Celebração


ID: 2651

Diaconia e culto cristão: unidade essencial e suas conseqüências para a vida das comunidades cristãs

20/10/2015

Diaconia e culto cristão: unidade essencial e suas conseqüências para a vida das comunidades cristãs

Diác.ª Dr.ª Sissi Georg

Introdução

Liturgia cristã tem tudo a ver com comida, com refeições, com alimentação.

Acho importante compartilhar a pergunta que motivou-me à pesquisa sobre a ligação de culto cristão e diaconia. O que sempre me intrigou ao observar as pessoas com que trabalhava, foi ver que elas viviam sua fé sem (aparentemente) importar-se com os problemas sociais. Observei que elas não se perturbavam com os enormes contrastes existentes até mesmo dentro da própria comunidade, entre as pessoas que pertencem à mesma comunidade de fé e participam, lado a lado, na Ceia. Meu primeiro trabalho como diácona foi numa comunidade que tinha um trabalho intenso com pessoas muito pobres. Vi pessoas que não se envolviam com este trabalho, que o desfaziam com comentários preconceituosos; outras, ora trabalhavam como voluntárias no setor social da comunidade, ora viviam com suas famílias, alimentando-se do melhor, vestindo roupas quentes e novas, faziam viagens onerosas de passeio, ... As famílias com as quais trabalhávamos viviam sob precárias condições de saúde, sem emprego fixo, com muito menos dinheiro do que a vida custa. Um tratamento dentário, isso era luxo e nem estava no rol das preocupações urgentes dessas pessoas. Muitas vezes, essas pessoas faziam longos percursos a pé, em busca de uma chance de emprego, sem condições de sequer pagar uma passagem de ônibus circular. Eu me perguntava: como podem as pessoas - que freqüentam regularmente os cultos, participam nos grupos da comunidade, autodenominam-se cristãs - , dormir tranqüilas, sentir-se confortadas por Deus, permanecer intocadas diante da miséria pela qual passam seus semelhantes? Como podem conformar-se diante dessa realidade? A fé cristã não implica missão, definida por esse contexto? Sendo luterana de berço, e participando muito em cultos e grupos, também não ouvia mensagens que falassem com clareza sobre o envolvimento consciente e cidadão das igrejas cristãs em questões sociais. Eu me perguntava: será que a espiritualidade cristã não tem nada a ver com a vida cidadã? Posso viver minha fé assim, sem arregaçar as mangas e dispor-me a abraçar a causa da dignidade para todas as pessoas? Como posso me alegrar com minhas botas novas se minha irmã, que vêm à Ceia comigo, está descalça e mal vestida no inverno?

Ao lado da minha pesquisa, um colega, pastor Rodolfo Gaede Neto, examinava as comunhões de mesa no ministério de Jesus, com resultados relevantes para a compreensão do tema com que eu estava me ocupando: a unidade de liturgia e diaconia. O tema da comensalidade de Jesus é um tema próprio, mas permitam-me fazer alguns destaques. A comunhão de mesa é tema recorrente no ensino de Jesus [mostrar imagem da parábola de Lázaro]; na história de vida de Jesus e de pessoas, famílias e multidões que o acompanhavam [Jesus e Zaqueu; Jesus alimenta multidões], e é na imagem de um banquete que Jesus encontrou a analogia para o Reino por ele sonhado e inaugurado [o banquete]. A mesa que Jesus fomentou foi uma mesa aberta, que sacia a fome de pão e a sede de comunhão, uma mesa que promove a igualdade, a reconciliação de povos e religiões, a superação de obstáculos culturais, eclesiais, sociais, políticos [Jesus promove o banquete da vida na multiplicação dos pães], econômicos e religiosos [a mulher sírio-fenícia]. Não foi, portanto, por acaso que Jesus fez da comunhão à mesa o seu memorial, o memorial de sua vida, morte, ressurreição, de seu imenso amor pela humanidade. A Ceia do Senhor é esta mesa aberta, onde os comensais exercitam a aceitação, a reconciliação, comemoram, onde ninguém é mais, ninguém é menos; e Jesus, o próprio Deus, serve ali a todos, igualmente, matando sua fome de pão e sua sede de comunhão.

