não tivesse alcançado a maior idade, nem mesmo a condição de cidadão israelita, sua pregação encontraria dificuldades de ser aceita. O lamento do profeta carrega a expressão do seu sentimento diante da tarefa que estava desempenhando (Jr 20.7,9).
V. 7 – Javé não aceita o argumento da pouca idade. “Não digas” (’al-ṯōmar) representa uma recusa determinada sobre a justificativa do profeta. Deus lhe responde: “porque a todos a quem eu te enviar irás” (‘ešlāḥăḵā ṯêlêḵ). O ato de enviar com uma missão implica carregar a autoridade de quem o está enviando. “E tudo quanto eu te mandar falarás” (təḏabbêr): trata-se mais de uma promessa (Joseph Benson, 1749-1821) do que de uma ordem divina, mas impossível de ser recusada, porque traz no seu contexto uma capacitação (Êx 7.1-2).
V. 8 – A expressão “não temas” (‘al-tîrā) está associada à promessa e à capacitação que Javé oferece a seus enviados (Abraão: Gn 15.1; Josué: Js 8.1; Acaz: Is 7.4). Mas também se reporta à sua companhia nos momentos mais difíceis da missão, que não foram poucos (Jr 1.18-19; 11.18; 15.15; 20.2,7b,10,11 entre outros); “Eu [sou]” (’ănî), que se repete 692 vezes no Antigo Testamento, identifica a presença de Javé como companheiro e salvador no momento da dificuldade (Moisés: Êx 6.2). “Para te livrar” (ləhaṣṣîləḵā) faz parte da promessa. O medo do profeta estava relacionado ao enfrentamento de uma situação difícil diante de um povo degenerado, que não seguia a Lei (João Calvino, 1509-1564).
V. 9 – “A mão” [dele] (yāḏōw): não há intermediário, mas a própria mão de Javé. Um toque físico, “na boca” (‘al-pî), indica o local mais particular do corpo da pessoa. Revela o grau de intimidade que haveria entre o profeta e Javé. Aponta para a natureza da sua missão: mensagem. A boca é o instrumento da palavra (Moisés e Arão: Êx 4.15-16). “Eis que ponho” (nāṯattî): o próprio Javé coloca a sua mensagem na boca do profeta (pregação de conforto para Sião [Is 51.16]. Veja a promessa de Javé de transformar as palavras em fogo na boca do profeta [Jr 5.14]).
V. 10 – Javé estabelece o profeta como seu autêntico enviado: “te constituo” (hip̄qaḏtîḵā) – expressão semelhante em Êxodo 7.1, quando Javé constitui Moisés como seu servo. Indica que ele levará a autoridade divina para realizar a missão que deveria se impor sobre “as nações” (‘al-haggōwyim), portanto que transcendia os limites do seu povo. A dimensão de sua missão incluía “para destruir” (ləha’ăḇîḏ) e “para construir” (liḇnōwṯ). Em Jeremias 18.7 e 31.28, Javé repete essa dimensão. São verbos que refletem a trajetória da ação profética, pois somente após destruir/derrubar o povo estará pronto para construir/edificar. Esse versículo reflete a mensagem, não só a mensagem de Jeremias, como de resto, a mensagem profética de Israel que anuncia a possibilidade de uma nova história com o surgimento de uma nova aliança de Javé. Nessa, a justiça e o direito, tão negados na antiga ordem, são anunciados como bálsamo para o novo que está nascendo.
3. Meditação
A missão na qual Deus envolve as pessoas quase sempre não é aquela tarefa desejada. As pessoas têm seus desejos e isso é natural. São escolhas que se reportam ao seu contexto social, com características econômicas, culturais, religiosas, políticas entre outras. Mas o Senhor tem necessidades que não se encaixam nos desejos das pessoas. Essa vontade de Deus manifesta ao ser humano pode ser chamada de vocação.
O profeta Jeremias, descendente da linhagem sacerdotal, tinha seus desejos compatíveis com os desejos adolescentes de sua época. A necessidade divina não coincidia com esses desejos. Jeremias queria colocar em prática sua tendência juvenil e Javé queria que ele assumisse uma postura política, social e religiosa bem distinta. Ele precisou percorrer o caminho que ia da realização dos seus desejos ao cumprimento de uma missão crítica e transformadora para o seu povo. Isso não é pouco!
