Celebração


ID: 2651

Gênesis 2.15-17, 3.1-7

Auxílio Homilético

13/03/2011

Prédica: Gênesis 2.15-17,3.1-7 
Leituras:  Mateus 4.1-11 e Romanos 5.12-19
Autor: Norberto da Cunha Garin
Data Litúrgica: 1º Domingo na Quaresma
Data da Pregação: 13/03/2011
Proclamar Libertação - Volume: XXXV

1. Introdução

Neste Primeiro Domingo na Quaresma, sugerimos uma meditação relacionando a criação divina com a destruição provocada pelo ser humano. Como se trata de um período dedicado à contrição, consideramos significativo refletir sobre a trajetória humana a partir dos relatos da inserção do homem e da mulher no jardim do Éden e sua descoberta a partir do encontro com a natureza. É fundamenta considerarmos a condição humana e a generosidade de Deus, sempre pronto a nos oferecer uma nova oportunidade de amor, que se efetiva em Jesus Cristo, o novo Adão.

2. Exegese

2.1 – A moldura

O texto da meditação faz parte do conjunto conhecido por Narrativa da Criação, atribuída a tradições javistas (2.4b-3.24), cuja composição aconteceu provavelmente entre 960-930 a.C. sob o reinado de Salomão. Tratava-se de um escritor que contava com o apoio real, e sua narrativa exaltava a epopeia do reinado a partir da visão de Judá. O conhecimento constitui um privilegio de Javé, que teria sido usurpado pelo ser humano1.

A narrativa em foco descreve o ambiente natural no qual o ser humano foi colocado e as primeiras orientações que recebe para desenvolver-se nele. Por outro lado, narra as mudanças de comportamento do ser humano, que tem como consequência a sua saída desse ambiente.

2.2 – O texto

2.15 – Na narrativa javista, até aqui Javé, como agricultor e jardineiro, dedicou-se a preparar um ambiente propício para o ser humano. As condições foram construídas de tal sorte que o acomodasse perfeitamente; não há o que reclamar, pois esse ambiente natural possuía tudo o que ele necessitava para viver bem. O local escolhido para essa colocação é o “jardim do Éden”. Ainda que possamos fazer uma relação com os jardins das nobrezas da época, o foco desse lugar não é propriamente um jardim, mesmo que o v. 9a fale de “toda a sorte de árvores agradáveis à vista”. A função do Éden não é uma praça de recreação, mas prover alimentos para o ser humano. É notável que a descrição do paraíso traga consigo a necessidade de um trabalho para o ser humano: não se trata de um jardim para passear e olhar. O termo “Éden” é uma expressão suméria que passou pelo acádio e significa “planície”. Pela narrativa, é possível localizá-la como a planície que existe entre os rios Tigre e Eufrates com ampla gama de canais e fossos d’água. De qualquer modo, Éden está relacionado, originalmente, a uma área de abundância e riqueza de provimentos. Há outras alusões ao Éden em Ezequiel 27.23; 28.11-19; 2 Reis 19.12 e Isaías 37.12, mas esses casos se referem a países e não podem ser comparados ao texto do Gênesis. Nesse texto, fica muito clara a noção de que se trata de um lugar criado para o ser humano e não de morada de Javé, visto que a criação do homem se dá fora do Éden e posteriormente ele é colocado ali. Nesse lugar, a missão do homem era “cultivar e guardar”, ser o agricultor daquela terra. Essa também será sua tarefa quando ele for tirado dali “para lavrar a terra de que fora tomado” (3.23). Fica claro que não há distinção para o ser humano em relação à sua tarefa: no Éden ou fora dele, fará a mesma coisa. A utilização da expressão “Javé Deus” aparece em alguns relatos relacionados com a criação, mas não é muito comum na tradição javista e se trata muito mais de uma união redacional nas narrativas da criação. O tema principal deste versículo repete o tema do v. 8B: “... e pôs nele o homem que havia formado”. Isso faz pensar na superposição de tradições sobre o mesmo tema. Mas o autor acrescenta no v. 15 a missão do homem, que nos remete a um período histórico quando Israel já havia se estabelecido como reinado, com propriedades agricultáveis e vítima de ameaças externas;