Fundamentos bíblicos que testemunham a unidade de diaconia e culto cristão

A reunião diária dos cristãos ao redor da mesa está registrada biblicamente. Ela teve o mesmo objetivo: saciar a fome de pão e a sede de comunhão. Essa reunião foi chamada, entre outros nomes, de ágape, palavra grega que significa amor. Imagens registradas em catacumbas testemunham sobre esta forma de liturgia. [imagem ágape]. Dentre os textos bíblicos relevantes, destaque-se:

a) 1Co 11.17ss [1Co11.17ss, com o ágape ao fundo] - é premente que este texto seja recuperado exegética, teológica e liturgicamente. É, sem dúvida, o texto mais antigo e o de maior autoridade que atesta a prática do ágape na sua forma original: uma refeição saciatória eucarística. A interpretação equivocada dessa perícope acentua exatamente o oposto do seu conteúdo mais central: a dimensão comunitária e diaconal da Ceia do Senhor.

b) At 2.41ss - a delimitação dessa perícope, muito posterior ao texto original, ofusca um conteúdo importante: a comunidade dos que eram batizados mantinha a tradição de reunir-se ao redor da mesa da palavra e da mesa eucarística. A partilha de bens espirituais e materiais não acabou logo a seguir, como alguns historiadores afirmam.

c) 2 Co 8-9, Rm 15.25-32; Gl 2.1-10. Observe-se o grande espaço que é dedicado à oferta à comunidade pobre de Jerusalém nos escritos paulinos. Mas porque isso é tão importante para Paulo? O apóstolo usa essa oportunidade para tratar o tema da teologia da partilha. Nessa coleta cumpria-se o acordo, firmado no chamado primeiro Concílio dos apóstolos e selado pelo aperto das mãos direitas: de que as comunidades mais abastadas economicamente seriam solidárias para com as comunidades necessitadas (Gl 2.9-10). O objetivo principal da oferta está descrito, por duas vezes, em 2Co 8.13-14: para que haja igualdade. Quero destacar ainda outra dobradinha de palavras que aparece no texto de Paulo sobre a coleta. Em 2Co 8-9, Paulo usa muitas vezes as palavras 'generosidade' e 'justiça' [palavras: generosidade e justiça]. A partilha de bens não é primordialmente uma questão de bondade, mas é uma questão de justiça. O cristão vê na partilha um caminho para exercitar a justiça.

O ágape: unidade de diaconia e culto cristão

O ágape não é mero detalhe da vida litúrgica das primeiras comunidades. Ele é, isso sim, a própria forma do que hoje denominamos de culto, a sua instituição maior, organizada e prevista. O ágape é a prova inequívoca e o testemunho mais eloqüente da unidade de diaconia e culto cristão.

O ágape fez parte da metodologia para ensinar sobre vida cristã. Afinal, a solidariedade é algo a ser aprendido. Inclinar-se em favor de si mesmo é humano. Inclinar-se em favor dos outros, é divino. As primeiras comunidades usaram suas reuniões para ensinar àquelas pessoas que se preparavam para o batismo cristão (os/as catecúmenos/as) sobre a vida cristã. Segundo Hipólito, a pergunta que era feita ao padrinho antes de autorizar o batismo era: “Viveram com dignidade os catecúmenos? Honraram as viúvas? Visitaram os enfermos? Praticaram boas ações?( Hipólito, Tradição Apostólica 42.1-4. Documento do séc. III). A partir do ágape, as comunidades saciaram 'famintos de pão e sedentos de comunhão'; reuniram recursos para amparar pessoas que passavam necessidade; planejaram sua ação diaconal, organizaram a diaconia da adoção, a pastoral carcerária; mantiveram o trabalho com visitação, e, não por último, forjaram o diaconato como ministério da igreja cristã.

Quando a unidade de culto e diaconia se rompeu, ambos perderam. O culto perdeu, pois afastou-se de explicitar a essência diaconal do cristianismo; e a diaconia perdeu, porque afastou-se da liturgia para desenvolver-se longe, sem nem sempre identificar a motivação da ação solidária.

