Culto - EST - 09.04.2003
aprender com a paixão - Hb 5.7-10
P. Ms. Rodolfo Gaede Neto
Graça e paz a vocês da parte de Deus, nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo!
Irmãs e Irmãos!
Algumas situações na vida têm o poder de nos abalar. Abalar profundamente, existencialmente. Têm o poder de nos abalar na fé. Alguns abalos são mais suportáveis. Mas quando somos atingidos em nossa fé, sentimos o mundo desmoronar dentro de nós e ao nosso redor.
Três situações dessas têm afetado a vida de nossa comunidade.
a) A opção de estudar Teologia tem trazido para pessoas da nossa comunidade a amarga experiência da perda. A perda de valores que havíamos construído dentro de nós, que nossa família havia construído cuidadosamente dentro de nós desde que nascemos, que nossa comunidade religiosa havia construído dentro de nós. Viemos com este conjunto de valores, que nos sustentavam. Nós éramos este conjunto de valores. E assim como viemos, sentíamo-nos vocacionados para o ministério.
O estudo, porém, em algum momento, começou a romper os nossos horizontes pessoais e a desconstruir nosso universo interior. Começou a desconstruir a nós mesmos. Sentimo-nos vazios e desorientados/as, também em relação à nossa vocação, que nos era tão cara quando chegamos.
Com forte clamor e lágrimas, orações e súplicas apelamos a quem nos podia livrar dessa situação (para usar as palavras do texto de Hebreus). Por que Deus não nos socorreu quando o chão fugia debaixo dos nossos pés? Por que Deus não nos ouviu quando entramos em crise por causa da nossa vocação? Onde estava Deus quando a depressão tomou conta de nós?
b) Nossa comunidade tem participado, nos últimos tempos, de várias situações de perda através da morte. Vários/as de nós têm passado pela amarga experiência do luto. Alguns casos são de morte de pessoas muito jovens. Situações trágicas, absurdas, inexplicáveis, incompreensíveis, inaceitáveis.
Nessas situações é inevitável o sentimento de desorientação e de abandono.
Onde estava Deus, quando, com fortes clamores e lágrimas, orações e súplicas apelamos a quem nos podia livrar dessa situação! Por que Deus deixou acontecer o acidente, a doença? Por que ficou em silêncio quando mais precisávamos dele?
c) Nossa comunidade se envolveu intensamente, até o dia 20 de março com a iminência de uma guerra absurda.
Com fortes clamores e lágrimas, orações e súplicas apelamos a quem podia livrar o mundo desse pesadelo.
A impiedosa deflagração dessa guerra criou em nós um sentimento de revolta e, ao mesmo tempo, de derrota e de fracasso, também em nossa fé.
Por que Deus não atendeu as súplicas nossas e de tantas comunidades do mundo todo? Ele podia ter livrado a humanidade dessa tragédia vergonhosa e não o fez! Onde está Deus? Por que não atende!
Poderíamos ampliar o espectro de nossas indagações: onde estava Deus na manhã de 9 de abril de 1945, quando executaram Dietrich Bonhoefer? Ou: onde estava Deus no dia 4 de abril de 1968, quando assassinaram Martin Luther Kiing?
Em nossos momentos de frustração, certamente já passou pela nossa mente a pergunta se, numa próxima situação dessas, valerá a pena insistir nas orações.
***
O que vamos fazer com essas experiências que nos abalam?
Elas nos colocam em situação de constrangimento, também diante das pessoas que não acreditam no poder da oração. Elas nos fazem sofrer, às vezes, amargamente.
Para continuar, só se for possível, em meio aos escombros que restaram, reconstruir a confiança em Deus.
O texto de Hebreus nos permite anunciar que é possível reconstruir a fé abalada. É possível a partir da paixão de Jesus. Ouçamos mais uma vez o texto.
Ele, Jesus, nos dias da sua carne, tendo oferecido, com forte clamor e lágrimas, orações e súplicas a quem o podia livrar da morte, e tendo sido ouvido por causa da sua piedade, embora sendo Filho, aprendeu a obediência pelas cousas que sofreu e, tendo sido aperfeiçoado, tornou-se o Autor da salvação eterna... (Hebreus 5.7-10).
A Paixão nada mais é que a mais escancarada ruína de Jesus.