2.16-17 – Há um encontro no qual Javé ordena ao ser humano comer de toda a planta que se cultiva no Éden; ele deseja que o ser humano se alimente adequadamente – é uma disposição divina. Correspondente a essa ordem de alimentação de tudo o que há no jardim, está a proibição de comer da árvore do conhecimento do bem e do mal, descrita já em 9b. A fórmula utilizada pelo javista corresponde à mesma do Decálogo – é uma maneira de redigir comum nos textos apodíticos. Essa ordem vem acompanhada de outra fórmula: a condicionante da desobediência “no dia em que dela comeres, certamente morrerás”. É perceptível a força da palavra divina que ordena e não permite questionamentos.

3.1 – O ser humano, constituído de homem e de mulher, entra em cena e confronta-se com um projeto distinto daquele traçado por Javé – o projeto da serpente. É um personagem estranho, mas conhecido do ser humano (a serpente), que se apresenta para sabotar a ordem divina. A narrativa acentua a sagacidade desse animal criado por Deus. Esse versículo está diretamente relacionado a 2.16-17 ao recuperar os “mandamentos” ali declarados. Nessa narrativa, a serpente apenas retoma as instruções de 2.16.

3.2-3 – Ao responder à serpente, a mulher repete a ordem que Javé havia dado ao casal, além de reforçar e de ampliar a proibição que Deus fez em 2.17: “nem tocareis nele (fruto)”. A mulher percebe Deus apenas como aquele que dá uma proibição, deixando em segundo plano o aspecto da provisão. Estão dadas as condições para que a serpente construa a sua interpretação da ordem de proibição.

3.4-5 – A serpente inicia sua fala pelo final da afirmação da mulher: “É certo que não morrereis”. Dessa forma, a serpente desclassifica a afirmação de Javé em 2.17 e começa a colocar dúvida no raciocínio da mulher. Pode-se perceber que, tanto no discurso de Deus como no da serpente, há um jogo de sentido entre a morte “mediata” e morte “imediata” (3.6 e 3.19). Da mesma forma, a certeza dada pela serpente de que o casal não morreria (eternidade) não se efetiva (22- 24). Entretanto, agindo dessa forma, a serpente coloca sob suspeita a ordem de Javé, afasta o medo provocado pela ameaça e prepara o caminho para a satisfação do desejo, pois coloca no seu raciocínio a possibilidade de conhecer o bem e o mal. Além dessa possibilidade, a serpente desperta na mulher o desejo da eternidade.

Essa conquista coloca o ser humano no mesmo nível de Deus no cenário do conhecimento ético. Dessa forma, a serpente nivela-se a Deus ao demonstrar que sabe tanto quanto ele sobre o certo e o errado. Pode-se perceber aqui uma proximidade com o mito de Prometeu da mitologia grega.

3.6 – São três argumentos que a mulher encontra para provar da árvore, todos os três como resposta às sugestões que a serpente lhe faz: em primeiro lugar, o olhar da mulher é seduzido pela visão de que a árvore era boa para se comer e seu fruto era agradável. Em segundo lugar, pela beleza da árvore, que era agradável à vista; esses dois argumentos correspondiam às outras árvores do Éden (2.9; 3.2). O terceiro argumento distingue-a das demais árvores do Éden: “desejável para dar entendimento”. Dessa forma, a sedução da mulher é realizada pela visão (estética), pelo sabor (frutos bons) e pelo entendimento (ética). Isso representa o processo de autoconvencimento, que a leva a uma dupla decisão: comer e dar ao companheiro. Os dois primeiros argumentos são construídos pela própria mulher – são autoconvencimento. Porém o terceiro é o argumento construído pela serpente e destina-se ao desejo da mulher. Outro aspecto que chama a atenção é que na narrativa não aparece qualquer menção ao diálogo travado entre homem e mulher. É estranho que não haja registro sobre alguma informação que a mulher tenha dado nem questionamentos que o homem possa ter feito: a decisão dela representa a decisão dele. Esse silêncio da narrativa pode estar associado ao fato de que 3.1-6 seja a continuação de 2.17, material proveniente de outra fonte.