A diaconia na liturgia cristã

Inevitavelmente, a liturgia cristã conservou partes onde a diaconia pode - e deve - pulsar de forma expressiva:

Acolhida

Acolher é aceitar pessoas estranhas no espaço e na comunhão cultuais, sem impor a elas condições e quesitos, antes, oferecendo-lhas atenção, amizade e parte à mesa da comunhão. Receber bem as pessoas, acolhê-las e integrá-las é exercitar a hospitalidade cristã.

Kyrie eleison

No clamor da comunidade cristã em favor dos que sofrem, ressoa a voz profética do povo de Deus e este manifesta sua solidariedade para com os sofridos. Essa voz é exprimida em sintonia com o próprio Deus, que não se apraz com a realidade de injustiça e de sofrimento que vigora no mundo. É fundamental que o kyrie eleison seja recuperado do desvio a que foi submetido. Ligado à confissão de pecados, ele passa a ter seu conteúdo desfigurado.

Leituras bíblicas e interpretação da palavra

As leituras bíblicas e a Interpretação da Palavra anunciam e atualizam a vontade de Deus, que almeja vida abundante, bem estar e paz para todas as pessoas. Esse elemento litúrgico desempenha um papel formador e tem a atribuição de, reiteradamente, trabalhar a perspectiva da diaconia com a comunidade, a partir do Cristo que se autodenominou Servo, diácono.

Oração geral da igreja

A oração geral da igreja é o reconhecimento dos cristãos de que eles dependem da intervenção salvadora e protetora de Deus nas diversas situações da vida. Ao mesmo tempo, interceder abre os olhos, aquece corações e move mãos em favor de causas pelas quais se orou.

A paz

No gesto da paz reside a possibilidade da comunidade arejar suas relações e cultivar a saúde interna, obstruída e embargada por desavenças, desentendimentos e rompimentos. Todo grupo humano é vulnerável a conflitos e desarmonias. É fundamental propor, constantemente, a reconciliação. Divisão e cisão destróem a koinonia, desarticulam o corpo como unidade, impossibilitam a diaconia e desautorizam o testemunho cristão.

Preparo da mesa e ofertório

Preparar a mesa da comunhão com os frutos do próprio trabalho é reconhecer que Deus é o fiel Provedor, que a justiça é factível pela prática da partilha e que o corpo, engajado na partilha, reúne suficiência e fartura. As ofertas são donativos que a comunidade cristã destina exclusivamente para amparar, socorrer, apoiar, possibilitar e financiar ações diaconais. A única exceção aceita é a de que se separe, dos elementos trazidos à mesa, o pão e o fruto da videira para uso na celebração da Eucaristia.

Pai-nosso

Essa oração explicita como deve ser o relacionamento entre as pessoas e Deus, e entre elas, e suplica para que este relacionamento seja possível. A verticalidade da fé está manifesta no Pai-nosso, mas também sua horizontalidade. A prece pelo pão de cada dia para todas as pessoas, é feita pela comunidade que, mesmo sabendo que o pão está ausente ou é insuficiente na mesa de tantas famílias, o suplica a Deus. Essa prece compromete a comunidade cristã a inconformar-se e a empenhar-se em busca de transformação dessa realidade.

Ceia do Senhor

A eucaristia, como um todo, aponta para a utopia na qual os cristãos se movem: a da mesa farta, acessível para todas as pessoas, servida pelo próprio Deus. O fato do evangelista João narrar o lava-pés no lugar da Eucaristia, explicita que o servo da Ceia é o próprio Cristo, que repassa aos 'dos pés lavados', a tarefa de ir, e lavar outros pés.

Envio

As palavras do envio - “Ide em paz e servi ao Senhor” – ressaltam o espírito com o qual a comunidade sai do culto: fortalecida, alimentada, consolada e comprometida, é enviada para seu cotidiano, - particular e coletivo, congregacional e cidadão - , como serva e anfitriã. É o envio que encaminha a descida do monte, e anima para cada cristão assumir seu papel na sociedade faminta de pão e sedenta de comunhão.