Com forte clamor e lágrimas, orações e súplicas ele apelou a Deus que o podia livrar da morte. Suas súplicas e lágrimas, porém, de nada valeram para o livrar da morte. Deus silenciou enquanto Jesus era entregue à morte. Por isso, a paixão não é nada menos que a experiência do abandono de Deus.
Esta, com certeza, é a maior dor pela qual pode passar um ser humano: a de sentir-se abandonado por Deus.
Em relação a essa dor de Jesus, o texto de Hebreus faz uma afirmação inusitada: justamente a experiência do abandono de Deus foi o momento em que Jesus aprendeu a obediência a Deus. É importante prestar atenção: não se trata de uma obediência cega, imposta, mas de uma obediência aprendida!
Esse aprendizado da obediência a Deus em plena e profunda paixão, em meio à experiência do abandono de Deus significa, sem dúvida, a afirmação de uma maneira totalmente nova de compreender Deus. Jesus reconstrói sua confiança desde esta nova maneira de ver Deus, desde esta nova teologia.
Jesus reconstrói sua confiança em Deus na medida em que entendeu que a revelação mais profunda de Deus não se dá na vitória, mas na derrota. Não no sucesso, mas no fracasso. Não na glória, mas na cruz. Na paixão, Jesus aprendeu que Deus se revela ao contrário!
Assim, a verdadeira fé se apresentou a Jesus como um enorme risco: confiar na presença de Deus justamente ali onde ele parece não estar.
A revelação de Deus sub contrário nos pega de surpresa. É totalmente avessa à nossa lógica. Queremos ver Deus evitando o desmoronamento de nossa fé, evitando a depressão, evitando o acidente, evitando a doença, evitando a guerra. E nos frustramos quando aí não o encontramos.
Nessa lógica, nossa fé e nossa teologia entram num beco sem saída. A paixão de Jesus nos salva desse beco sem saída. Aponta o novo caminho da fé, que é este: Lá onde a nossa razão constata a ausência de Deus, lá onde parece que ele silencia, lá ele está maximamente. A onipotência de Deus não consiste em poder evitar tudo, mas em poder suportar tudo.
Diante do Deus que suporta, em silêncio, junto conosco, toda a nossa dor, importa aprender uma nova obediência, a partir da qual a nossa confiança em Deus possa ser, sempre de novo, reconstruída.
Por isso, quando aprendemos a teologia da cruz, devemos deixá-la ter o peso que tem na teologia cristã. Tantas vezes, na época da Paixão, somos tentados a fugir apressadamente para a Páscoa. É difícil suportar a Paixão sem Páscoa. Mas ela é a mais crua realidade para tantas pessoas. Que tem essa Páscoa que não vem escrevia meu irmão um ano depois de ter perdido o seu filho de 16 anos. Que tem essa Páscoa que não vem!
Diante de pessoas que vivenciam a Paixão sem perspectiva de Páscoa, que se encontram mergulhadas nas profundezas do vazio da Sexta-feira Santa, importa
não enfeitar a cruz,
não superficializar o vazio,
não fugir apressadamente para a Páscoa
sob pena de deixarmos essas pessoas na mão,
sob pena de não confiarmos na presença de Deus justamente na cruz.
Fugir da cruz barateia a Páscoa.
A teologia da cruz nos desafia a exercitar a solidariedade com toda a radicalidade da com-paixão (do sofrer junto).
O texto de Hebreus diz que Jesus ofereceu, com forte clamor e lágrimas, o seu sofrimento a Deus. Colocou a sua paixão nas mãos de Deus, confiando que Deus faria dela o que lhe aprouvesse. Por causa dessa confiança radical é que foi aperfeiçoado (cf. o texto). Por causa dela a Páscoa aconteceu.
A partir da nova obediência que aprendemos na Paixão:
entreguemos nas mãos de Deus a nossa fé desmoronada.
Entreguemos nas mãos de Deus a dor do nosso luto.
Entreguemos nas mãos de Deus a nossa frustração por causa da guerra.
E arrisquemos confiar que justamente nessa nossa paixão, nesse nosso fundo de poço Deus está maximamente presente.
Arriscando confiar em Deus, apesar de nossa paixão e justamente em nossa paixão, seremos, com certeza, aperfeiçoados/as.
A Páscoa, que sabemos que existe, Deus no-la dará quando e do jeito que lhe aprouver.
Amém.
Publicado originalmente no site Grupo Emaús