3.7 – O primeiro efeito da ação de comer do fruto acontece de fato como estava descrito em 3.5b: “abriram-se, então, os olhos de ambos”, e o resultado não tem a ver com a ameaça divina de 2.17: “certamente morrerás”, nem com o restante da promessa da serpente em 3.5b: “sereis conhecedores do bem e do mal”. Ao contrário disso, descobrem a própria nudez. Porém o v. 22 relata a aquisição desse conhecimento, que deveria estar em 3.7. A narrativa parece localizar na constatação da nudez a aquisição do conhecimento ético, visto que, em 3.8, a narrativa denota a capacidade de distinção entre o certo e o errado. Tudo isso aponta para a possibilidade dessa narrativa focar uma explicação etiológica da vestimenta humana, mas isso é desmontado pelo v. 21: “Fez Deus vestimenta de pele para Adão e sua mulher e os vestiu”. Outro elemento estranho é que a nudez descrita em 2.25 constituía um elemento importante de aproximação entre homem e mulher, de tal sorte que constituía sua intimidade. Agora, no v. 7, a nudez passa a ser um elemento que afasta um do outro, a tal ponto que fazem disfarces para cobrir-se. Não apenas separa o casal, como separa ambos da companhia divina,
conforme v. 10. É importante notar que o conjunto 3.1-7 não inclui Javé em nenhum momento; aparece apenas em 3.1 na boca do narrador.

3. Meditação

O foco principal dessa narrativa está na desobediência, mas a fonte dela é o desejo de superação da própria limitação de entendimento. A vontade de aproximar-se do conhecimento total, somente possível a Deus, induz o ser humano a fraudar uma determinação de Javé. A ordem é divina – foi Javé quem estabeleceu os limites para o ser humano; portanto faz parte da Criação como elemento fundamental de ordenação da vida. A desobediência é humana – faz parte da sedição do homem e da mulher de superação dos seus limites, desobedecendo às ordens ou burlando a ordenação estabelecida por Deus. Trata-se de uma narrativa etiológica relacionada à exploração das possibilidades da fraude.

É notável que, nessa narrativa, a fraude possui motivações externas, mas pelo menos dois terços da mesma são constituídos de autoconvencimento. O ser humano percebe que a árvore, sobre a qual repousava a proibição, “era boa para se comer”, ou seja, a subjetividade humana projetada sobre um elemento da natureza, alimentada pelo desejo. Junto a isso estava outra subjetividade: a árvore era “agradável aos olhos”. Tinha uma beleza que satisfazia a necessidade de ver o belo no ambiente onde vivia. É o ser humano que busca internamente as justificativas para suas ações fraudulentas. Por último, o elemento externo, estabelecido por Deus como peculiaridade da árvore: “o conhecimento do bem e do mal”. Esse último fez parte da sedução alimentada pela serpente: “se vos abrirão os olhos e, como Deus, sereis conhecedores do bem e do mal”. A ordenação da criação é esquecida rapidamente, porque a vontade de conhecer assim como o Criador conhece é mais forte do que todo o conforto do jardim bem construído e harmonizado para sua habitação. O convencimento provocado pela serpente desconstrói a ordem divina ao induzir que Javé estava mentindo: “certamente morrerás” versus “é certo que não morrereis”, sendo alimentado poderosamente pelas motivações subjetivas do homem e da mulher. Para conquistar o infinito do conhecimento, eles se aventuram pelos descaminhos do desconhecido. Preferem a trilha da desobediência à comodidade da paz que reinava na harmonia entre ser humano e natureza.

A consequência da fraude é a descoberta da distância que separa uns dos outros, mesmo que se trate de um casal acostumado à intimidade cotidiana. Agora, portadores do conhecimento, descobrem-se desnudos. Aquilo que antes era tão peculiar à intimidade aparece como estranho. Um elemento de separação se estabelece, impondo distância entre o ser humano e seu próprio corpo, entre a criatura e seu Criador. O conhecimento ético é simbolizado pela descoberta de que homem e mulher estavam nus. Uma nova tarefa agrega-se a de “cultivar” e “guardar o jardim”: preservar a intimidade. Trata-se de uma tarefa que não mais está ligada ao cultivo do jardim, mas explora a natureza para satisfazer a necessidade de cobrir-se.