A pesquisa social

Com essas conclusões, realizei a pesquisa social. Atuei ao lado de um pastor da IECLB, assumindo as funções litúrgicas do diaconato nos cultos semanais durante dois anos. A comunidade era de região urbana, de porte médio, e tive a tarefa de zelar para que a perspectiva da diaconia estivesse sempre presente nos cultos. Para observar como isso repercutiria na vida da comunidade, fui observadora participante das reuniões mensais do presbitério e da diretoria do grupo de mulheres (OASE).

Alguns destaques dos resultados da pesquisa social

A pesquisa social resultou num material de mais de 1500 páginas digitadas em espaço simples.
Algumas observações que ficaram-me claras:

1. O culto é um espaço privilegiado formador da comunidade. Entretanto, sozinho, o culto não tem o poder de transformar paradigmas e mentalidades. Os outros espaços da comunidade (encontro de grupos) também precisam trabalhar a perspectiva da diaconal.

2. As pessoas são abertas a propostas novas.

3. Presbíteros que trazem de casa a prática da solidariedade, são os que propõe passos e ações diaconais, mas se eles não forem ouvidos, sua idéia cai por terra.

4. Dei-me conta que todos nós passamos por um processo no período da pesquisa, também meu colega pastor. Fui lembrete permanente da diaconia para ele. Algumas iniciativas, porém, que eram, potencialmente, frutos diretos da união de diaconia e culto, não foram reconhecidas e nem apoiadas, de modo que não passaram de boas idéias. Foi o que aconteceu com a oferta in natura, recolhida em vários cultos, e levada pelos próprios presbíteros para um lar público de idosos. Esta visita desencadeou uma vontade recíproca de aproximação entre a comunidade e o lar. Isso, entretanto, não ocorreu. Especialmente este fato me levou a refletir sobre a premência da formação diaconal na formação teológica.

5. Há um forte espírito associativo na comunidade.

6. Em relação aos trabalhos tradicionais desenvolvidos pela comunidade luterana com seus membros, verifica-se que os homens são os que têm menos oportunidade de participar de espaços formadores. Isso é diferente quanto às mulheres, crianças e jovens.

7. Na decisão do destina das ofertas recolhidas no culto, a lógica que rege a decisão é a da oferta reembolso ( oferta-se, com a certeza que este valor voltará em forma de benefício para a comunidade), ao invés da oferta-donativo (não haverá retorno de nenhuma espécie ao doador).

8. A comunidade não se auto-conhece. Não sabe quantos são idosos, quantos são viúvos, quanto vivem com rendas muito baixas, se há e quantas são mães solteiras, etc.

9. Foi detectado um alto índice de depressão entre as mulheres que participam do grupo de mulheres.

10. Os homens mostraram ter mais dificuldade de romper com o limite nós e os outros.

11. Há preconceitos que oferecem barreiras à ação diaconal: 1) a ação diaconal custa dinheiro e, somente se houver sobras no orçamento, será levada em conta. Se alguma ação for empreendida, privilegiar-se-á os membros necessitados (diaconia interna). 2) Os pobres são relaxados e “briqueiros”, isto é, revendem o que lhes é dado, embolsando, a seguir, o dinheiro. Se forem ajudados, serão sustentados seus vícios de fumar e beber. 3) Pobre é pobre porque não trabalha.

12. O encontro direto com o encontro com os necessitados surgiu como sendo uma chave fundamental para a sensibilização diaconal.

13. As mulheres, nas comunidades da IECLB, são lembradas freqüentemente de sua tarefa de servir. Elas carregam sua missão em seu nome: Ordem AUXILIADORA de Senhoras Evangélicas (OASE). O Sínodo a que pertence seu grupo de mulheres é anualmente, em reuniões de avaliação e planejamento, perguntado a respeito de suas ações diaconais. E isso as empurra a ajudar. Ou seja: faz parte da cidadania 'oasiana' desenvolver iniciativas diaconais. Se não puderem relatar nada, correm o risco de ser despatriadas diante dos outros grupos. As mulheres da OASE implementaram sai ação. Porque afinal, para que nós somos OASE então?, perguntou uma senhora ao seu próprio grupo ao decidir se iam ou não ajudar numa situação de necessidade a um casal de idosos.