Possivelmente, ainda estejamos mergulhados nas consequências da catastrófica pandemia de Covid-19. Experimentamos vontades e desejos pessoais compatíveis com nossa condição e contexto social. Como aconteceu ao longo de 2021, tivemos desejos e vontades que não puderam se realizar. Havia um imperativo maior de preservação da vida e de evitamento de contaminação das outras pessoas. A utilização de meios e estratégias de proteção marcou a vida social. Neste novo ano, outras vontades e desejos também se apresentam diante de cada pessoa. Entretanto, agora, nosso olhar precisa se voltar para a necessidade da nossa participação nos destinos da nação, do povo. Uma coisa é pensar na realização das nossas aspirações individuais. Outra é pensar no coletivo, nos desafios que se colocam diante da nação. Boa parte das vezes, nossos desejos e nossas vontades não se alinham com as necessidades que temos como um todo. É preciso olhar para o coletivo, para a nação, e perceber nas suas necessidades e desafios a “vocação” de Deus para as escolhas que vamos fazer. Este é um ano de eleições, com consequências decisivas para o nosso hoje e para o nosso amanhã, como Estado e como nação. Deus coloca em nossas mãos o destino deste país. Cumprir a vocação que ele nos dá pode significar renunciar a interesses individuais mesquinhos e lembrar as carências da maioria de nossas irmãs e irmãos brasileiros. Os destinos do povo e da nossa nação dependem das decisões que tomarmos, por isso torna- -se necessária a visão do amor, da esperança e da fé, para que a graça de Deus se manifeste em consequências de justiça e de paz sobre todas as pessoas deste país.
4. Imagens para a prédica
Certa vez, um menino enfrentou uma situação delicada. Quando estava com cerca de 12 anos, seu pai lhe propôs um dilema: largar os estudos e permanecer trabalhando na roça, ajudando-o, tendo como consequência uma existência trabalhosa, mas junto à família, ou aceitar o oferecimento de um amigo do pai para residir longe de casa, mas continuar trabalhando na roça do amigo e continuar os estudos numa escola próxima. Ambas as alternativas não tinham uma solução fácil. A primeira apresentava o resultado de continuar no conforto da família, mas dizer adeus às possibilidades de um crescimento intelectual; a segunda trazia a implicação de continuar no mesmo tipo de trabalho braçal, à época, sem qualquer mecanização, portanto pesado, convivendo em uma família estranha e à noite frequentar as aulas numa escola a cerca de uma légua de distância. O menino escolheu a segunda alternativa e, como consequência, passou a uma rotina penosa de trabalhos braçais ao longo do dia, uma jornada de 12 km a pé, para ir e voltar à escola à noite. Nessa etapa, passou por duras privações, mas entendia que essa era a vontade de Deus para a sua vida.
5. Subsídio litúrgico
Oração participativa
D: Senhor, temos medo de caminhar pelas tuas veredas, pois elas nos expõem à crítica das outras pessoas; porque, ao preferir os teus planos, colocamos o amor ao próximo como um valor maior, enquanto elas buscam principalmente satisfazer
seus interesses individuais.
T: Deus, tem compaixão de nós e nos fortalece nos teus caminhos.
D: Deus eterno, tem misericórdia de nós, porque diariamente somos escarnecidos pelas pessoas que nos rodeiam, porque preferimos nos reunir em comunidade, na tua igreja, enquanto os outros se divertem às custas dos mais fracos.
T: Deus, tem compaixão de nós e nos fortalece nos teus caminhos.
D: Bendito Senhor, fortalece nossas vidas porque preferimos cumprir os teus desígnios, cumprir os valores éticos da tua Palavra e amar a justiça na relação que estabelecemos com as outras pessoas, enquanto as percebemos logrando o próximo com artimanhas criminosas.
T: Deus, tem compaixão de nós e nos fortalece nos teus caminhos.
Referências
CASTRO, C. P. O ministério dos profetas no Antigo Testamento. São Paulo: Imprensa Metodista, 1993.
FREITAG, João Clemente. Jeremias 1.4-10: auxílio homilético. In: MALSCHITZKY, Harald (Coord.). Proclamar Libertação. São Leopoldo, 1987. v. 13.
Disponível em: https://www.luteranos.com.br/textos/jeremias-1-4-10-1
LIVERANI, Mario. Para além da Bíblia: história antiga de Israel. São Paulo: Loyola, 2008.
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