4. Imagens para a prédica

Coloque, com antecedência, algumas folhas de figueira penduradas diante do púlpito. Quando a prédica estiver se desenvolvendo, as folhas já estarão murchas. Sinalize que a principal consequência da fraude, da desobediência é a separação. Em primeiro lugar, a separação entre o ser humano e o restante da criação – ele agora necessita explorar a natureza para cobrir sua intimidade. Ao explorar a natureza para satisfazer suas necessidades, o ser humano provoca dor e morte à natureza e, consequentemente, sofrimento à natureza e a Deus, seu criador. A partir daí explore as outras formas de separação que a fraude provoca.

5. Subsídios litúrgicos

Litania: Perdão pela desobediência

Dirigente: Senhor Deus, perdoa-nos porque a nossa sede de conhecimento e de superação tem nos levado a desobedecer e a fraudar a harmonia da tua criação. Congregação: Perdoa, Senhor, a nossa desobediência. Dirigente: Perdoa-nos, Senhor, porque, ao tentar inventar uma nova criação, à nossa imagem e semelhança, perturbamos a tua criação com a nossa sedição de poder.

Congregação: Perdoa, Senhor, a nossa desobediência.

Dirigente: Perdoa-nos por provocar sofrimento, dor e morte ao desobedecer às tuas ordens na realização de nossas ambições de grandeza humana.

Congregação: Perdoa, Senhor, a nossa desobediência.

Dirigente: Perdoa-nos, Senhor, por provocar tanta separação entre nós e nosso próprio corpo, entre nós e outros seres humanos, entre nós e a tua criação.

Congregação: Perdoa, Senhor, a nossa desobediência.

Oração comunitária:

Bendito Deus, ao contemplarmos a grandiosidade da tua criação, percebemos a dimensão de nossa pequenez. Tu nos encheste de bênçãos e de privilégios, e nós, seguidamente, te respondemos com lamentações e mesquinharias. Mesmo assim, tu nos valorizas e nos acolhes diariamente, apontando para o amor de teu Filho Jesus Cristo, que, apesar de nossa condição, ofereceu sua vida em resgate da nossa. Agora, Senhor, permite que nossa dedicação à tua obra possa te trazer alegria e que nosso testemunho de fidelidade a ti conduza outras pessoas ao teu encontro. Que tua igreja seja forte e faça a diferença num tempo marcado pela destruição do que tu criaste. Por Cristo e em Cristo. Amém.

Bibliografia

CROATTO, José Severino. Crear y amar en libertad: Estudio de Génesis 2:4- 3.24 (El hombre en el mundo v. II). Buenos Aires: Ediciones La Aurora, 1986.
HOEFELMANN, Verner; DA SILVA, João A. M. Proclamar Libertação: auxílios homiléticos sobre a série ecumênica trienal. Ano A, V. 30. São Leopoldo:
Sinodal/IEPG, 2004.
GOTTWALD, Norman K. Introdução socioliterária à Bíblia Hebraica. São Paulo: Paulinas, 1988.


1 É interessante fazer uma correlação com a tragédia grega, especialmente a de Prometeu Acorrentado, do século IV a.C.
 


Autor(a): Norberto da Cunha Garin
Âmbito: IECLB
Área: Celebração / Nível: Celebração - Ano Eclesiástico / Subnível: Celebração - Ano Eclesiástico - Ciclo da Páscoa
Área: Governança / Nível: Governança - Rede de Recursos / Subnível: Governança-Rede de Recursos-Auxílios Homiléticos-Proclamar Libertação
Natureza do Domingo: Quaresma
Perfil do Domingo: 1º Domingo na Quaresma
Testamento: Antigo / Livro: Gênesis / Capitulo: 3 / Versículo Inicial: 1 / Versículo Final: 7
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 2010 / Volume: 35
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 25031

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