Conseqüências para o empenho diaconal da igreja cristã

a) Comunidade cristã: uma comunidade diaconal

O caráter diaconal é intrínseco à vida cristã. As primeiras comunidades cristãs compreenderam esse legado e missão e caracterizaram-se por serem diaconais

Assumir integralmente essa verdade constitui-se em uma conseqüência imediata à Igreja cristã. A diaconia, sendo parte constitutiva da igreja cristã, deve perpassar os documentos, as prioridades, as políticas, a organização da igreja cristã, quer seja nas comunidades, quer seja na estrutura institucional. A diaconia não será secundária, nem ocorrerá casualmente.

Além de enfatizar mais claramente a diaconia, inclusive na formulação de seus documentos teológicos e normativos, é de se refletir sobre formas concretas de acompanhar as ações diaconais no contexto das comunidades.

b) Comunidade diaconal: na contramão dos valores vigentes

As primeiras comunidades cristãs foram verdadeiras células de resistência no seu contexto. A comunidade cristã organizou uma rede de solidariedade, a qual foi a principal responsável pela expansão da fé cristã. Com sua organização, questionaram o Estado, imprevidente e omisso, e a estrutura geradora de exclusão vigente na sociedade de então.

A diaconia é contra-cultural. Ela visa desencurvar as pessoas de atentarem tão somente a suas próprias necessidades, propor o movimento divino de inclinar-se em favor dos outros. Sem dúvida, trata-se de um movimento contra-cultural, numa sociedade competitiva, desigual e sem misericórdia e justiça.

c) Diaconia e culto: uma unidade a ser resgatada

As primeiras comunidades foram diaconais e realizando cultos diaconais, com o passar do tempo, cunharam partes litúrgicas nitidamente diaconais. A unidade de culto e diaconia precisa ser resgatada. Os desvios a que foram submetidas algumas partes litúrgicas diaconais necessitam ser superados. A ênfase comunitária do culto em geral e da Eucaristia em particular também precisa ser recuperada.

d) Formação diaconal: um imperativo do batismo

A Igreja Antiga inseria propositalmente a formação diaconal na instrução dos catecúmenos (os candidatos ao batismo cristão) a partir da vivência da solidariedade. Um método pedagógico, que parte da vivência e não da teoria, foi escolhido pelas comunidades. Nos ágapes acontecia o encontro direto com os necessitados, uma vez que ali estavam viúvas, pobres, órfãos e viajantes que eram amparados pela comunidade cristã. O contato face a face com o excluído desencadeia a sensibilização e a conscientização diaconal. Ele poderá colocar sob suspeita e desmantelar os preconceitos que se nutre contra os necessitados, possibilitando que se dê o passo do discurso e da intenção para a ação diaconal.

Isso tem conseqüências diversas para a vida comunitária. Uma delas é que também hoje deveríamos ver os setores de trabalho e as atividades da comunidade a partir do batismo. A comunidade tem como um de seus objetivos acompanhar o desenvolvimento dos batizados. Organizadas em grupos por faixa etária, afinidades ou tarefas, as comunidades procuram se desincumbir de sua missão: alimentar a fé e ajudar os batizados a viver as conseqüências da vida cristã. Para tanto, valem-se de cultos, grupos e diversas atividades. São estes os espaços de que hoje dispomos parta a formação diaconal.

É importante descobrir e fortalecer as motivações de ordem interna à diaconia que as pessoas têm e trabalhar nos grupos, propositivamente, valores como solicitude, solidariedade e justiça.

Igualmente relevante é detectar os obstáculos que explícita ou sutilmente impedem ou dificultam uma comunidade de dar passos diaconais.

Também o clero necessita de formação diaconal, todos, também os que já estão nos campos de trabalho. Será fundamental expor os estudantes a modelos de comunidades diaconais, a fim de que as tenham como referenciais. Na formação teórica, é importante incluir a diaconia como princípio das disciplinas que compõe o currículo. Não se justifica mais o silêncio sobre a perspectiva da diaconia no âmbito da teologia sistemática, da bíblia e da história eclesiástica.

Na disciplina de culto cristão, o caráter diaconal e comunitário do culto nas suas diferentes formas deve ser explicitado.

A formação diaconal para o clero visa a sensibilização e a conscientização diaconal, de sorte que ele poderá mais facilmente perceber as situações que surgem como desafios à ação diaconal comunitária, bem como estimular iniciativas diaconais que nascem na própria comunidade e a partir dela para fora dos muros eclesiásticos.

Movimentar pessoas e comunidades para a diaconia, bem como capacitá-las para não se restringirem a gestos isolados de misericórdia, requer pensar estratégias em âmbito local e nacional.

e) Conhecimento interno da comunidade e visitação

A Igreja Antiga estava atenta às demandas diaconais existentes. A visitação foi importante para conhecer a realidade das pessoas batizadas. A partir da visitação e dos ágapes, a Igreja Antiga consolava desanimados, atendia enlutados e presos, cuidava dos doentes e idosos, criava e educava órfãos, dava suporte a viúvas, hospedava viajantes e amparava comunidades cristãs mais pobres.

Entre as conseqüências imediatas para as comunidades cristãs hoje está a necessidade de se ter um quadro geral da situação dos membros, levando em conta se são idosos, pessoas portadoras de necessidades especiais, dependentes químicos, mal aposentados, mães sozinhas, desempregados, entre muitas outras situações de vida que requerem acompanhamento. Uma rede de visitadores pode ser uma estratégia eficiente para manter os vínculos entre a liderança da comunidade e os membros, uma via de mão dupla. O conhecimento interno da comunidade agilizará decisões importantes em seu âmbito.

f) Conhecimento do contexto externo e engajamento diaconal

A Igreja Antiga não se ateve às demandas diaconais internas. Ela rompeu os limites da comunidade de batizados. O kyrie eleison tornou-se uma lembrança permanente para os cristãos de que há sofrimentos que sobrecarregam e ceifam vidas de pessoas e da criação perfeita de Deus de modo geral. A missão de “diaconar” na dispersão, já sinalizado no kyrie, é reforçado no envio: “Ide em paz e servi ao Senhor”.

Uma comunidade que vive como um gueto, está excluída da participação na transformação social. Uma comunidade que é diaconal necessariamente rompe os limites da comunidade. As comunidades devem abrir-se, ter clareza sobre seu papel social e assumir seu lugar na construção de cidadania para todos.

A igreja como um todo deve ser animada a fazer uso de seu papel profético, denunciando injustiças, apoiando movimentos sociais e procurando fazer-se presente em manifestações sociais. Novos estímulos podem advir de intercâmbios com igrejas co-irmãs, e relatos a esse respeito poderiam ser ainda mais valorizados pela sua divulgação.

g) Ministério compartilhado

O apóstolo Paulo comparou a comunidade cristã com a figura do corpo (1 Co 12.12-31), referindo-se ao lugar que cada pessoa ocupa no conjunto da igreja. Os dons recebidos de Deus devem servir para a edificação do corpo de Cristo (1 Co 14). Mesmo nas primeiras comunidades cristãs, houve pessoas que ocuparam papéis de liderança, e tendo sido titulares de funções ao lado de todos os demais que também possuíam dons importantes e necessários. O batismo os colocava, a todos, numa “comunidade de serviço”.

Ainda temos poucos modelos de ministério compartilhado, nos quais todos trabalham com a mesma finalidade: a de tornar a comunidade cristã uma “comunidade de serviço”. Os ministérios ordenados da igreja têm a responsabilidade de animar a participação de cada pessoa com os seus dons. A participação ativa dos membros é fundamental para o florescimento diaconal na comunidade. São eles que detectam demandas diaconais locais. O seu engajamento garantirá a continuidade de trabalhos diaconais, uma vez que os obreiros ordenados permanecem temporariamente no lugar.

Há ainda outro nível do ministério compartilhado, qual seja, a do colegiado de obreiros. O modelo de colegiado existente na Igreja Antiga, caracterizado pelo trabalho de equipe, extinguiu-se. A tarefa dada à igreja cristã, de exercer o “ministério da reconciliação” (2 Co 5.18), une, ainda hoje, obreiros com diferentes funções numa só tarefa.

Isso os torna iguais diante do desafio de edificar o corpo de Cristo, e pode auxiliar a tornar o colegiado menos hierárquico e mais caracterizado pela soma de dons e conhecimentos diversos, no qual todos têm espaço e valor.

h) Diaconia e o risco da transferência

A Igreja Antiga muito precocemente instituiu o cargo do diaconato. Seu papel não eliminou a atuação das demais pessoas batizadas.

Diaconia corre, constantemente, o risco de ser transferida. Os ministérios eclesiásticos, assim como estão constituídos hoje, podem atrair a transferência de tarefas que cabem a toda a comunidade cristã. O diaconato deve estar atento para que isso não suceda. Atente-se ainda ao risco que a departamentalização da diaconia corre.

As mulheres, muitas vezes, aceitam tarefas que lhes são transferidas, não somente no campo da diaconia. A transferência desobriga pessoas, comunidades e mesmo igrejas de assumirem o seu compromisso diaconal. Há que se compreender que cada pessoa é chamada a fazer diaconia.

i) Liderança feminina: fomentá-la

As mulheres eram ativas e presentes no movimento de Jesus e nas comunidades cristãs dos primeiros séculos. A participação ativa das mulheres fortaleceu o cristianismo e colaborou na sua expansão. Elas se empenharam nas diferentes frentes da igreja cristã.

A igreja está fazendo uma caminhada de resgate da presença e atuação das mulheres bíblica e historicamente. Ainda há muito a ser realizado para alcançar-se uma leitura e interpretação bíblica que torne as mulheres visíveis. Nas comunidades cristãs de hoje, muitos aspectos revelam a tendência de invisibilizar as mulheres; sendo, às vezes, elas próprias agentes dessa tendência. A igreja tem a tarefa de fomentar um trabalho mais igualitário, o qual inclua a liderança das mulheres, reparando, assim, o apoio dado, por muitas gerações, ao lugar subalterno e inferior atribuído às mesmas.

A diaconia carece da participação das mulheres. O saber teórico e prático que elas acumularam sobre diaconia é fundamental. As mulheres necessitam ser animadas a assumirem o seu papel de protagonistas.

j) Resgate de outras formas de culto : oração pública diária, unção de enfermos e ágapes

A Igreja Antiga cunhou as formas de culto da oração pública diária, da unção dos enfermos e dos ágapes, formas estas que se caracterizavam por reunir pequenos grupos que fomentavam uma espiritualidade solidária. Essas três formas de culto eram espaços abertos que recebiam e carregavam pessoas em suas necessidades, seja de ordem espiritual, emocional, física ou material.

Todas essas formas de culto têm potencial diaconal e poimênico e podem representar oportunidades valiosas em comunidades diaconais institucionais, em instituições de formação e em comunidades eclesiais.

O resgate das orações públicas diárias favorece o aprofundamento da espiritualidade individual e coletiva. As igrejas de tradição protestante carecem recuperar com vigor essa forma de culto.

No contexto protestante, também a unção dos enfermos tem sido negligenciada. Por falta dela, muitas pessoas procuram ritos que incluem a unção, o contato tátil, a intercessão específica pelos enfermos em outros lugares que não as comunidades cristãs. Sendo ela uma legítima manifestação diaconal cristã, há que ser resgatada.

Os ágapes não devem tornar-se jantares litúrgicos. O caráter diaconal do ágape estará resguardado quando houver a participação de pessoas necessitadas ou de representantes de um trabalho diaconal, a realização de um ofertório e de intercessões, bem como o acompanhamento continuado das pessoas necessitadas após a celebração.

Todas essas formas de culto são espaços solidários e de formação e realização diaconal.

Para encerrar:

Dar o passo do discurso para a ação diaconal comunitária, da intenção para a ação, ainda pode levar tempo. A igreja cristã, como povo da nova aliança, é chamada a ser sinal visível do amor, da misericórdia e da justiça de Deus no mundo. A pesquisa bibliográfica sobre a diaconia nas origens da igreja cristã e sua unidade com o culto, assim como a pesquisa social, ambas fornecem pistas para que isso aconteça.


Palestra apresentada por ocasião do Seminário Interncional sobre Culto e Liturgia - Santos/SP


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